Capitulo 31 - O REGRESSO DO RA
Capitulo 31 - O REGRESSO DO RATO
Tia Zelda não tinha nem relógio nem cronômetro. Os cronômetros nunca trabalhavam em condições na Choupana da Guardiã; havia Perturbação demais sob o solo. Infelizmente, isso era algo que Tia Zelda nunca se dera ao trabalho de dizer a Marcia, já que ela nunca se preocupava muito com as horas. Quando Tia Zelda queria saber que horas eram, contentava-se em olhar para o relógio de sol e ter a esperança de que o sol não estivesse encoberto, mas o que lhe interessava mais era a passagem das fases da Lua.
No dia em que o Rato Mensageiro tinha sido resgatado, Tia Zelda tinha levado Gina para dar um passeio em torno da ilha depois do anoitecer. A neve estava tão alta como de costume, e com uma cobertura tão espessa de gelo, que Gina era capaz de correr ligeiramente sobre ela, mas Tia Zelda, com as suas grandes botinas, afundava imediatamente até os joelhos. Tinham atravessado a ilha até o outro extremo, até estarem longe das luzes da choupana, e Tia Zelda tinha apontado para o escuro céu noturno, o qual era uma aquarela de centenas de milhares de estrelas brilhantes, mais do que as que Gina já tinha visto.
- Hoje - disse Tia Zelda - é noite de Lua Nova.
Gina estremeceu. Não de frio, mas com a estranha sensação que lhe provocou o estar ali na ilha, no meio de uma tal extensão de estrelas e escuridão.
- Hoje à noite, por muito que se esforce, não consegue ver a Lua. - disse-lhe Tia Zelda. - Ninguém no mundo é capaz de ver a Lua hoje. Não é uma noite adequada para que alguém se aventure sozinho nos pântanos, e se as criaturas e espíritos dos pântanos não estivessem bem congelados debaixo da terra, a esta hora estaríamos FechadosPorEncanto na choupana. Mas achei que gostaria de ver as estrelas sem a luz da Lua. Sua mãe sempre gostou de ver as estrelas.
Gina engoliu em seco.
- A minha mãe? Quer dizer, a minha mãe de quando eu nasci?
- Sim. - disse Tia Zelda. - Refiro-me à Rainha. Ela adorava as estrelas. Achei que seria capaz de gostar também.
- E gosto. - disse Gina, quase sem respiração. - Costumava sempre contá-las através da janela do meu quarto quando não conseguia adormecer. Mas... Como é que conheceu a minha mãe?
- Costumava encontrá-la todos os anos. - respondeu Tia Zelda. - Até que ela... bem, até as coisas mudarem. E a mãe dela, a sua encantadora avó, também a via todos os anos.
Mãe, avó... Gina começou a perceber que tinha uma família da qual não sabia nada. Mas Tia Zelda sabia.
- Tia Zelda. - disse Gina, hesitante, atrevendo-se finalmente a fazer uma pergunta que a tinha preocupado desde que descobrira quem era na realidade.
- Humm? - Tia Zelda estava olhando para o pântano.
- E o meu pai?
- O seu pai? Ah, ele vinha dos Países Longínquos. Partiu ainda antes de você nascer.
- Partiu?
- Ele tinha um barco. Foi atrás de alguma coisa qualquer. - disse Tia Zelda, de forma esquiva. - Voltou a ancorar no Porto pouco depois de você ter nascido, com um navio carregado de tesouros para você e para sua mãe, pelo que ouvi dizer. Mas quando lhe contaram os terríveis acontecimentos, partiu com a maré seguinte.
- Como... como se chamava? - perguntou Gina.
- Não faço idéia. - respondeu Tia Zelda, que, tal como a maioria das pessoas, não tinha prestado muita atenção à identidade do consorte da Rainha. A Sucessão transmitia-se de mãe para filha, permitindo que os homens da família vivessem suas vidas como bem entendessem.
Algo na voz de Tia Zelda chamou a atenção de Gina, e ela desviou os olhos das estrelas para procurar a Tia. Gina ficou sem respirar. Nunca tinha notado verdadeiramente os olhos de Tia Zelda antes, mas agora o penetrante azul gélido dos olhos da Bruxa Branca cortava a noite, brilhando através da escuridão e fitando atentamente o pântano.
- Muito bem. - disse Tia Zelda. - É hora de voltarmos.
- Mas...
- No Verão conto-lhe mais. Era quando elas costumavam vir aqui, no Solstício de Verão. E levo-a até lá, também.
- Onde? - quis saber Gina. - Leva-me aonde?
- Anda. - insistiu Tia Zelda. - Não gosto do aspecto daquela sombra ali...
Tia Zelda pegou-lhe a mão e começou a correr com Gina através da neve. No paul, um Lince dos Pântanos interrompeu sua aproximação furtiva e voltou para trás.
Estava fraco demais para persegui-las; se tivesse sido uns dias mais cedo, teria conseguido uma ótima refeição, que lhe permitiria atravessar o Inverno. Mas agora o Lince encolheu-se no seu buraco escavado na neve e começou a mastigar debilmente o seu último rato congelado.
Depois da Lua Nova, surgiu no céu a primeira lasca finíssima do Quarto Crescente. E a cada noite que passava, crescia um bocadinho mais. Os céus estavam mais límpidos agora que a neve deixara de cair, e todas as noites Gina via a Lua da janela, enquanto os Besouros Escudo flutuavam sonhadores nos Potes de Conserva, aguardando o momento de sua libertação.
- Continue observando. - disse-lhe Tia Zelda. - A medida que a Lua continua a crescer, começa a atrair as coisas que estão no chão. E a choupana atrai as pessoas que desejarem vir aqui. A atração é mais forte na altura da Lua Cheia, que foi quando você chegou aqui.
Mas quando a Lua estava em quarto crescente, Marcia tinha ido embora.
- Como é que a Marcia pode ter ido embora assim? - tinha perguntado Gina à Tia Zelda na manhã em que tinham dado pelo seu desaparecimento. - Pensei que as coisas vinham para cá quando a Lua estava crescendo, não que iam embora.
Tia Zelda pareceu ficar um bocado mal-humorada com a pergunta de Gina. Estava aborrecida com Marcia por ter partido tão inesperadamente, e também não gostava que questionassem as suas teorias sobre a Lua.
- As vezes - explicou-lhe Tia Zelda, misteriosamente - as coisas têm que partir para poderem regressar. - Recolheu-se determinada ao seu armário das poções e fechou-se lá dentro.
Rony dirigiu uma expressão de empatia à Gina e acenou-lhe com o seu par de patins.
- Aposto que ganho de você para chegar ao Grande Lodaçal. – sorriu desafiante.
- O último a chegar é um rato morto. - riu Gina.
Stanley acordou sobressaltado ao ouvir as palavras «rato morto» e abriu os olhos bem a tempo de ver Rony e Gina pegarem os patins e desaparecerem pelo resto do dia.
Quando a Lua Cheia chegou sem que Marcia tivesse regressado, todos já estavam muito preocupados.
- Eu disse à Marcia que devia pensar bem no que ia fazer, - disse Tia Zelda - oh, mas não, deixa-se enervar completamente com a história de Tiago e pronto, desaparece no meio da noite. E nem uma palavra desde essa altura. O que é mau sinal. Consigo perfeitamente compreender que tiago não possa voltar, por causa do Grande Gelo, mas não a Marcia.
- Talvez volte hoje à noite, - aventurou Gina - como é noite de Lua Cheia.
- Pode ser. - disse Tia Zelda. - Mas também pode ser que não.
Marcia, é claro, não regressou naquela noite. Passou-a, tal como tinha passado as dês anteriores, no meio do Vórtice de Sombras e Vultos, caída sem forças na poça de água pestilenta no fundo da Masmorra Número Um. Sentado junto dela estava Alther Mella, servindo-se de toda a Magya fantasmagórica ao seu alcance para manter Marcia viva. Poucos conseguiam sobreviver sequer à queda na Masmorra Número Um, e quando conseguiam, nunca duravam muito tempo, pois não demoravam a afundar-se na água pestilencial para se juntarem às ossadas que estavam bem por baixo da superfície. Sem a ajuda de Alther, era sem dúvida o que teria acabado por acontecer à Marcia.
Nesta noite, na noite da Lua Cheia, enquanto o Sol se punha e a Lua se erguia no céu, Gina e Tia Zelda embrulharam-se em mantas para ficarem à janela, à espera de Marcia. Gina não tardou a adormecer, mas Tia Zelda manteve-se acordada toda a noite até que o nascer do sol e o pôr da Lua acabou com a mais tênue das esperanças que pudesse ter quanto ao regresso de Marcia.
No dia seguinte, o Rato Mensageiro decidiu que já estava suficientemente forte para partir. Havia um limite para a quantidade de purê de enguia que até um rato podia agüentar, e Stanley achava que já tinha definitivamente alcançado esse limite.
No entanto, antes que pudesse partir, tinha de ser encarregado de entregar uma nova mensagem, ou ser dispensado sem fazê-lo. Por isso nessa manhã tossiu educadamente, e disse:
- A sua atenção, por favor. - Todos se voltaram para o rato. Tinha estado muito quieto durante a convalescença, e não estavam habituados a ouvi-lo falar. - Já é tempo de regressar ao Gabinete dos Ratos. Na verdade, já estou até um bocado atrasado. Mas devo inquirir: necessitam que leve alguma mensagem?
- Ao Papai! - gritou Gina. - Leve uma ao Papai!
- E quem é esse Papai? - perguntou o rato. - E onde posso encontrá-lo?
- Não sabemos. - disse Tia Zelda, rabugenta. - Não há nenhuma mensagem, Rato Mensageiro, obrigada. Está liberto de qualquer incumbência.
Stanley curvou-se, grato, e por demais aliviado.
- Muito obrigado, Madame. - disse ele. - E obrigado pela sua amabilidade. A todos vocês. Estou muito agradecido.
Todos ficaram olhando o rato partir lançado por sobre a neve, deixando pequenas pegadas e marcas de cauda atrás de si.
- Gostaria que tivéssemos mandado uma mensagem. - disse Gina tristonha.
- Foi melhor não. - disse Tia Zelda. - Há qualquer coisa estranha com aquele rato. Tem alguma coisa diferente desde a última vez.
- Bom, estava muito mais magro. - observou Rony.
- Hmmm. - murmurou Tia Zelda. - Há alguma coisa errada. Tenho certeza.
Stanley teve uma boa viagem de volta ao Castelo. Só quando chegou aos escritórios do Gabinete dos Ratos é que as coisas começaram a correr mal. Apressou-se a subir pelo escoadouro recentemente descongelado e bateu à porta do Gabinete dos Ratos.
- Entre! - ladrou o rato preto, recém-regressado ao serviço depois de ter sido tardiamente resgatado do congelado Gabinete dos Ratos.
Stanley entrou timidamente, bem ciente de que ia ter que dar algumas explicações.
- Você! - trovejou o rato preto. - Finalmente. Como se atreve a me fazer de bobo? Faz idéia de quanto tempo esteve fora?
- Aaaangh... dois meses. - murmurou Stanley. Na verdade, estava até consciente demais do tempo que estivera fora, e começara a pensar no que Dawnie teria a dizer sobre isso.
- Aaaaangh... dois meses, senhor! - gritou o rato preto, batendo furioso com a cauda na mesa. - Faz idéia de quão estúpido me fez parecer?
Stanley não respondeu, pensando que pelo menos algo de bom tinha saído da sua horrível aventura.
- Vai pagar por isso. - berrou o rato preto. - Vou me encarregar pessoalmente de garantir que, enquanto eu estiver aqui, não voltará a ter um único trabalho.
- Mas...
- Mas senhor! - gritou o rato preto. - O que é que eu te disse? Trate-me por senhor!
Stanley estava sem palavras. Tinha vontade de chamar o rato preto de muitas coisas, mas «senhor» não era uma delas. E subitamente Stanley notou algo por trás de si. Voltou-se e ficou frente a frente com o maior par de ratos musculosos que já tinha visto. Permaneciam junto à porta do Gabinete dos Ratos, ameaçadores, bloqueando a luz e também qualquer hipótese que Stanley pudesse ter de tentar a fuga, que era o que repentinamente mais lhe apetecia fazer.
O rato preto, por outro lado, pareceu satisfeito em vê-los.
- Ah, ótimo. Os rapazes chegaram. Levem-no, rapazes.
- Para onde? - guinchou Stanley. - Para onde vão me levar?
- Para... onde... vão... me... levar... senhor. - disse o rato preto por entre os dentes cerrados. - Para começar, à interposta pessoa que enviou a mensagem. Ele quer saber exatamente onde se encontra o destinatário. E como já não é um Rato Confidencial, vai ter que lhe dizer, é claro. Levem-no ao Supremo Guardião.
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