Segredo Ancestral



- Aqui. – falou o bruxo que roubara a tiara, indicando uma escada em espiral.

Sem perguntas, Mary e Doumajyd o seguiram pela escadaria acima.

Depois de serem resgatados na ilha, eles haviam voltado para o continente com o helicóptero. De lá, foram conduzidos pelo bruxo que roubara a tiara para o mesmo jato em que deveriam ter voltado há cerca de um mês atrás. Agora, finalmente estavam de volta a Inglaterra, apesar de não saberem dizer com certeza em que parte do país. Pela paisagem, Mary deduzira ser algum lugar ao sul, onde haviam muitas planícies e rochas, que terminavam em precipícios para o mar.

Durante toda a viagem, quando Mary exigia uma explicação, o bruxo apenas pedia educadamente que eles esperassem por mais algum tempo e que não cabia a ele a tarefa de dar as respostas. E ela, apesar de sentir que até mesmo o ar estava carregado em volta do dragão, com a vontade que ele tinha de socar aquela pessoa desconhecida que lhes causara tantos problemas, se surpreendeu com o fato de o noivo se controlar. Talvez o tempo em que ficaram na ilha também serviu para lhe ensinar que nem tudo poderia ser resolvido na base dos seus esbravejos.

Foi dessa forma, alimentando as expectativas deles quanto ao ‘último estágio’, que o ladrão da tiara conseguira levar os dois até aquele castelo isolado, sem relutância. Mary pensava que se conseguiram sobreviver todo aquele tempo em uma lha deserta, sem usar magia e sem respostas, poderiam enfrentar um castelo para desvendarem o mistério por trás do roubo do talismã da família Doumajyd.

Ao terminarem de subir as escadas, o ladrão os levou por um corredor até parar diante de uma grande porta. Depois de abri-la, com um gesto de varinha, se afastou, deixando com que os dois entrassem primeiro.

Mary e Doumajyd se viram diante de uma sala tão luxuosa quanto a própria mansão Doumajyd, mas um lugar que se assemelhava muito mais a Hogwarts do que qualquer outro. Haviam tapeçarias pelas paredes e os móveis eram feitos de uma madeira escura e pesada. Havia também uma grande lareira acesa com um fogo azulado, e na mesa do centro estava servido um verdadeiro banquete. Vendo aquilo, de repente Mary se deu conta de que fazia um longo tempo que não tinham uma boa refeição, e do quanto estava enjoada de comer somente peixes.

- Fiquem a vontade. – disse uma voz vinda de perto do fogo.

Surpresos, os dois olharam para lá e se surpreenderam ao ver um senhor de idade sentado em uma poltrona, tão imóvel que parecia ser parte da decoração. Ele os encarava intensamente, como se o avaliasse, de uma maneira que chegava a incomodar. Tinha uma longa barba que começava a pratear e um cabelo ralo da mesma cor. Usava roupas bruxas um tanto simples para alguém que tinha um castelo como aqueles. Mas, mesmo assim, ele possuía uma atmosfera de poder em volta dele, assim como os Doumajyd.

- Desculpe pela demora. – pediu o ladrão, se aproximando da poltrona e fazendo uma breve reverência.

E sem dizer mais nada, o bruxo saiu da sala, os deixando sozinhos com o velho.

Com esse modo de agir dele, Mary imediatamente lembrou de Richardson. O ladrão da tiara agia e falava exatamente como o secretário de Doumajyd, deixando bem claro que ele estava sobre as ordens daquele senhor.

- Você é o cara por trás de tudo o que aconteceu? – começou Doumajyd, ainda mantendo o seu controle, mas encarando o velho de um jeito que dava medo.

- Como foi a vida de sobreviventes na ilha deserta? – perguntou o senhor de forma casual, como se estivesse perguntando sobre o clima lá fora.

Não obtendo resposta de nenhum dos dois, que permaneciam imóveis, ainda perto da porta, o velho fez um gesto amplo em direção a mesa:

- Estão com fome, não estão? Podem comer o que quiserem.

Mary engoliu em seco, repetindo para si mesma que por mais convidativo que aquele cheiro estivesse, não deveria se deixar levar tão facilmente por aquela pessoa que ela não conhecia.

- O que pretende? – perguntou Doumajyd de forma ríspida, deixando bem claro que ele deveria parar com aquele rodeio.

O velho respirou profundamente e então levantou, de maneira muito hábil para a idade que aparentava ter, e foi até a lareira, apreciar o fogo mágico.

- Las Vegas, Hong Kong, mar do sul... – ele sorriu, como se lembrasse de algo antigo – Não foi interessante?

E então olhou para eles, com um sorriso.

- Quem é você? – murmurou Doumajyd, de vagar.

Mary notou que o dragão falara aquilo como se aquela pessoa, naquele momento, lhe parecesse familiar. Mas não teve tempo de perguntar qualquer coisa para o noivo. No mesmo instante, o ladrão reaparecera na sala trazendo consigo a caixa da tiara, e a colocando em cima da mesa.

- Ah! – Mary correu até ela – A tiara!

Doumajyd permaneceu no mesmo lugar, olhando da caixa para o velho.

- Foi um longo caminho até ela se encontrar com vocês, não foi? – perguntou para o dragão, voltando a olhar o fogo.

Mary abriu a caixa e pegou cuidadosamente a tiara nas mãos, para verificar se era realmente ela ali e não um truque, e respirou aliviada. Agora tudo estava acabado. Eles tinham a tiara, não estavam presos em uma ilha deserta, estavam novamente na Inglaterra e... Doumajyd arrancou a tiara das mãos dela.

Sem dizer uma palavra, ele avançou até a lareira.

- O QUE ESTÁ FAZENDO?! – Mary correu chocada ao perceber a intenção dele, mas não conseguiu o impedir de jogar a Sorriso da Deusa no fogo.

Ela paralisou ao ver a tiara em meios as chamas, intacta. Porém, ela só permaneceu assim alguns instantes. Logo não resistiu a temperatura e derreteu, se deformando em algo escuro e retorcido, e as pedras desapareceram como fumaça.

- ...O que você fez? – perguntou Mary em um fiapo de voz chorosa, se ajoelhando na frente da lareira.

- Não precisamos disso! – o dragão falou para ela e então declarou para o velho, com o seu tom de líder dos Dragões – Vocês não vão mais nos arrastar para as suas armadilhas!

O velho riu e saiu de perto da lareira, nem um pouco afetado pelo que acabara de acontecer.

- Então você percebeu? – ele perguntou, calmamente.

Doumajyd o encarou um tanto confuso, deixando bem claro para Mary que se havia alguma coisa para ser percebida, ele não tinha percebido.

- Era uma imitação. – contou o velho.

- Imitação?! – Mary e Doumajyd exclamaram juntos.

- Quer dizer que essa tiara era falsa?! – perguntou Mary pasma.

- Não e sim. Não essa tiara, mas sim a tiara. A Sorriso da Deusa nunca existiu.

- Como assim? – perguntou Doumajyd irritado – Foi tudo uma história inventada?!

- Isso mesmo. – ele confirmou, se sentando novamente na poltrona – O noivado do herdeiro Doumajyd com uma moça simples foi celebrado em todo o mundo bruxo, ao contrário do que se esperava... Parece que não há ninguém que seja contra ele.

- Não diga coisas sem sentido, velho! – rosnou Doumajyd, avançando para ele com a intenção clara de atacá-lo de alguma forma – NÓS QUASE MORREMOS POR SUA-

Antes que o dragão pudesse completar a frase, ele foi atingido por um feitiço do velho e lançado contra a parede. Foram movimentos de segundos e Mary precisou de outros tantos para entender o que havia acontecido e ir ao socorro do noivo estirado no chão.

- Você ainda é muito novo, mestre Christopher. – disse o velho – Pensei que havia aprendido algo naquela ilha... Ainda que o mundo celebre o casamento de vocês, existem pessoas que se preocupam. Pessoas que estão imensamente felizes, mas ao mesmo tempo imensamente preocupadas.

- O que isso significa? – pediu Mary, ajudando o noivo a se levantar, ainda atordoado com o impacto que levara.

- Mary Ann Weed. Você, tendo uma forma de pensar diferente, conseguiria ser feliz vivendo uma vida de ostentação?... Doumajyd, sendo alguém em quem o mundo mágico deposita suas esperanças para um futuro, tem certeza desse casamento quando ainda é tão jovem?... A força do amor de vocês é capaz de superar todas as barreiras que surgirem?... Eram essas perguntas que eu desejava ver respondidas.

- E por causa disso você fez essa coisa idiota?! – perguntou Doumajyd, já totalmente esquecido do seu auto-controle e se levantando com dificuldade – O que aconteceria se nós tivéssemos terminado?!

O velho olhou bem para eles:

- Vocês não estariam aqui agora, diante de mim. Somente isso.

- Era um teste... – Mary murmurou, compreendendo – Por que o senhor queria nos testar?

- Não eu. Só fiz o que me pediram.

- Foi a minha mãe? – perguntou Doumajyd sério.

- Conheço a sua mãe há muito tempo, meu jovem. Você não deve lembra de mim pois era muito pequeno, e por isso tudo era perfeito. Ela precisava de alguém que tivesse meios de agir e que já tivesse passado por algo parecido.

As palavras dele flutuaram algum tempo pelo ar, enquanto os dois absorviam aquela informação.

- ...Quem e você? – o dragão repetiu uma de suas primeiras perguntas.

- Como assim parecido? – Mary emendou a pergunta.

O velho deu um grande suspiro, se preparando para contar da melhor forma.

- Katherin Doumajyd é uma pessoa forte. Uma bruxa de ferro, como dizem... Ela precisou se tornar alguém assim. Ganhou muito nesses anos, mas também perdeu muito do que era antigamente. – ele olhou bem para Doumajyd – A Ketherin dos tempos de Hogwarts era muito parecida com você, mestre Christopher, uma aluna única. Alguém disposta a desafiar o mundo pelo que acreditava...

- E no que minha mãe acreditava? – perguntou o dragão.

- Acreditava que tudo estaria bem se ela amasse uma pessoa, somente isso. Quando esse amor foi colocado a prova, assim com vocês, ela percebeu que precisava se tornar mais forte.

- Quer dizer que a senhora Doumajyd também passou por isso? – Mary tentava acreditar.

Anos atrás, ela chegou a odiar a bruxa, por tudo o que ela fizera com as pessoas a sua volta para destruir a sua relação com o herdeiro Doumajyd. Porém, na sua formatura, ela havia cedido e reconhecido que não conseguiria interferir no que eles sentiam. Vivendo no mundo bruxo fora dos muros de Hogwarts, como uma noiva não declarada de Doumajyd, e na pavorosa expectativa de tornar referência dentro da sociedade mágica, Mary achava que tinha compreendido um pouco do motivo para a bruxa querer tanto separar os dois. Mas em nenhum momento ela pensara que a bruxa já havia feito algo semelhante, e que seus atos apenas refletiam a preocupação com que seus filhos cometessem os seus mesmos erros do passado.

- Ela tinha alguém como a Mary? – inquiriu o dragão – Quem era essa pessoa?

O bruxo deu um meio sorriso, mas não respondeu. Apenas continuou, deixando bem claro que estava ignorando a pergunta propositalmente:

- Foi Ketherin quem me pediu para planejar essas provas para vocês. Entretanto, isso foi algo que pediram para ela.

- Quem? – perguntou Mary, não tendo a mínima idéia de quem poderia ter sido.

- Seus pais, Mary Ann.

A resposta, dita de forma simples, foi poderosa o suficiente para abrir um buraco embaixo dos pés dela. Como assim seus pais haviam pedido que a força do sentimento entre os dois fosse testado?! Os mesmos pais que brindavam todo o dia por sua filha ter conseguido conquistar um bruxo rico e poderoso?! Os mesmos pais que pensavam que nunca mais teriam problemas na vida por causa disso?!

- Dinheiro não significa felicidade. – disse o velho, como se lesse os pensamentos dela – E o que seus pais mais desejam no mundo é a sua felicidade e a do mestre Christopher. Por isso, eles recorreram à Ketherin... Você foi uma moça humilde durante toda a vida, Mary Ann Weed, e seu noivo nasceu em um berço de ouro. Vocês são pessoas diferentes que se completam, e provaram isso ao superarem todos esses obstáculos... Talvez, na vida que terão de agora em diante, problemas maiores esperarão por vocês. Mas, por terem compreendido o que é mais importante, serão capazes de superá-los, juntos.

Ele se levantou da poltrona e seguiu até a mesa.

- Vocês ainda têm uma longa vida pela frente. – ele puxou uma cadeira e se sentou – Então, só por hoje, o que acham de perderem um dia dessa vida para saborear essa refeição com um velho?

Mary e Doumajyd se entreolharam, e ela deu um grande suspiro:

- Estou com fome.

Vencido, Doumajyd sorriu e seguiu a noiva até a mesa.

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