O colar de saturno
Enfim Doumajyd havia descoberto uma utilidade para o cartão de crédito de MacGilleain. Depois de ter cortado o dedo nele ao pegar algo na sua mala, pensou que poderia usar uma pedra para afiá-lo, a ponto de torná-lo tão prático quanto uma faca. Assim, conseguiria não só algo extremamente útil, como algo que o auxiliaria a conseguir mais coisas úteis.
Com a faca improvisada, ele conseguiu cortar folhas de palmeiras em tiras para modelá-las. Usando as tiras e um amontoado de folhas de palmeiras, conseguiu montar algo eu se parecia muito com um tapete amarrado, e que amenizaria um pouco o fato de estarem dormindo no chão de pedra. Também conseguiu fazer uma rede de aparência tosca, mas firme, e a amarrou nos galhos que achara no dia anterior.
Colocando os galhos cruzados, como se fossem uma tesoura, conseguiu um movimento de abrir e fechar a rede. Ficara um tanto grosseiro, mas com certeza seria muito mais eficiente do que usar as próprias mãos para pescar. Bastaria ele prender o peixe e teriam uma refeição decente.
Porém, a sua alegria com o fato de ter construído algo com as próprias mãos não durou muito tempo. A situação de Mary, que permanecia na caverna, no mesmo estado do dia anterior, abraçada aos seus joelhos, com o olhar perdido, era a sua principal preocupação. Caberia a ele continuar tentando também por ela. E por isso ele pensava que, se voltasse com um peixe, o estado de ânimo da noiva poderia melhorar.
Entretanto, a prática não era tão fácil como a teoria. No rio, por duas vezes conseguira prender um peixe na rede, mas eles se debatiam tanto que, quando tentava os pegar, eles pulavam e fugiam. Praguejando alto e chutando a água, Doumajyd não desistia e continuava tentando.
Escondida atrás da vegetação de grandes folhas, Mary observava de longe as tentativas frustradas do dragão.
***
Naquela noite, Doumajyd voltara para a caverna de mãos vazias e o estômago roncando ainda mais. Sem dizer uma palavra, ele se largou exausto no tapete de palmeiras e logo adormeceu. Mary, ao contrário, passara aquela noite inteira acordada, segurando firmemente o seu colar com o pingente de Saturno na mão, pensando.
***
Quando o dia começava a clarear e o sol ainda se preparava para nascer, Mary saiu da caverna, deixando para trás um Doumajyd profundamente adormecido, e seguiu para a floresta.
Mesmo não tendo andando por toda a ilha, a geografia dela não era algo difícil de aprender. Ela tinha a forma de uma meia lua, sendo que uma metade tinha uma faixa de areia e a outra, precipícios de pedras. Não era muito extensa, mas era grande o bastante para abrigar uma floresta, várias nascentes e a sua população de seres. As nascentes se juntavam e formavam um rio maior, que atravessava todo o meio da ilha até chegar no mar. Era lá onde Doumajyd tentava pescar todos os dias. Não havia animais grandes, mas eles já tinham avistado roedores e pássaros perto da caverna.
Dentre todos os riozinhos que ela conhecia, existia um mais afastado que ela gostava de ir. Lá, ele passava por uma região de pedras pequenas formando um pequeno lago, tão raso quanto uma poça de água nas suas bordas. Um lugar perfeito para quem quisesse lavar o rosto e se sentar tranquilamente, apenas ouvindo o barulho da água corrente.
Depois de se lavar, tentando amenizar a sensação de que estar mais suja do que realmente estava, ela tirou o colar de saturno do seu pescoço e o encarou por um longo tempo. Apesar de não ter nenhum sintoma de doença, desde o dia de chuva ela se sentia doente e fraca, como nunca se sentira na vida, e seu estado de ânimo se reduzia ainda mais olhando para aquele pingente.
Houve um tempo em que considerava aquele colar um dos seus pertences mais preciosos, a ponto de carregá-lo sempre consigo, como um amuleto. Porém, agora, não conseguia mais o ver como algo além do que realmente era: um colar caro. Não compreendia porque chegara a considerá-lo tanto. Porém, mesmo nesse seu estado de depressão, não conseguia simplesmente largá-lo ali, como sentia vontade de fazer.
Um estrondo, seguido da confusão de pássaros fugindo, fez com que ela despertasse de seus pensamentos. Havia algo por perto dela. Algo grande.
Cuidadosamente, ela ficou de pé e seguiu para a vegetação. Mesmo com um pressentimento de que poderia ser perigoso e de que estava correndo risco, ela avançou para descobrir o que era. Em todos aqueles dias na ilha nada do tipo tinha acontecido.
A princípio, não via nada além das cores da própria floresta. Aquela habilidade de ver longe que havia adquirido no começo se esgotara assim como o seu ânimo, e tudo a sua volta parecia fazer parte de uma única coisa, sem detalhes.
Foi nesse momento em que ficou imóvel, apenas respirando, que viu algo se mexendo a frente dela. Era alguma coisa escura, que se movia de forma estranha, ora parecendo se arrastar e ora parecendo andar como um animal. Percebendo que a coisa ainda não a tinha visto, ela de um passo a frente, para enxergar melhor, mas foi um erro. Acabou pisando em um galho seco, e o estralo ecoou pela vegetação, fazendo a coisa se erguer e notá-la. Imediatamente a sombra avançou, e quando Mary começou a correr, ela se transformou em um urso negro, duas vezes maior do que o normal.
Mary sabia que não podia gritar pedindo ajuda. Estava muito longe da caverna e Doumajyd não a ouviria se não chegasse mais perto. Não havia mais ninguém para socorrê-la e não tinha uma varinha para se defender. Então, tudo o que estava ao seu alcance era correr, e teve o bom senso de seguir o caminho do rio, que era mais limpo e sem obstáculos. Mesmo assim, tropeçou duas vezes, esfolando e batendo os joelhos, levantando sem pensar muito e continuando a corrida, ouvindo passadas pesadas atrás de si.
Logo o caminho do rio se tornou inacessível, e ela teve que se embrenhar pela mata. Se arranhando e prendendo a roupa em galhos, ela avançou ofegando, até que saiu em um lugar de vegetação rasteira, coberto com as copas de árvores altas, e parou. Não conhecia aquele lugar e não sabia mais para onde ir, tendo perdido todo o seu senso de direção no seu desespero de fugir e, como não conseguia ver o céu, não conseguia deduzir em que parte da ilha estava pela posição do sol.
Porém, as passadas atrás dela haviam parado. Não estava mais sendo perseguida, mas não significava que o perigo havia desaparecido. Ele apenas estava dando voltas, esperando pelo melhor momento de atacá-la. Confirmando isso, ela ouvia vários grasnidos e gemidos baixinhos, vindo de direções indefinidas. Instintivamente, ela dava voltas no mesmo lugar, olhando em todas as direções, respirando descompassadamente, apavorada.
- Por que tudo dá errado? – ela murmurou baixinho, com a voz tremida – Por que eu tenho que passar por isso?... Eu só queria... Tudo o que eu queria...
- Viver feliz?
A voz familiar a fez gelar. A reconheceria mesmo em uma multidão. Então, alguém saiu do meio da vegetação e parou a frente dela.
- Chris?
O dragão a encarava de uma maneira que ela havia esquecido nos últimos anos: era o olhar do ditador de Hogwarts, aquele que impiedosamente colocava os alunos sobre as torturas da Tarja Vermelha do D4.
- Nunca vai dar certo. – ele disse – Você nunca vai ser feliz.
- O-o q-que está d-dizendo, Chris? – ela gaguejou, espantada demais para conseguir ser firme.
- Somos diferentes. Nossos valores são diferentes. Nunca vai dar certo.
Aquelas frases, as mesmas que ela dissera, ditas por ele, uma após a outra, a atingiam de uma forma muito mais dolorosa do que os tombos que levara.
- Nunca vai dar certo. Sempre haverá problemas. Nunca via dar certo. Somos diferentes. Você não acredita. Nunca vai dar certo.
Aquilo ressoava na cabeça de Mary, a quase a fazendo perder o chão.
- Você é a pior de todas. Nunca mais quero te ver. Nunca via dar certo.
Com aquilo, ela chegara ao seu limite. A raiva por todos os problemas que haviam passado, por todas as dificuldades, a irritação e a agressividade causada pela fome, se misturaram todas em um único sentimento, e algo começou a borbulhar dentro dela. Mesmo o seu corpo não tendo de onde retirar energias, ela explodiu:
- DEPOIS DE TUDO O EU PASSAMOS, DE TODOS ESSES ANOS, DE TODAS AOS NOSSOS ESFORÇOS E TODAS AS LÁGRIMAS VIA TERMINAR ASSIM?! – ela afastou os pés no chão, em uma pose de luta, com os punhos no ar, e sibilou, dando três pulinhos – Passar por tudo isso e morrer nessa ilha no fim do mundo É INACREDITÁVEL!!! – ela avançou com toda a sua força e socou Doumajyd no nariz.
Sentiu a mão afundar e atravessar algo semelhante a uma gelatina, e viu a forma do dragão a sua frente se desfazer em uma fumaça negra e explodir no ar, desaparecendo, como se nunca tivesse existido.
Abalada, ela se deixou cair de joelhos no chão. E então riu, com um riso nervoso de quem ainda não acreditava no que acontecera: era um bicho-papão. Havia um bicho-papão naquela ilha e ele a atacara. E ela derrotara um bicho-papão sem usar a varinha, apenas com um berro e um soco no nariz.
Então, passando aquele momento, ela deixou o óbvio de lado e pensou no que realmente havia acontecido.
Sabia que o bicho-papão usava o maior medo das pessoas para atacá-las, para deixá-las psicologicamente indefesas. Então se deu conta de que nem mesmo ela saberia dizer, antes daquilo, qual era o seu maior medo.
Instantaneamente, se recordou do dia em que aquela mesma cena havia acontecido, quando tudo começara. Quando ela declarou guerra ao D4 e nunca mais teve sossego na vida, porque Doumajyd passara a fazer parte dela. De como correu atrás da carruagem da família Doumajyd, que levaria o dragão para Nova York, gritando com todas as suas forças por ele. De como ela agradecera pelo colar de saturno e como ele o colocara no seu pescoço, dizendo que se tornaria um homem melhor por ela. De como confessou, de uma forma um tanto indelicada, que estava apaixonada por ele.
Então se deu conta que, mesmo agora, depois de tantos anos, depois te ter enfrentado todos esses problemas e de ter se machucado tantas vezes, ela faria tudo de novo. Não importava o quanto Doumajyd fosse estúpido e egoísta, ela o amava. O seu maior medo, aquele que nem mesmo ela sabia, era de que ele dissesse exatamente o que ela vinha pensando desde o anuncio do noivado: que nada daria certo, portanto teriam que desistir.
Antes que percebesse que estava chorando, seu rosto já estava todo molhado de lágrimas, como se finalmente pudesse colocar para fora todos os pensamentos negativos que vinha acumulando. E, em um gesto automático, ela colocou a mão no pescoço em busca do colar que, mais do que compromisso e anúncios para a comunidade mágica, representava a ligação deles dois. Mas ele não estava ali.
- Quê? – ela procurou nos bolsos, pela roupa e no chão a sua volta, mas não havia sinal algum do colar – Sumiu!
***
O sol já havia se posto e Mary não voltara para a caverna. Preocupado e sem fazer idéia de onde ela poderia ter ido, Doumajyd improvisou uma tocha e saiu à procura dela pela ilha. Passara por todos os lugares que conheciam e subira em cima das pedras mais altas a chamando, mas não houve resposta.
Já era tarde da noite quando, andando pela margem onde o rio ficava mais largo por se juntar com a água do mar, a avistou do outro lado, desmaiada no chão. Largando a tocha, que caiu e se apagou na água, o dragão atravessou como um raio o rio a chamando:
- MARY! – ele chegou até a ela e se ajoelhou, pegando a cabeça dela no chão – O QUE ESTÁ FAZENDO?!
Ela entreabriu os olhos e demorou para reconhecê-lo.
- Chris... – murmurou, com um fiapo de voz, demonstrando estar sem forças mesmo para falar.
Vendo que ela não conseguiria se levantar, o dragão a puxou para si e a colocou nas costas, para poder levá-la em segurança pelo caminho pelo qual viera.
Mary sempre fora pequena, e para ele não era um grande peso. Mas na situação em que estavam, em que há dias não tinham uma refeição nutritiva, era um grande esforço carregá-la.
Então, depois que atravessaram o rio, ele sentiu que os braços dela se apertaram em torno do seu pescoço e que ela enterrava o rosto no seu ombro, chorando.
- Desculpa. – pediu ela com um soluço – Eu perdi.
- O quê? – ele perguntou sem entender.
- O colar de saturno... Eu perdi.
Ele parou.
- Ele era... importante... para nós.
Então, a ajeitando melhor nas costas, ele continuou andando, dizendo:
- Não se preocupe com besteiras, Mary. O mais importante para mim é você.
E isso fez com que ela o abraçasse o forte e chorasse ainda mais.
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