Isolados



Mary despertou lentamente, mas não abriu os olhos. Não só eles, como todo o seu corpo, estava tão pesado que, mesmo naquele estado de pouca consciência, tudo o que queria era voltar a dormir. Então permaneceu daquele jeito, como se ainda estivesse em sono profundo. Sentia o seu rosto repousado no seu braço, a claridade do dia e o calor do sol batendo nela, o canto dos pássaros, a brisa refrescante, o som das ondas do mar... ondas do mar?

Confusa, ela se forçou a acordar direito e olhar em volta, raciocinando.

- ...Que lugar é esse? – ela murmurou, soerguendo-se sobressaltada, se dando conta de que não reconhecia o cenário a sua volta.

Estivera deitada dormindo na areia pelo que parecia ter sido um longo tempo. Logo ao seu lado estava a sua mala, como se tivesse sido jogada ao lado da dona. Tinha a sua frente um vasto mar azulado, que se perdia no horizonte imenso, de um céu azul claro. O sol estava alto e as ondas vinham tranquilamente quebrar na areia branca e fina como farinha. Olhou em volta e viu que a faixa de areia se estendia até um amontoado de grandes pedras a sua esquerda e dobrava o mar a sua direita. Atrás dela havia uma floresta, com vegetação típica de trópicos. E ali, perto dela, estirado na areia, dormindo e respirando calmamente, estava Doumajyd.

- Chris! – ela se arrastou até ele, ainda sentindo dificuldade em se movimentar – Chris! Acorda! Estamos em um lugar estranho! Chris!

Mas a única resposta que ela conseguiu dele foi um resmungo acompanhado de um meio sorriso, de quem está sonhando com algo bom, e então ele virou para o outro lado e continuou dormindo.

- Será que é um sonho? – ela olhou em volta preocupada.

Mesmo forçando sua memória, tudo o que lembrava era de ter entrado no jato em Hong Kong para voltarem para casa. Depois disso não havia nada além do despertar naquele lugar.

Então se levantou, batendo a areia das roupas. Não podia simplesmente ficar sentada ali esperando que Doumajyd acordasse e ajudasse a descobrir o que tinha acontecido. Precisa andar e procurar por alguém. E foi isso que fez.

Por mais de meia hora andou pela faixa de areia. Constatou logo que se tratava de uma ilha, mas não encontrou nenhum sinal de que houvesse pessoas vivendo ali. O máximo que havia, por onde andou, eram galhos secos trazidos pela maré e pedras, nada que denunciasse civilização. Então, quando achou que já havia ido longe demais, voltou seguindo as suas pegadas.

Ao chegar ao ponto em que acordara, encontrou Doumajyd sentado em cima da sua mala, encarando o mar.

- Isso é uma ilha deserta, não é? – ele pediu, como se para concluir seus pensamentos.
O silêncio dela indicava perfeitamente um sim.

Doumajyd voltou a encarar o mar e, quando ela se aproximou dele, informou:

- A tiara sumiu.

- Mentira. – foi tudo o que ela conseguiu dizer.

Depois de tudo o que haviam passado, de finalmente terem recuperado a tiara, novamente ela havia sumido.

- Parece que caímos em uma armadilha. – disse o dragão, em tom de quem admitia a contra gosto – Não sei como dormimos, mas acho que havia alguma coisa naquela bebida que o elfo trouxe...

- Inacreditável. - lamentou-se Mary, se largando na areia ao lado da sua mala, no mesmo lugar em que tinha acordado.

Por um longo tempo, os dois permaneceram em silêncio, apenas olhando para a vastidão do mar. Então, de repente, Doumajyd ficou de pé e foi até o limite das ondas na praia, e começou a andar de um lado para o outro como se, avistar algum resgate ao longe ou não, dependesse totalmente do ponto de onde ele olhava.

- Ninguém virá nos salvar. – concluiu Mary.

- E por que acha isso?! – ele perguntou agressivo, demonstrando estar irritado com a situação.

- Porque é uma armadilha. – ela explicou paciente, sabendo que em nada ajudaria no momento começarem novamente a discutir – Vai demorar até os outros perceberem que não voltamos e, quando perceberem, as pessoas que nos jogaram aqui já terão tido tempo suficiente para encobrir pistas... É bem óbvio terem nos largado em uma ilha isolada como essa. Fomos atrás deles em Las Vegas, depois em Hong Kong então... Espera. Chris! – ela ficou de pé, agitada, como se tivesse descoberto algo grande – As pedras!

- Que pedras?

- As pedras da tiara! A história sobre a Sorriso de Vênus! – ela forçou o seu pensamento – Como era mesmo que a Nana havia falado?... Uma era a Esperança do Deserto, não era?

- A Lágrima do Oriente, a Serenidade do Oceano e a Segredo Ancestral. – ele completou.

Eles haviam atravessado todo o deserto americano com a esperança de encontrar a tiara. Depois foram até o Oriente e, mesmo recuperando o que buscavam, haviam brigado. Agora estavam perdidos em um oceano. Não podia ser pura coincidência a relação desse roteiro com as pedras da tiara.

- O que pretende com isso? – ele se perguntou baixinho, procurando por uma explicação.

***

Escurecera e eles chegaram à conclusão de que não poderiam simplesmente ficar sentados na areia esperando que alguma coisa acontecesse. Então, enquanto ainda havia um pouco de luz, entraram pela vegetação e logo encontraram um lugar com grandes pedras, que tinham uma abertura formando uma caverna, de onde saia um pequeno rio. Porém, o entusiasmo com o abrigo logo foi ofuscado pela descoberta de que suas varinhas e esferas haviam sumido. Qual fosse o motivo que tiveram para que os trouxessem até aquela ilha, queriam ter certeza de que não conseguiriam voltar por conta própria e permaneceriam totalmente isolados.

Assim, Mary teve que recorrer ao seu conhecimento de filmes sobre naufrágios e sobrevivência em lugares inóspitos para tentar coisas que nunca pensara em fazer em sua vida, como acender uma fogueira partindo do básico de esfregar um pedaço de maneira no outro.

Tentou algumas vezes sem sucesso, enquanto Doumajyd arrastava as malas para o abrigo. Logo o dragão tomou o seu lugar nas tentativas, achando que se usasse mais força conseguiriam progredir.

- Então, percorremos o caminho das pedras da tiara. – ele comentou, muito ciente do silêncio e do afastamento entre eles, remanescente da briga do dia anterior.

- Acredito que sim. – disse Mary, observando atentamente, esperando por uma faísca.

- Quer dizer que estava decidido o fato de virmos para cá?

Ela concordou com um aceno de cabeça e continuou:

- E se for assim, ainda resta um lugar para irmos...

Uma centelha de fogo acendeu na madeira e os dois se apressaram em alimentá-la, para poderem criar uma fogueira. Quando essa estava bem acessa, os dois olharam em volta, analisando o que tinham.

A caverna não era espaçosa e nada confortável. Mas agora, com luz, as coisas pareciam um pouco melhores. A segunda decisão de importância, depois do fogo, foi separar nas malas tudo o que tinham e que poderia ser usado.

Mary verificou, com um suspiro, que não havia muita coisa além de roupas. Assim como Doumajyd, ela tinha uma garrafinha de água mineral e pacotes de biscoitos, coisas que ganharam na primeira viagem de avião e que ela esquecera completamente, pois não necessitava delas. Tinha toalhas, xampu e sabonete, o que era um certo alívio. Na mala de Doumajyd também só haviam roupas. Afinal, o presidente da D&M não precisava levar peso em sua bagagem. Se necessitava de algo que não tinha, simplesmente, bastava comprar. A única coisa diferente que encontrara era um cartão de crédito, uma coisa que MacGilleain havia lhe dado para que usasse em caso de emergências, mas que o dragão não sabia exatamente como funcionava.

Dormiram mal aquela noite, usando roupas enroladas como travesseiros, e acordaram cedo para decidirem como iriam se virar até que alguém aparecesse... se alguém aparecesse.

Mary passou o dia andando pelos arredores, recolhendo galhos e pedras que poderiam ser usados na caverna. Fez uma boa reserva de galhos para manter a fogueira acessa e acercou com pequenas pedras. Também conseguiu arrumar pedras que poderiam ser usadas como bancos. Já a missão de Doumajyd era buscar por alimento. Sua primeira tentativa foi um lago no interior, onde haviam peixes. Porém, depois de ter mais engolido água do que pego alguma coisa, ele concluiu que peixes não poderiam simplesmente ser pescados com a mão.

À tarde, depois de ter feito tudo o que podia pela caverna, Mary procurou por frutas, mas todas as que encontrou estavam verdes ou tinham uma aparência duvidosa. Desistindo dos peixes, Doumajyd tentara em vão acertar pássaros com pedras, entretanto sua mira de batedor estava completamente enferrujada depois de tantos anos sem jogar quadribol. Logo desistiu e voltou para a caverna, onde ficou abrindo e fechando o seu relógio, que havia misteriosamente parado de funcionar desde que chegara naquele lugar.

O estômago de Doumajyd roncou alto e ele não conseguiu evitar um suspiro zangado, olhando para os pequenos pacotes de biscoito sem graça, que só durariam até o próximo dia.

Mary voltou pouco tempo depois e se sentou no outro lado da caverna, com ar de derrotada.

Os dois permaneceram quietos, um com mais fome e cansaço que o outro, apenas se limitando a jogarem gravetos no fogo, para que ele continuasse acesso.

***

No dia seguinte, Doumajyd tentou mergulhar no mar, repleto de corais, mas também não teve sorte. Quando os seus olhos começaram a arder por causa do sal da água, ele teve que admitir que precisava de equipamentos adequados.

Mary via, desolada, que não haviam mais biscoitos, que não encontravam frutas e que, embora houvessem muitos peixes, esperar que um bruxo que crescera nunca tendo que usar as próprias mãos para conseguir o que queria os pegasse, era perda de tempo. Sem pensar direito, ela saiu andando pela praia, foi até o monte de pedras e subiu na mais alta, tendo vista de toda aquela imensidão de oceano, e ficou horas gritando, na esperança tola de que alguém a ouvisse, até que o sol se pôs e ela desistiu.

Mais uma vez, naquela noite, eles dormiram mal. Não só pelo desconforto, mas pela preocupação e, principalmente, pela fome. Tinham consciência de que não morreriam por ter ficado apenas alguns dias sem comer, mas sabiam que se não encontrassem algo em breve, logo não teriam forças para continuar tentando.

***

No dia seguinte, Mary levantou cedo, decidida a entrar mais longe na floresta, em busca de frutas. Sentia-se mal, não só pelo estado do seu corpo sujo e seus cabelos desgrenhados pela falta de cuidado, mas pelo seu espírito, cada vez mais nebuloso e negativo. Era algo que simplesmente não podia evitar, já que não encontrava nenhuma saída para aquela situação.

Mesmo assim, ainda se surpreendia em comprovar o fato de que a necessidade era capaz de despertar capacidades que ela nunca imaginara ter, como a visão ampliada que lhe permitiu enxergar pontos amarelos no topo de uma árvore e a sua habilidade em subir pelos galhos. Eram frutas e pareciam estar apetitosamente maduras, não podia deixar que a questão altura e dificuldade em chegar até elas a fizessem desistir do alimento.

Conseguiu atingir ao topo, bem perto das frutas. Tudo o que precisava fazer era esticar uma das mãos, enquanto se segurava firmemente com a outra, e então poderia... Antes que se desse conta, seu pé escorregara no galho e ela caiu, deslizando pelo tronco, batendo pesadamente no chão, rolando para o lado e caindo mais uma vez em um barranco, deslizando até parar dentro de um pequeno rio. Esfolada, molhada, suja, tossindo e dolorida em vários lugares, Mary se ergueu com dificuldade e ficou sentada no meio da água, se sentindo completamente perdida.

Estava presa em uma ilha deserta, sem comida, machucada e sem perspectivas de resgate. Definitivamente não havia como ficar pior do que aquilo. Porém, mal havia terminado de concluir esse pensamento, quando um trovão ressoou por toda a ilha, e começou e a chover.

Completamente vencida, tudo o que Mary pôde fazer foi chorar.

***

Doumajyd teve uma idéia para pegar peixes. Conseguiu encontrar galhos adequados e agora só teria que arranjar algo para usar como rede.

No caminho de volta para a caverna, começara a chover e ele apressou o passo. Se Mary não estivesse por lá a fogueira poderia se apagar com o vento, e seria difícil acendê-la novamente naquele tempo úmido.

Porém, ao avistar o abrigo, paralisou. Viu Mary sentada diante da fogueira, abraçando as pernas e com o rosto escondido, como se chorasse. Mesmo de longe, percebeu os braços e as pernas esfolados dela e a sua roupa toda suja, rasgada em vários lugares. Sem perder tempo, ele largou os galhos que trazia e correu até ela.

- Ei, Mary?! O que aconteceu? – ele se ajoelhou ao lado dela, analisando os machucados de forma preocupada.

Ela tremia e estava toda molhada. Então, agindo rápido, ele pegou o seu casado para cobri-la e colocou mais galhos na fogueira.

- Você está bem? – ele perguntou.

- Tudo bem. – ela respondeu com uma voz fraca.

O dragão a encarou por um tempo. Nunca a ouvira falando naquele tom, totalmente contrário a sua personalidade forte. Mas só conseguiu chegar à conclusão de que ela deveria estar cansada e faminta, e então aconselhou:

- Não se esforce tanto.

- Se não nos esforçarmos não iremos sobreviver! – ela respondeu grossa e irritada.

Agora, ele via que não era somente fome e cansaço. Mary agia como alguém que estava a ponto de desistir.

***

Mesmo depois de escurecer, a chuva ainda caia. Dentro da caverna, cada um em seu canto, Mary e Doumajyd se limitavam a olhar para as chamas do fogo, sozinhos com seus próprios pensamentos.

- O que estamos fazendo? – Mary quebrou o silêncio, pensando alto – Tivemos problemas desde o início e agora isso... É como se fosse um erro estarmos juntos, porque nada dá certo...

- Por que diz isso? – resmungou Doumajyd.

- Só para começar, – ela continuou, mantendo aquele tom de voz sem emoção – se aquela tiara não tivesse existido, não estaríamos presos aqui.

Doumajyd olhou para ela, não acreditando no que ouvia:

- Está falando sério?

Ela ficou em silêncio por um tempo, e então disse:

- Realmente nossos valores são diferentes...

- O quê?

- Se nos casarmos, vamos sempre estar juntos... Mas se, mesmo agora, não conseguimos que as coisas dêem certo, como vamos conseguir que elas melhorem depois?

- Se tiver que dar certo, vai dar certo! – ele respondeu, irritado com o jeito negativo dela.

Então se levantou, pegou um casaco e o vestiu dizendo, no seu tom de líder dos dragões:

- Eu não tenho nenhuma dúvida sobre passar o resta da minha vida com você! – e saiu na chuva, pisando furioso pelas poças d’água.

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