Parte III



Alguém a sacudia com suficiente força para fraturar um osso. Abriu vagarosamente os olhos e deu de cara com seu pai. Ainda estava deitada no meio da estrada do mercado, agora lotada de pessoas que gritavam histericamente, comentando os fatos ocorridos mais cedo. A cabeça de Sherazade mantinha um zumbido excepcionalmente perturbador. Ainda não estava recuperada do choque.

- Sherazade, me diga o que aconteceu aqui? QUEM MATOU A ESSES HOMENS? - E apontou com todos os cinco dedos de sua calosa mão direita, aos cadáveres que recolhiam agora os cidadãos. A jovem, de repente, começou a se lembrar da horrível visão e procurou pelo corpo de Anahita, mas parecia ter desaparecido. - RESPONDA!

- E... Eu não sei pai... Eu só... - Sua voz fraquejava e suas mãos tremiam, acompanhando o ritmo das folhas das palmeiras distribuídas no fim da rua, na entrada da cidade. - Só quero ir pra casa. - Conseguiu dizer, por fim. Não poderia dizer que um demônio tinha matado àqueles homens. Se o fizesse, seu pai sofreria pela reputação de ter uma filha louca. O pai de Sherazade era o Gran Vizir de Xeriar, o Rei persa. Era suficientemente respeitado pela população, ao contrário do rei.

Xeriar, há oito anos, fora traído por sua esposa. Quando descobriu, furioso, matou à sua mulher e começou um grande ciclo rancoroso contra o sexo feminino. Todos os dias ele escolhia uma virgem do reino, com a qual se casava na mesma noite e, no dia seguinte, a matava sem aviso prévio. Desde então foram sacrificadas para acalmar o rancor do rei mais de três mil mulheres.

Sherazade conseguiu se levantar com a ajuda do pai, se agarrando ao seu ombro. Quando começaram a caminhar em direção oposta da área dos acontecimentos, ela dedicou uma última olhada em direção aos corpos e notou algo novo e extremamente chamativo, pelo menos para ela. Um pequeno livro negro repousava no chão, exatamente no local onde estava o corpo de Anahita. Era o mesmo livro que aquele homem levava consigo. Seus olhos brilhavam de desejo por possuí-lo. Precisava de respostas para tudo aquilo e o livro era a única chave. Desvencilhou-se dos braços do pai e arrastou os pés de volta para onde ele estava. Sentia que suas forças voltavam, explicou isso ao pai, quem ainda assim protestou.

- Aquele livro, pai... Era de Anahita. Ela também, pai. - O Vizir parecia ter um derrame. Ele e Anahita eram excelentes amigos desde quando Sherazade se entendia por gente.

Ele soltou, por fim, o braço da filha e assistiu ainda chocado, ela caminhar vagarosamente até onde estava o pequeno livro. Mesmo havendo tantas pessoas correndo de um lado para o outro sem a menor noção do espaço à sua volta, o livro não fora pisoteado uma vez sequer. Nenhuma até que Sherazade o tocasse com a ponta de seu indicador esquerdo e alguém pressionar seu pé envolto por trapos sujos e já bastante envelhecidos encima de sua mão, causando-lhe algo de dor, a qual reprimiu. O livro não sofrera nenhum dano. Pegou de uma vez o livro e correu, sem esperar por seu pai, até a gigantesca construção que se localizava no centro da cidade, a poucos metros dali. Seu lar, o palácio de Xeriar.

Ofegante, entrou em seu quarto com uma brutalidade desnecessária, batendo a porta a seguir. Mais à frente havia uma pequena mesa ocupada por livros abertos e recém-escritos. Ela se apressou e empurrou os escritos para o chão, limpando a mesa completamente e apenas deixando uma pequena e gasta vela. Encaixou perfeitamente o livro no centro da mesa, agarrou a pena de escrever que jogara acidentalmente junto dos livros, acendeu a vela, sentou-se, abriu o livro e começou a levar a pena já molhada até o liso pergaminho quando estacou no meio do caminho.

"O que eu estou fazendo?" Pensou ela, finalmente dando-se conta de seu entusiasmo para com aquele livro negro. "Por que eu escreveria nele? É... É absurdo!" Largou a pena e começou a folheá-lo. Não encontrou nenhum escrito ou desenho. Estava completamente vazio. "Isso é uma loucura, preciso descansar, preciso... Recuperar-me do que aconteceu hoje..." Os pensamentos de Sherazade entrechocavam-se dentro de sua mente, confundindo-a. Não estava quase nada abatida pelas mortes, apenas tinha interesse naquele livro.

Folheou-o diversas vezes e o resultado foi o mesmo, o livro estava em branco. A capa dura tampouco mostrava nada a não ser um tom negro e vazio que repugnava os olhos de Sherazade. Abriu-o na primeira página, pensando no que ia escrever quando, de repente, o livro esquentou levemente e a página começou a expulsar algo parecido com tinta negra. Sherazade não soltava a lateral do livro, apenas continuava a segurá-lo cada vez com mais força, reprimindo o medo. "O que está acontecendo? Esse... Esse livro está... Amaldiçoado...”

As palavras que se formaram estavam em um dialeto completamente distinto do seu, o que assustou ainda mais Sherazade. Queria fechar o livro, mas não conseguia parar de apertar a capa do livro. De repente, o formato das palavras começou a mudar, parecendo-se cada vez mais com o seu dialeto. Logo se pôde ler...

-"Sou Tom Marvolo Riddle". - Leu ela, com a pulsação diminuindo atém normalizar-se. - Por que estou preocupada? É só um... Livro. Um livro enfeitiçado, mas ainda assim um mísero livro. - Ela cochichava para si mesmo, tentando transmitir uma confiança inexistente para o resto de seu corpo. O livro acabara de falar com ela. O que aconteceria se não respondesse? Por via das dúvidas, resolveu responder. Apoiou a ponta da pena e arranhou lentamente o papel. - "E eu sou Sherazade, filha do Gran Vizir da Pérsia”.

E ela ficou observando como o papel absorvia a tinta de suas palavras. "Ainda acho que isto é loucura”.

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