Parte II
O sol parecia ladrar com uma fúria estrondosa enquanto iluminava o chão de pedra. O calor era, há gerações, companheiro daquele povo, um companheiro muitas vezes cruel, mas especialmente aquele dia parecia estar mais vivo que nunca, dizimando a boa vontade de muitos. As ruas eram ocupadas apenas pelos homens e mulheres que tinham sua obrigação diária, ou eram escravos à espera de uma tarefa para apartar o calor de seus pensamentos. Os demais eram protegidos pelas sombras de suas casas ou barracos mercantis.
No centro da poderosa cidade persa se encontrava uma jovem que desde que as pessoas podiam se lembrar, costumava caminhar pela cidade conversando com os conhecidos, buscando por coisas novas e interessantes. Ou seja, demonstrando toda sua curiosidade abertamente. Era a filha mais nova do velho vizir, quem a educou com severidade desumana. Mesmo assim, nada disso reflete em suas características, continuou sendo a garota curiosa, alegre e inteligente que sempre fora desde criança.
Caminhando timidamente ela cruzou o mercado até uma velha e discreta barraca, a qual cuidava uma senhora que aparentava passar de seus noventa anos, mas que sempre tinha um sorriso em seu enrugado e fatigado rosto. O que era mais estranho nela era que ela tinha essa aparência há muitos anos. Muitos boatos vagam pela cidade sobre ela, mas ninguém tem más intenções quando se trata da velha vendedora de livros.
- Olá, jovem Sherazade... - sua voz era rouca e sussurrante, digna de uma pessoa de tamanha idade - ... Acho que você chegou no momento certo...
- Você sempre me diz isso, senhora Anahita. - Disse Sherazade, com um tom gentil - Então, a senhora tem algo novo? - Ao dizer isso, ela fez com que seus olhos vagassem pela pequenina barraca de livros de Anahita, a procura de algo que ainda não vira.
- Não, querida, era sobre outra coisa que eu queria te falar. - Sherazade deixou de olhar os pergaminhos e voltou seu olhar à anciã. Parecia importante - aquele homem com quem você se encontrou dois dias atrás... O Ocidental... - Sherazade arregalou os olhos negros e vivos quando ouviu.
- Não sei como você sabe sobre Marvolo, mas não quero tocar no assunto. - Porém a velha continuou a falar, como se não fosse interrompida.
- ... Ele carrega um livro com ele, não? - o olhar normalmente calmo da velha Anahita começou a mudar drasticamente, tornando-se obsessivo. Havia algo de errado. - Preciso que você o pegue para mim.
- O que há de errado com a senhora? Você está bem? - Sherazade começara a preocupar-se com esse comportamento repentino da velha. Preocupava-lhe também seu interesse em Marvolo, um homem ocidental que chegara à cidade há dois dias. Sherazade sentia que havia algo de especial nele, apenas não sabia o porquê.
Anahita pareceu acalmar-se e voltou ao normal. Fez uma careta de cansaço e cobriu o rosto com suas mãos enrugadas. Isso preocupou Sherazade ainda mais. Conhecia aquela velha desde que tinha dez anos, quando foi ao mercado com seu pai um dia e se interessou pela barraquinha de livros, mas nunca a tinha visto tão desanimada.
- Sabe minha filha, estou no fim de meus dias. Aquele livro significa algo muito importante para mim e queria recuperá-lo antes de minha morte. - Àquelas palavras espantaram Sherazade, quem recuou um passo e levou a mão à boca. - Você é uma boa pessoa, uma ótima garota. Poderia fazer esse último favor para mim?
Sherazade quis explicar que não sabia onde encontrá-lo, ou onde procurar por ele, mas não conseguiu. Apenas continuou olhando fixamente o enrugado rosto da velha. Pesava-lhe o coração quando deixou escapar que faria o possível, mas foi no mesmo momento em que Anahita começou a expressar um rosto de nítido horror, com os olhos fixos em algum ponto atrás de Sherazade.
A jovem se virou rapidamente, assustada, mas não pôde ver nada de estranho. Quis perguntar o que acontecia, mas não houve tempo. Anahita começara a correr como uma pessoa três vezes mais jovem que ela, com desesperação e energias fora do normal. Todos na feira apontavam e exclamavam enquanto a aparentemente velha mulher atravessava as muitas barracas.
O que aconteceu a seguir foi a coisa mais misteriosa e rápida que Sherazade já vira. Ela estava parada, ainda em frente à barraca, assistindo a fuga frenética da vendedora de livros quando, de repente, um clarão que conseguiu ofuscar a própria luz do sol encheu a estrada, tendo como fonte um jorro de luz verde que passou por cima do ombro direito de Sherazade e apenas parou ao atingir em cheio as costas de Anahita, quem caiu pesadamente no chão.
O mercado se tornara agora um caos. Pessoas gritavam e corriam assustadas. Algumas iam socorrer a Anahita, mas ainda menos pessoas se atreviam a tocá-la. As mãos de Sherazade tremiam sem cessar, suor escorria por sua testa, entre outros efeitos colaterais do medo. Aquela era a mulher que desde a infância lhe havia ajudado em qualquer momento e que agora estava caída no meio do mercado após uma mudança drástica de comportamento, como se fosse outra pessoa.
Quando suas pernas finalmente resolveram obedecer e começar a andar, ela imaginou que seus olhos inundados em lágrimas lhe enganavam, já que tinha a certeza de acabar de ver aparecer do nada a um homem alto e com os cabelos castanhos e que usava vestes estranhamente negras. O homem que ela tinha conhecido dias atrás acabara de aparecer em meio aos poucos homens que socorriam a Anahita. Sherazade observava seus movimentos, como se previsse o que aconteceria depois.
Ele fez um movimento de braço e todos os homens que ali estavam pareceram ter sido puxados por espíritos e caíram no chão. O homem se agachou onde estava Anahita e assim ficou por um bom tempo. Tudo o que acabara de acontecer resultava rápido demais para que Sherazade pudesse processar. Apenas tinha certeza de uma coisa: Anahita corria perigo perto daquele homem. Por impulso, começou a correr e a gritar por sua amiga.
- SAIA! VÁ EMBORA! SAIA DE PERTO DELA! - Mesmo com esse escândalo, o homem não parecia abalar-se. Continuava na mesma posição, sem dar um bom ângulo de visão a Sherazade. Quando ela finalmente chegara perto o suficiente, o homem simplesmente desapareceu com um estalo. Com o susto, Sherazade caiu no chão áspero, arregalando os olhos para o lugar onde há um momento estava o estranho homem. Vagarosamente, moveu sua cabeça até o corpo a sua frente, esperando encontrar a Anahita.
Lá estava ela. Assim como os homens que vieram ao seu socorro, não apresentava qualquer tipo de hematoma ou ferida. Apenas perecia dormir. Parecia estar sonhando algo aterrador devido à seu rosto destorcido em horror. A jovem se arrastou um pouco mais para perto do cadáver, com lágrimas de desesperação. Talvez aquele demônio ainda estivesse por ali, invisível. Mas não importava, Sherazade não poderia fazer outra coisa que não fosse chorar por sua vida. E foi isso o que fez. Agarrou-se ao corpo da velha Anahita e começou a chorar, aos berros, expulsando toda a dor que sentia.
Mas esse sentimento logo se dizimou quando sentiu uma mínima vibração no cadáver. Esperançosa, ela olhou para seu rosto. No mesmo momento, a empurrou para longe, gritando desesperadamente. O horror agora era devido ao rosto da velha. Transfigurava-se lentamente para o de um homem. Um homem de quase cinqüenta anos e com uma cara magricela e os cabelos loiros. Era uma visão surreal e atordoante. Não suportando, Sherazade logo perdeu o conhecimento.
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