Capitulo 8
Capítulo 8
— Meu Deus! — murmurou Harry, sentindo que o solo não parecia mais estável.
Gotas de suor escorriam por sua testa. Os batimentos cardíacos estavam acelerados. Sua experiência lembrava uma "viagem" de drogas nos anos sessenta. Um pesadelo.
Sentou-se numa poltrona próxima, abrindo bem os olhos para convencer-se que continuava preso na Bradley's, durante um blecaute. A visão que sua mente destacou foi a silhueta de Mione, perambulando pela seção de lingerie. Parou em frente a um conjunto de seda, acendendo sua lanterna para verificar o tom de vermelho e disparando o poder de visualização de Harry. Carolyn jamais usava outra cor que não fosse branco ou bege, dizendo que não era profissional.
Quanto mais pensava sobre o assunto, mais se perguntava por que escolhera Carolyn. Afinal era uma mulher com uma profissão que requeria toda a energia possível. Havia se casado durante a faculdade, conforme ela explicava, e fora um relacionamento dissolvido sem o menor complexo de culpa. Não tivera filhos, e pensando bem, nunca havia crianças perto dela. Harry sabia que seus filhos eram crianças difíceis às vezes. Quando pensou em casar-se outra vez, cansado de viver sozinho, Carolyn estava bem à mão.
Começava a imaginar se o destino não interviera em sua vida para certificar-se de que não cometeria outros erros no futuro. E o futuro de seus filhos estava atrelado ao dele, portanto não podia estragar as coisas para eles. Todos já tinham sua cota de problemas com o velho Frank, sua parte era tentar construir um lar agradável para eles.
Voltou a atenção para Mione, que apanhava algumas peças dos cabideiros para colocá-las sobre o próprio corpo. Não se tratava de nada exageradamente sexy, porém a imaginação de Harry progredira muito durante as últimas horas no tocante a ela.
— Procurando algo para vestir no caso de passarmos a noite aqui? — indagou ele, aproximando-se em silêncio.
Mione recolocou com rapidez um artigo de volta à prateleira, mas Harry teve tempo de distinguir um conjunto negro de lingerie.
— Você não devia estar cuidando de seus filhos em vez de ficar me seguindo por aí?
Harry estava pronto a responder quando algo atingiu suas narinas. O Desejo da Meia-Noite. O perfume que ele sugerira há pouco. O aroma nela ficava bem melhor do que no frasco.
— As crianças estão se virando muito bem sem o pai se quer saber, portanto resolvi saber se estava tudo bem com você.
Mione arqueou uma sobrancelha. Uma expressão que enviava a mensagem de que ela não acreditava nem um pouco naquilo.
— Mas que gentileza — respondeu ela. — Mas se fosse você não me preocuparia muito. Venho tomando conta da minha pessoa há muitos anos, e tenho me saído bem.
— Claro, tem se saído muito bem. Por isso está presa numa loja de departamentos em vez de estar casando. Ele não ficou muito contente com você, ficou? Enfim, acho que é bastante natural que o noivo fique alterado com a ausência da noiva na cerimônia de casamento.
— Já terminou de espezinhar? — indagou ela, em tom frio.
— Não estou espezinhando, Mione. Não faria isso com você. Mas ficou claro que ele não aceitou sua explicação. Pense como ele ficou com cara de bobo na frente de todos que foram ao casamento enquanto os minutos passavam e você não aparecia. O sujeito ficou preocupado, pensando que você estava em algum hospital? Ele não pensou nisso, pensou?
— Não. Mesmo porque o motorista da limusine telefonou para ele enquanto estava na frente da loja. Eles escutaram as notícias sobre a falta de energia nos rádios dos carros. Ainda bem que as estações de rádio têm sistemas de reserva que funcionam de verdade.
— É. Pelo jeito você não ficou animada com a reação dele, ficou?
Por um instante ela estreitou os olhos, e ele poderia jurar que as pupilas emitiam pequenas farpas. Depois o rosto assumiu uma expressão neutra e olhou em volta.
— Gostaria que eles tivessem um departamento de livros aqui. Pelo menos alguns de nós poderiam passar o tempo atirando os volumes pesados na cabeça das pessoas que merecem.
— O departamento infantil tem uma estante onde tem alguns livros infantis famosos. Não sei se são suficientemente pesados, mas contém cenas de antropofagia, bruxaria e assassinato.
Ela torceu o nariz.
— Não. Talvez se tivessem uma edição completa do dicionário, com vários volumes.
Um instante de silêncio dissipou a hostilidade. Mione espreguiçou-se, esticando os braços para cima e girando o pescoço para aliviar a dor na nuca.
— Posso lembrar de várias vezes em que eu desejei ter tempo para fazer o que quisesse. Veja agora — disse Mione, estendendo os braços. — Tenho todo o tempo do mundo e gostaria de ter algo construtivo para fazer. Sou difícil de satisfazer, não acha?
— Dizem que a gente deve ter cuidado com os pedidos que faz, porque pode conseguir — murmurou Harry, aproximando-se.
— Você é sempre tão bem-humorado assim? — quis saber Mione, desconfiada.
— Só quando tento melhorar uma situação ruim. Desculpe, escapou.
Ela apoiou os cotovelos e as costas no balcão, erguendo o corpo para sentar-se e balançar as pernas. Observou-o pensativamente durante algum tempo, depois pareceu decidir-se. Bateu no espaço vazio a seu lado, num convite silencioso.
— Não se preocupe, não vou morder — garantiu ela, quando Harry demonstrou hesitação.
— Isso não significa que eu não vou morder.
— Então foi bom eu ter tomado vacina anti-rábica. Além do mais, não quero ficar sozinha no momento — declarou Mione, olhando para outro lado. — Desde o começo eu sabia que Kevin era um sujeito preocupado com as aparências. Sempre foi consciente de sua roupa, de seu cabelo e da forma como os clientes o enxergavam. Queria ser visto como um sujeito legal, a fim de que todos voltassem para comprar novamente com ele. Assim como ele bajula as grandes companhias para conseguir vendas em quantidades maiores.
— Você ama esse homem?
Harry não tinha certeza de querer saber a resposta, mas acreditava que seria melhor ouvir a verdade. Sua ansiedade aumentou à medida que os segundos se escoavam. Mione suspirou profundamente.
— Eu amo a idéia de casar e ter uma família. Amo a idéia de passar minha vida com outra pessoa.
— Isso não significa que você ame esse homem.
— E quanto à sua noiva? Você a ama?
— Eu e ela temos um relacionamento muito bom.
— Você não respondeu minha pergunta.
— Calma, ainda não acabei de falar. Mas quero escutar a sua resposta primeiro. Também não respondeu minha pergunta.
Mione sorriu. Ela mesma se enfiara naquele beco sem saída. Estava consciente das alterações em seu rosto enquanto passava por vários estados de espíritos. Quando falou, sua voz era pouco mais do que um murmúrio:
— Quando Kevin me pediu em casamento pareceu mais um negócio do que um assunto de amor. Falou nos filhos crescendo para tomarem conta de suas agências e insinuou que eu deveria desistir do meu trabalho. Talvez eu não quisesse escutar, mas ele disse tudo. Embora eu não tivesse percebido nem uma vez a palavra amor quando falou sobre casamento...
Harry sentiu-se tentado a fazer um comentário ácido sobre o sujeito, mas resolveu ficar quieto. Pediu a verdade e foi exatamente o que obteve.
Depois disso, como podia admitir que ele mesmo não mencionara a palavra amor na proposta de casamento? Tivera a idéia de casar-se outra vez e acreditou que Carolyn seria uma boa esposa. A idéia de formar novo lar para seus filhos fora a mola, e não como da primeira vez com Marie, ambos apaixonados e prometendo amor eterno um ao outro. Tiveram três filhos maravilhosos e um divórcio desagradável. Aonde o amor o levara?
— Alguns casamentos são baseados em outras razões que não o amor e funcionam melhor — afirmou ele, escolhendo as palavras.
Afinal, era o dia do casamento dela.
— Pessoas que casam por outros motivos provavelmente não têm coração — disse Mione, olhando distraída seu diamante.
— E quanto aos casamentos por interesse?
— Cada vez há mais divórcios entre os casamentos por conveniência. Mas não é o meu caso. Vi que ia completar trinta anos e descobri que desejo mais coisas da vida do que dirigir minha agência. Por isso tive vontade de casar.
— Eu também. Não que eu espere que Carolyn abandone a carreira para cuidar de crianças, mesmo porque ela é uma profissional eficiente demais para ceder muito tempo. Depois, não achei que fosse certo pedir que ela ficasse em casa, onde passo a maior parte do tempo, sentado entre quatro computadores.
Começou a sentir-se culpado outra vez. Ainda tinha problemas para equacionar sua atração por Mione com o noivado com Carolyn. Mas teria de conversar com sinceridade sobre o assunto, já que casar com a advogada madrasta estava tão fora de questão quanto ela casar com esse vendedor de carros.
— Quatro! — admirou-se Mione.
— É que às vezes preciso trabalhar em mais de um programa ao mesmo tempo. É mais fácil, e às vezes necessário trabalhar em mais de um computador.
— Se trabalha tanto assim para fazer jogos, fico admirada que encontre tempo para viver.
— As vezes fico sem sair de casa por semanas. Quando estou perto do final, tenho certa tendência a esquecer qual é a hora do dia, ou o dia da semana.
— E como se arranja com a alimentação? Vive de comida descartável enquanto está mergulhado nos jogos? — indagou ela.
Harry respirou fundo, sentindo o aroma sensual do perfume como uma aura envolvente e convidativa. Os músculos do estômago contraíram-se e em sua mente surgiu a imagem de uma cama. Teria de ser uma bem confortável, decidiu ele, do tipo que possui cortinados para garantir a privacidade; os lençóis seriam de seda. Um pouco de música, talvez jazz, em variações mais quentes. Respirou fundo mais uma vez e balançou a cabeça, como se assim pudesse expulsar os pensamentos inconvenientes. Nunca imaginara que um perfume pudesse criar um clima tão erótico. Não que estivesse reclamando, claro.
— Que forma de descobrir que nunca deveria ter marcado o casamento — murmurou ela.
— Mione, sinto muito.
O sorriso dela deu a impressão de aquecer o ar.
— O quê? Não vai dar nenhum conselho nem dizer: "Eu bem que avisei"?
— Você não merece. Mas por outro lado eu estava começando a pensar se ele merece você...
Harry inclinou-se e apanhou uma mecha de cabelos entre os dedos, passando-o por sobre a orelha de Mione. Os dedos sentiram o calor da pele. Teria sido sua imaginação ou ela se aproximara alguns centímetros? Um pouco mais e os lábios estariam a.ponto de se tocar.
— O que vocês estão fazendo?
Harry recuou e voltou-se para encarar seu filho menor.
— Estamos conversando. Onde estão seus irmãos? — perguntou Harry, tentando ganhar tempo para acalmar seus hormônios.
— Não sei — respondeu Brandon, encolhendo os ombros.
— Você devia estar junto com eles.
— Eles disseram que não era para ficar perto deles, então vim procurar você.
— Acho que preciso conversar um pouco com esses meninos sobre diplomacia — resmungou Harry. — Brandon, você sabe que não deve andar por aí sozinho.
— Não sei por quê. Não posso sair daqui porque as portas estão trancadas. E não quero mesmo ficar com eles. Quero ficar com vocês — declarou o menino, olhando para Mione.
Ela desceu do balcão e abaixou-se ao lado dele.
— Vamos lá, caubói.
Ajudada por Harry, Mione içou Brandon até o balcão, depois acomodou-se. Brandon olhou para cada um deles.
— Que tal se a gente fizer um jogo?
Harry logo pensou num que seu filho ainda não tinha idade para jogar, e era para dois jogadores.
— Pensei que você estivesse cansado e pronto para dormir agora — argumentou Mione.
Os olhos de Brandon se arregalaram, e a cabeça movimentou-se numa enfática negativa. Ela riu e abraçou o menino.
— Acho que daqui a pouco você vai estar pronto para dormir.
— Mas eu não tenho nenhuma das minhas camas aqui — argumentou ele. — Só consigo dormir na minha cama.
— É mesmo. Foi impressionante como você conseguiu dormir bem no verão passado, quando a gente foi passar uns dias na Disneylândia. Apagou como uma vela.
— Camas de hotel são diferentes.
— Uma pessoa tão jovem e tão lógica — comentou Mione. — Sabe, você não é o único por aqui que está ficando com sono. Talvez a gente possa arrumar uma coisa legal para todos.
— O quê? — quis saber Brandon, tão desconfiado quanto se a sugestão tivesse partido do irmão mais velho.
— Não sei — admitiu ela. — Mas vamos ver o que podemos conseguir. Não custa perguntar.
Ela desceu do balcão e estendeu a mão para ajudar Brandon.
De mãos dadas, partiram. Ela olhou por sobre o ombro.
— Você vem ou não?
Harry suspirou e saltou para o assoalho.
Seguiu mais atrás, observando os dois à frente com a luz da lanterna de Mione. Recordou-se da reação quase violenta de Brandon ao saber que iria passar o dia com Carolyn. A moça parecia ter um tipo de mágica no que diz respeito a garotinhos. E garotões também, como ele mesmo podia atestar. Algo lhe dizia que Brandon não seria tão amistoso com Carolyn.
Sentia uma pontada de culpa quando pensava sobre o assunto, pois havia momentos em que percebia que Carolyn ficava em lugares secundários em sua lista de prioridades. Se tivesse coragem de ser honesto a respeito, sabia que Carolyn o colocava abaixo de seus compromissos sociais e de negócios. Sempre fizera as coisas à maneira dela, por ser mais fácil do que voltar a sair outra vez para namorar.
Inicialmente tivera a intenção de passar o dia com os filhos, falar mais sobre Carolyn antes de juntar as duas partes. Porém ela tivera a idéia do churrasco e Harry acabara por aceitar, acreditando que a sugestão fora dele. De repente, percebeu que isso acontecia com muitos outros assuntos. De alguma forma ela o manipulava.
— Por isso ela ganha tantos processos — resmungou em voz baixa.
— Você está bem? — quis saber Mione, olhando por sobre o ombro.
Antes que ele respondesse, Eric e Sônia se aproximaram.
— Estávamos procurando vocês. Falamos com o gerente e ele disse que podemos usar o mostruário da seção de acampamento para as crianças dormirem. Se vocês não se importam, queríamos reunir todas para contar histórias de fantasmas — afirmou Sônia, olhando para Brandon. — Seu irmão disse que sabe contar umas histórias muito assustadoras.
— Só se você gostar de muito sangue — esclareceu o pai. — Tem certeza de que quer fazer isso?
— Adoramos crianças! Achamos que se eles ficarem reunidos e entretidos com alguma coisa podem dar um pouco de sossego aos adultos. Sua filha se ofereceu para ajudar a cuidar de todos.
Harry deixou cair o queixo.
— Lisa se ofereceu? Mas ela nunca se ofereceu para nada na vida, a não ser que obtenha vantagens.
— Talvez seja exatamente do que ela precisa — disse Mione. — Ela está se sentindo entediada hoje, e isso dará a ela o que fazer.
— Ela não é a única — lembrou Harry. — Agradeço muito o que estão fazendo. Eu seria louco de convencer vocês a desistir disso.
— Será como ter nossos netos conosco — lembrou Eric, sorrindo para a esposa. — Só quando nossos filhos cresceram é que percebemos a falta que nos fazem. Ainda bem que temos um ao outro.
Mione reparou na ternura existente na troca de olhares entre o casal. Emocionou-se. Não conseguiu lembrar-se de alguma vez em que Kevin a tivesse olhado daquela forma. Tinha certeza de que Eric e Sônia haviam sido um casal apaixonado na mocidade. Lembrou-se de sua viagem ao futuro e estremeceu. Sabia que quando saísse da loja iria sentar-se com Kevin e conversar longamente. Ele iria escutar algumas coisas que não o agradariam, mas sentia-se obrigada a conversar sobre o que descobrira nas últimas horas. A primeira coisa que diria seria a respeito das mudanças a serem feitas se o casamento fosse mesmo acontecer. Tinha vontade de assumir compromissos, mas ele teria de fazer algo também. Seria melhor passar os próximos dez anos sozinha do que estar ligada a um chauvinista como o de seu sonho. Se isso acontecesse, terminaria por odiá-lo. E o que era pior, odiaria a si mesma por ter casado com ele pelos motivos errados.
Harry fez uma careta ao escutar um horripilante grito infantil.
— As crianças estão muito excitadas com tudo o que está acontecendo — explicou Sônia, sorrindo.
— Talvez quando perceberem que estamos nos acomodando para passar a noite se aquietem um pouco.
— Mal posso esperar para ver todos sob controle — declarou Lisa, aproximando-se do grupo. — Sugeri que usássemos gás narcótico, mas parece que a loja não tinha. Acho que não têm tudo, afinal.
Harry mal conseguia acreditar em seus ouvidos. Sua filha fizera uma piada? Aquela menina que odiava o mundo algumas horas atrás? De repente ela se oferecia para ajudar uma estranha a tomar conta de várias criancinhas quando prometera jamais trabalhar como babá.
Não ia discutir os motivos. O sorriso sincero deixou que ela percebesse seu orgulho.
— Alguém precisa ficar de olho em Davis e Brandon — explicou ela com um suspiro sofrido. — Principalmente Davis. Ninguém sabe o que ele é capaz de fazer quando está sozinho.
— E eu que tinha esperança de que alguém pensasse que ele estava à venda e comprasse o Davis.
— Eu escutei essa — disse Davis, as mãos na cintura, encarando o pai. — Você fica dizendo isso, mas sabe muito bem que ninguém em seu juízo perfeito iria comprar um cara como eu.
— Isso é verdade — concordou Lisa.
— Pelo que eu já vi, as crianças não mudaram muito ao longo dos anos — riu Eric. — Agora, por que vocês pais não procuram um lugar confortável para passar a noite? As crianças vão ficar bem.
— Isso, vamos tomar conta delas — reforçou Lisa, para não ser incluída entre as crianças.
Harry olhou na direção de Mione. Que tipo de lugar tranqüilo se podia descobrir numa loja de departamentos? Ainda assim, sempre existia esperança. As mulheres que vieram juntas às compras provavelmente dormiriam juntas. O casal mais velho ficaria com as crianças. Ao que parecia os empregados permaneceriam em seus alojamentos. Não sabia que chances tinha com o que restara, mas com certeza não pretendia perder nada por deixar de tentar.
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