Capitulo 3
Capítulo 3
Quando, finalmente, encontrou o assistente do gerente, ele parecia sentir dor. Ele gemeu quando Mione aproximou-se.
— Madame, sinto muito que tenha perdido seu casamento, mas a verdade é que não faço a menor idéia sobre quando poderemos sair da loja — começou ele, antes que ela tivesse oportunidade de dizer alguma coisa. — Nossa equipe de manutenção está trabalhando, mas com o número reduzido de técnicos e os problemas que podem aparecer, como peças de reposição e estoque reduzido, é uma tarefa quase impossível.
— Calma, moço, não vim aqui para reclamar. Só queria pedir um favor especial. Sei que sem as caixas fica mais difícil, mas eu gostaria de tirar meu vestido — disse ela. — Andando pelo escuro com ele fica mais fácil estragar ou rasgar. Tenho uma conta em seu estabelecimento e posso assegurar que o crédito é bom. Pelo menos pude usar para comprar meias enquanto ainda havia energia.
Ele suspirou aliviado.
— Finalmente um assunto que eu posso resolver. Não há problema algum em adquirir qualquer mercadoria que necessite — disse ele, retirando um cartão do bolso. — Peça para os balconistas anotarem os totais nesse cartão e registraremos tudo quando a energia retornar. Se quiser, pode estocar seu vestido no departamento de noivas.
— Muito obrigada — respondeu Mione, aceitando o cartão. — Sabe, é que eu me imaginei saindo daqui com o vestido em pedaços, como se fosse um fantasma inglês.
— Gostaria de poder fazer mais pela senhorita. Tenho certeza de que o noivo deve estar muito preocupado.
Mione engoliu mais uma vez a parcela de culpa que a menção ao noivo angustiado provocava. Uma segunda pontada advertiu-a de que não estava tão preocupada quanto devia.
— Tenho esperança de que ele já saiba o que aconteceu. Minha limusine já se foi, e acredito que o motorista tenha avisado a igreja, onde está meu noivo. Ele deve saber que estou bem e também onde estou. Agora, se me dá licença, vou fazer compras — despediu-se ela, com um sorriso encantador.
— Não foi bem isso o que você planejou fazer no dia do casamento, foi? — perguntou ela a si mesma quando se afastou o suficiente. — A esta hora deveria estar na igreja, e depois comparecendo à recepção que mamãe organizou.
Não quis admitir que em algum ponto oculto de sua mente havia um suspiro de alívio.
— Que piscina da hora! — exclamou Davis, impressionado com a grande piscina de plástico armada na seção de jardinagem.
Harry desejou que aquela quantidade enorme de água estivesse do lado externo do pátio.
— Não chegue muito perto — avisou ao filho.
Davis era conhecido por suas atitudes inesperadas, de acordo com a mãe a manifestação da teimosia paterna. Porém depois das batalhas judiciais durante o divórcio, ele percebeu que era dócil e maleável, comparado à esposa.
— Uau, que legal se a gente encontrasse um cadáver boiando na piscina. Aqui no escuro, ninguém ia saber quem era o assassino, nem quem seria o próximo...
— Eu não quero ser assinado — declarou Brandon, com ar preocupado.
— Assassinado — corrigiu o irmão.
— Davis só está inventando uma história, seu bobo — disse Harry, fuzilando o filho mais velho com o olhar. — Mas ele sabe também que pode imaginar o que quiser, mas deve guardar para si. Senão pode ter uma surpresa desagradável.
O menino não pareceu alterar-se com a ameaça.
— Como estamos trancados, e meu Game Boy está longe de mim, no carro, acho que não pode fazer muita coisa para me castigar, pai.
Harry aproximou o rosto do filho até que ficassem a poucos centímetros um do outro.
— Pode ser. Mas algum dia todos nós vamos sair daqui, e acho que posso gastar meu tempo pensando em algum castigo apropriado para você, meu jovem.
Davis engoliu em seco.
— Faz sentido, pai.
— Ótimo. Sabia que concordaria — Harry voltou-se para o filho menor. — Brandon, você é o menor, portanto o alvo mais fácil para um sujeito de língua grande, que parece ser espertinho demais. Tome cuidado. Não acredite em tudo o que ouve.
Davis deu de ombros e voltou a examinar a piscina, mantendo um olho no pai. Nos sete meses de ausência, esquecera que Harry descobria suas intenções com maior rapidez que a mãe. Não era como Frank, que só percebia quando já era tarde demais. A mãe o mandava de castigo para o quarto, reparando que isso não parecia incomoda-lo, até resolver tirar-lhe o computador. Depois disso, foi um inferno.
— Seria bom se nos deixassem nadar. Não temos culpa nenhuma do que está acontecendo. Não querem nos manter contentes?
— Davis, conhecendo você como eu conheço, essa falta de luz poderia muito bem ser culpa sua — declarou o pai.
Detestava imaginar o que Carolyn estaria pensando. Não podia nem ligar para explicar o ocorrido. Quer dizer, ficar trancado numa loja por causa de uma falta de energia era motivo suficiente para ele, mas não sabia se a namorada teria a mesma visão das coisas.
Harry assobiou ao reparar que Mione se aproximava.
— Então é assim que a noiva parece na vida real?
— Considerando o que paguei por meu imaculado vestido de noiva, não tenho a menor intenção de estragar tudo. Achei que esse modelo era mais conveniente para sentar no escuro durante a falta de energia.
Harry observou um par perfeito de pernas abaixo do calção jeans que ela combinara com uma camiseta cor-de-rosa. Embora tivesse visto incontáveis mulheres em camisetas daquela cor, não se recordava de nenhuma que parecesse mais feminina do que aquela de gola em V, combinada com os brincos de pérolas e a maquiagem de noiva. O efeito deveria ser exótico, mas em Mione parecia tão natural quanto uma roupa para o cotidiano. Para dizer a verdade, ele dispensaria o enorme anel de diamante na mão esquerda. Aprovara porém a transformação dos sapatos de salto em sandálias.
— Eu disse a eles que deveria comprar esses artigos a preço de liquidação — disse ela.
— Por quê?
— Bem, eu tenho conta aqui. O mínimo que eles podem fazer é oferecer incentivos para manter seus clientes felizes — justificou Mione, olhando ao redor. — Esse é um ótimo lugar para crianças. A gente sabe pelo modo com que seus filhos estão admirando a piscina.
Harry olhou por sobre o ombro. Davis ainda parecia interessado na piscina, ao passo que Brandon tivera a atenção despertada por uma elaborada vitrina de super-heróis. Lisa parecia entediada pelos acontecimentos, com cara de quem preferia estar a mil quilômetros de distância.
— Ela já é uma adolescente — disse Mione, baixinho.
— Como?
— Sua filha. Está naquela idade desajeitada em que odeia estar ao lado dos pais porque acha que isso a faz parecer criança. Daqui em diante os pais são invisíveis.
— É por isso que me trata como se eu fosse lixo? — indagou Harry.
— Isso acontece porque os pais possuem o mau hábito de enxergar as filhas como garotinhas em vez de mulheres em formação, como elas querem.
Ele mudou o peso do corpo de uma perna para outra, pouco à vontade.
— Bem, ela é minha garotinha. Lembro quando ela nasceu, quando deu os primeiros passos e quando aprendeu a andar de bicicleta.
— Eu sei, mas agora ela está comprando sutiãs e vai começar o período menstrual.
— Mas ela só tem doze anos. Não quero que cresça tão depressa.
— Desculpe ter de dar a novidade, mas é o que acontece nessa idade. Minha mãe disse que só voltei a agir como um ser humano aos dezenove anos.
— Talvez eu não viva tanto tempo assim — resmungou Harry.
— Espere até seu filho começar a se interessar por garotas e namorar.
Mione riu das caretas de Harry. Aquele homem que parecia tão apavorado perante a perspectiva de crescimento dos filhos era atraente. Ela caminhou devagar até onde as cadeiras de jardim estavam expostas, sob um grande guarda-sol florido. Acomodou-se numa delas, como se estivesse numa praia.
— Como dividem o tempo dos filhos? Um final de semana sim outro não?
— O problema é que ela mora do outro lado do país, em Baltimore, portanto fico com eles oito semanas no verão e feriados alternados. Um sim, outro não.
— Isso quer dizer que acabou de pegar seus filhos e ainda não teve tempo de se adaptar às mudanças.
Harry acomodou-se na cadeira ao lado.
— Estou surpreso que não tenha escrito uma apostila sobre o assunto. Muitos pais poderiam se beneficiar.
— Desculpe, é que tenho tendência a falar demais quando me sinto em situações fora de controle.
— Não precisa se desculpar. O que faz quando não está ajudando pais desajeitados? — quis saber ele.
— Ajudo empregados desesperados. Tenho uma agência de empregos temporários. A Granger Empregos Temporários.
— Conheço. Quer dizer, já vi seus anúncios no jornal. São impressionantes.
— É mesmo? Chamaram sua atenção?
— O suficiente para me estimular a procurar vocês, se eu não trabalhasse por conta própria.
— Fazendo o quê? — foi a vez de Mione demonstrar sua curiosidade.
— Projeto jogos de computadores para a Matrix Software.
— Matrix... não foram eles que lançaram aquele jogo no ano passado... Swordplay? Sobre seres imortais que lutavam pelo direito de ser o chefe?
— Foi um de meus projetos — admitiu Harry, sorrindo.
— O filho do meu primo, que tem dez anos de idade, não se meteu em confusões no Natal graças ao seu jogo. Foi o primeiro que ele não conseguiu terminar em meia hora, e não parou até chegar ao final. Não são parentes com os quais me relaciono, se entende o que quero dizer. Mas posso afirmar que naquele dia o menino chegou muito perto de se tornar um ser humano.
— Fico contente em ter pacificado seu Natal — riu Harry.
Mione aproximou-se como se fosse fazer uma importante confidência.
— Acho que o pestinha vai ser de acordo com o nome: Damien.
— Damien? — repetiu ele, incrédulo. — O mesmo nome do menino-diabo no filme A Profecia?
— O mesmo. Ele tem sido um monstrinho desde que aprendeu a falar e todos temem que ele nunca ultrapasse essa fase horrível. Alguns de nós acham mesmo que a mãe pegou o bebê errado na maternidade.
Harry olhou ao redor, julgando a distância em que os filhos se encontravam antes de falar, em voz baixa.
— Falando como pai de um desses monstros, posso assegurar que existe luz no fim do túnel. Mas não estou ansioso pelo dia em que meu filho tire carta de motorista.
Mione olhou para Davis, que com o olhar mais inocente do mundo passava a mão na água. Brandon estava abaixado com as mãos nos joelhos, examinando atentamente um guerreiro futurista movido à pilha, com quase a altura dele. Lisa continuava alheia, com aquele olhar indiferente que só as meninas de doze anos conseguem ter.
— Como consegue trabalhar quando as crianças estão com você?
— Eu aumento as horas de trabalho antes que eles cheguem, e se ainda tiver serviço urgente, costumo trabalhar depois que eles vão para a cama — respondeu ele. — Fico contente em ter uma atividade que permite essa liberdade de horários, porque agora posso passar meu tempo com eles em vez de ir para um escritório.
— Eles têm sorte — murmurou Mione.
— Pai, olhe o que eu achei! — berrou Davis, correndo na direção deles e parando na última hora. Uma lanterna e um pacote de pilhas surgiram nas mãos do garoto. — A gente pode enxergar melhor quando escurecer com essa lanterna.
Harry esboçou a reação habitual, armando uma careta de reprovação. Em seguida pensou melhor.
— Acho que é uma boa idéia — sentenciou ele, por fim, apanhando o pacote de pilhas da mão do filho. — Mas é melhor falar com o subgerente antes de abrir os pacotes.
— Talvez o departamento de manutenção tenha algumas lanternas para a gente usar — disse Mione. — Deveriam ter iluminação sobressalente também.
— Melhor ainda.
— Pode deixar que eu pergunto — disse Davis, já correndo pela loja.
— Pelo menos você tem um consolo — afirmou Mione. — Ele não pode sair da loja.
— É, mas não é preciso sair para encontrar encrenca — suspirou Harry. — Sabe, parece que ele aprendeu a correr antes de andar. Algumas vezes não sei se ele vai ser um cientista recebendo o Prêmio Nobel ou um dos mais procurados criminosos dos Estados Unidos.
Ela sorriu.
— E quanto a Lisa e Brandon?
— Lisa cresceu do dia para a noite e se transformou nessa pessoa que eu não conheço mais e Brandon quer continuar a ser o bebê da família, porque assim continua recebendo mordomias de todos. Tem medo da mãe e do padrasto. No momento não sei exatamente o quanto ele quer crescer, por isso deixo que tome a iniciativa.
Mione observou Harry, que precisava aparar o cabelo e barbear-se. Os cabelos pretos caíam sobre sua testa como os do filho menor. Ela riu ao notar que ambos fizeram o gesto de afastá-los ao mesmo tempo.
— Mas você não acha que isso é que torna as crianças interessantes? Quero dizer, a maneira como são diferentes umas das outras? Não ia querer que todos fossem iguais, ia?
— Todos como Davis? Deus me livre. Mas não acho que o mundo estivesse pronto para isso ainda.
— E eles iriam comportar-se da mesma forma que você, quando criança, se comportou.
— Sabe que você tem toda a razão, Mione? — admitiu ele. Depois riu. — Não é de espantar que tenham deixado a mãe louca da vida. E seu noivo? É normal?
— Kevin?
Ela fingiu pensar por alguns instantes. Não poderia admitir que chegara a esquecer completamente o noivo... e o casamento. Estava se divertindo muito com Harry. O que não era uma idéia muito sensata, respondeu sua consciência.
— Acho que ele é do tipo normal — respondeu ela, por fim.
— Tem o próprio negócio, também?
Ela assentiu, com um gesto.
— "A Loja do Callahan". Ninguém Bate Nosso Preço.
— Comprei minha caminhonete num rival dele por mil dólares a menos — declarou Harry.
— Ah-ah... mas aposto que você não ganhou uma máquina de fazer cappuccino, ganhou?
— Eu não queria uma. Para dizer a verdade, nem gosto de cappuccino.
— Eu também não. Se fosse você teria feito a mesma coisa.
Harry teve a estranha impressão de sentir o perfume dela. Seria uma coisa sem sentido sentir-se atraído por uma mulher que se casaria naquele mesmo dia.
— Como vocês dois se conheceram? — quis saber ele.
— Ele precisou de um contador quando a contadora dele tirou férias por ter tido gêmeos. Depois da primeira semana, nosso próprio contador descobriu que a nota fiscal estava incorreta. Fui até lá levar a nota correta, ele me convidou para jantar, e... — Mione fez uma pausa, pensando sobre o que dizer. — Bem, a coisa progrediu daí.
— Ele fez você ficar vidrada. Completamente apaixonada.
Ela recordou a proposta de casamento de Kevin, para que se casassem no dia de seu aniversário de trinta anos, de forma que a perda não fosse total. Se bem que o dia em que completaria trinta anos não era sua data favorita do calendário daquele ano. Pior que o medo de envelhecer, porém, era o receio de casar com Kevin pelos motivos errados.
Ao olhar para Harry sentia arrepios pelo corpo e isso jamais acontecera com Kevin. Enfim, podia ser apenas a fraqueza causada pela fome e pelo nervosismo dos últimos acontecimentos.
— Ela não parece mais a princesa, mamãe — disse uma garotinha, apontando o dedinho para Mione.
— Raquel, isso não é educado, minha filha — ralhou a mãe, enviando um olhar de desculpa à moça sentada.
A menina parou, intrigada.
— Ela parecia a princesa antes... por que não parece mais? Despediram você?
Mione sorriu e inclinou-se na direção de Raquel.
—Você é capaz de guardar um segredo? Eu não queria que ninguém soubesse que sou princesa, por isso troquei de roupa. Não diga nada a ninguém, está bem?
A mãe dirigiu um sorriso de agradecimento a Mione e arrastou a filha para longe dali.
— Você lidou muito bem com a menina, parabéns — elogiou Harry, olhando-a com admiração.
Em pouco tempo começou a perguntar-se se Carolyn teria a mesma paciência, ou se iria explicar para a criança a diferença entre princesas de verdade ou de faz-de-conta. As vezes dizia que não conseguia entender como ele era capaz de conversar com seus personagens enquanto os projetava. Mione não teve problemas em aceitar e incentivar a imaginação da menina.
— Qualquer um que me trate como princesa é uma pessoa esperta e inteligente, portanto merece minha atenção — declarou ela, com ar de nobreza, desfeito em seguida pelo riso fácil e contagiante.
— Ela é uma princesa, e não uma bruxa! — disse Brandon, que observara a cena de olhos arregalados.
Lisa fez um muxoxo de desdém.
— Brandon, você precisa parar de escutar os papos do Davis. Princesas não existem!
Harry não conseguia tirar os olhos de Mione.
— Claro que existem — murmurou ele. — E posso garantir que essa moça é uma delas.
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