Capitulo 2



Capítulo 2


— Que diabo! — resmungou Harry, girando nos calcanhares quan­do as luzes da loja se apagaram.
A música suave e o ruído das registradoras foi interrompido abruptamente, ao mesmo tempo que outros ruídos no prédio cessavam.
— Pai? O que aconteceu? — perguntou Brandon, apertando-lhe a mão.
— Uau, será que a loja não pagou a conta de luz? Que legal! — comentou Davis.
Harry agradeceu ao fato de a loja não ter ficado totalmente às escuras. Agarrou a mão do mais velho também e dirigiu-se para a seção de lingerie.
Hermione resmungou e procurou a porta na escuridão total da pequena cabine. Não conseguia nem ver a própria mão à frente do rosto. Finalmente encontrou e abriu a porta de uma vez. Ficou contente ao re­parar que do lado de fora havia luz natural ainda. Tropeçou ao sair, dirigindo-se para o centro da loja.
— Tem alguém aí? — perguntou uma voz assus­tada a seu lado.
Mione percebeu que a voz era jovem, e foi na direção do som.
— Estou aqui. Continue falando para eu achar você — instruiu ela.
— O que aconteceu?
Chris chegou em frente à porta de um dos pro­vadores e abriu-a.
— Acho que acabou a energia. Você está bem? — indagou ela, forçando a vista para distinguir alguma forma na escuridão interna.
A garota estava no interior, segurando um tope de algodão à frente do corpo.
— Eu estava experimentando um sutiã — explicou a menina. — A alça do meu arrebentou, e eu disse a meu pai que não podia ir a lugar nenhum desse jeito.
— Lisa!
— Meu pai — exclamou a menina, colocando rá­pido a roupa.
As duas tinham acabado de deixar a área dos provadores quando a silhueta de um homem e de dois meninos aproximou-se correndo.
— Você está bem? — indagou Harry, abaixando à frente da filha.
— Fiquei um pouco assustada quando as luzes apagaram — admitiu ela.
— Achei um barato — comentou Davis.
Lisa voltou-se e reparou em sua companheira de infortúnio.
— Você está usando um vestido de noiva. Está participando de algum desfile de moda?
Mione sorriu.
— Na verdade estou a caminho do casamento.
— Eu achei que a maioria das noivas conseguia esperar até depois do casamento para gastar o di­nheiro do noivo — comentou Harry. — A propósito, o motorista da sua limusine está lá fora pedindo para você se apressar.
— Se quer saber, eu tinha um fio desfiado em minha meia e parei para comprar um par novo — afirmou ela apressadamente. — Não era possível me casar com uma meia desfiada.
Ele baixou os olhos, apesar da penumbra. Depois olhou para a filha.
— Parece que a gente não vai poder fazer compras hoje, princesa.
— Mas pai, eu já vesti o sutiã novo.
— Acontece que as caixas registradoras não funcionam.
— Acho que a vendedora pode fazer uma nota se você tiver o dinheiro trocado — sugeriu Mione.
Lisa dirigiu-lhe um sorriso em agradecimento e enfiou as mãos nos bolsos.
Mione olhou para Harry. Um homem com três filhos deveria ter uma esposa em algum lugar, embora não conseguisse compreender por que ela não estaria ajudando a filha a comprar um sutiã.
— Será que precisamos ir a esse churrasco chato? — arriscou Davis.
— Pois é para lá que vamos assim que sairmos daqui, e acho bom você se comportar muito bem.
— Ela vai obrigar a gente a comer aquelas comi­das estranhas com brotos e outros legumes — res­mungou Brandon, olhando de lado a noiva. — Você pelo menos vai ganhar bolo no casamento.
Mione ajeitou a bolsa.
— Bolo com cobertura branca e recheio de limão, e mais um com recheio de rum. O noivo achou me­lhor que os convidados pudessem escolher.
— Sem chocolate? — perguntou o menino, desapontado.
— Se eu fosse você, não me preocuparia demais, porque você não vai para lá — aconselhou o pai.
A luz não era muita, porém o suficiente para reparar na beleza da noiva. De uma certa forma, esperava-se que as noivas fossem bonitas mesmo, porém aquela era especial. Não parecia aérea, como as outras noivas que já vira. Que tipo de mulher pararia a caminho do casamento para comprar uma meia? Com a aparência que ela tinha, quem iria notar se a meia estava desfiada?
— Podemos ir — anunciou Lisa, com ar de mártir. - A moça disse que eu tenho o dinheiro trocado, eu só passar no caixa.
— Tenha um bom casamento — despediu-se Harry.
— Tenha um bom churrasco — desejou ela, apressando-se na direção da saída.
Harry e as crianças não estavam muito atrás quan­do ouviram Mione parar e falar com uma das pessoas na multidão em frente à porta.
— Como assim, as portas não vão abrir?
O homem parecia ter dado a mesma explicação varias vezes, para pessoas inconformadas.
— Temos um sistema de segurança muito rígido, madame, e as portas são operadas eletronicamente. Quando a luz falta, elas fecham automaticamente. Como a fechadura é eletrônica, não podemos abrir até que a energia volte.
— Vocês não têm um gerador de emergência? — indagou Harry, aproximando-se.
O homem concordou com um gesto de cabeça.
— Tivemos problemas com o gerador de emergên­cia, mas ninguém podia vir até a semana que vem. Como estamos no feriado, temos poucas pessoas na manutenção. Mas já mandei um dos técnicos cuidar disso. Assim que o gerador de emergência estiver funcionando, vamos abrir essas portas.
Ele arregalou os olhos ao perceber o vestido de Mione.
— Já entrei com ele. E espero que não demorem muito para consertar as portas. Parei aqui a cami­nho do casamento, como pode ver.
— Então estamos presos na loja? Legal! — ma­nifestou-se Davis.
— Devo presumir que se casa hoje — disse o ho­mem da segurança.
— Às quatro horas. Se olhar para fora poderá ver minha limusine esperando.
— Espero que ele esteja ganhando por hora — co­mentou Harry, com a atenção em Brandon, que demons­trava interesse numa pilha enorme de bolas de golfe.
— Não posso chegar atrasada ao meu próprio ca­samento — protestou Mione, impaciente.
— Talvez devesse ter pensado nisso antes de entrar aqui para comprar uma meia-calça — opinou Harry.
— Para sua informação resolvi não usar uma meia-calça hoje — afirmou ela com voz suave, afastando-se.
Ele girou a cabeça para observar o andar da noiva. Havia uma diferença: agora sabia que ela não estava usando meia-calça, o que significava uma cinta-liga para prender as meias, a menos que fossem do tipo que se sustenta. Mas ele apostava na cinta-liga. Pa­recia a coisa certa para uma noiva. A calcinha seria estilo francês com rendas? A idéia de descobrir mais sobre o assunto tornou-se uma tentação. Nada apro­priado para um pai de três filhos que tinha sérias intenções de casar-se em pouco tempo.
— Meu senhor, bem... não podemos ficar aqui. Temos muito o que fazer — queixou-se uma senhora com ar aflito ao porteiro. — Embarcamos à noite num cruzeiro de navio para comemorar cinqüenta anos de casados.
— Tenho certeza de que não vai demorar muito, madame — garantiu o homem, sem muita convicção.
— Vamos fazer alguma coisa — pediu Davis, olhando para os lados.
— Por exemplo?
— Podíamos ir até o departamento de brinquedos para ver os jogos de computador.
— Seria mesmo a melhor hora, porque eles não podem vender nada, e sem energia os jogos não fun­cionam mesmo — lembrou Harry, sentindo certo pra­zer. — Não pensou nisso, hein?
— Puxa vida...
— Não é possível que a gente esteja preso aqui — disse Lisa, inconformada.
— Preciso ir ao banheiro — anunciou Brandon.
Pelo tom desesperado não era a primeira vez que ele externava seu desejo.
— Não acredito! — declarou Mione, inconformada.
— Falta de energia não significa que os telefones também parem de funcionar. Kevin nunca vai acre­ditar nisso.
Ela viera procurar os telefones para descobrir que também estavam inoperantes. Parecia uma arma­dilha do destino, uma trama cujo objetivo era im­pedir seu casamento. Recostou-se contra a parede, numa reação de impotência.
A única coisa em que conseguiu pensar foi voltar até a porta e tentar atrair a atenção do motorista, para que ele entrasse em contato com Kevin. Lembra­va-se de ter visto um telefone na traseira da limusine.
— Espero que esse Kevin seja seu noivo.
Mione voltou-se para deparar com o homem das meias e seus três filhos.
— Eu não vou entrar sozinho lá — afirmou Brandon, apontando a porta basculante do banheiro.
— Vou com você — ofereceu-se Davis, estendendo a mão ao irmão. Só então reparou na noiva. — Oi. Se você não casar, o que acontece com os bolos?
— Davis!
O menino deu de ombros.
— Achei que não custava perguntar.
Os dois garotos entraram pela porta do banheiro.
— O nome dele é Davis? — quis saber Mione.
— Sei que é difícil acreditar, mas se trata de um nome de família. Minha ex-esposa é descendente de Jefferson Davis. Um dos dois nomes tem de ser usado a cada geração. O primeiro nome do avô é Jefferson. Meu filho teve a infelicidade de ficar com Davis.
Ela pareceu intrigada pela explicação. E mais ain­da pelo fato de ele ser solteiro.
— Você não teve voz ativa na escolha do nome?
— Não. Sou Harry Potter. Os três delinqüentes que estão comigo são Lisa, Davis e Brandon.
— Sou Mione Granger. Minha mãe pensou que se me desse o nome de uma tia-avó, ela deixaria todo o dinheiro que conseguiu juntar na bolsa de valores por muitos e muitos anos. A velhinha tinha um dom natural para adivinhar que ações iriam subir, e sabia quando vender, pouco antes de abaixar.
Harry sorriu.
— Ela deixou a herança para sua mãe?
Mione balançou a cabeça, numa negativa.
— Parece que ela sempre odiou o próprio nome, e jamais deixaria o dinheiro para alguém que tivesse a coragem de colocar o mesmo nome numa filha. Acabou deixando tudo para o mordomo e para o lagarto de estimação, um iguana.
— Imagino como esses dois tenham resolvido suas diferenças de opinião sobre como gastar o dinheiro. Acho que tinham gosto diferente, não?
Ela sorriu. Quando contara a Kevin a mesma his­tória, ele não percebera a ironia da situação como Harry.
— Para dizer a verdade não são todos os iguanas que possuem solo aquecido numa sala climatizada, não acha? E nem todos os mordomos têm seu próprio mordomo.
— Quem ganha o dinheiro em caso de um deles morrer?
— Nunca procurei saber. É preciso entender que o mordomo de minha tia tinha vinte e oito anos quando ela morreu, e gozava de excelente saúde. Provavelmente deve ter arranjado as coisas para que a parte do iguana reverta para ele.
Harry observava a noiva, encantado com a vivacidade das palavras e dos gestos. A maioria das noivas estaria histérica àquela altura dos acontecimentos, mas Mione parecia ter vontade de aproveitar seu tempo e extrair da vida o que pudesse. Imaginou se sua própria noiva teria idéia sobre o que aconteceria no futuro. Se havia uma coisa que admirava numa mulher era a capaci­dade de aceitar as coisas à medida que vinham.
— Ou talvez o iguana tenha conseguido aparecer no testamento do mordomo. Não acha que o iguana seria a primeira suspeita de assassinato se aconte­cesse um "mordomicídio"?
— Não sei. Só sei que se o aquecimento do quarto do iguana fosse desligado, todos suspeitariam do mordomo — completou ela.
— Seria óbvio demais. O velho truque do "iguanicídio".
— Desculpe, mas não tive tempo de pensar em outra coisa para dizer...
— Paaai!
O grito de Brandon no interior do banheiro teve a propriedade de assustar os dois.
— Essa é minha deixa — brincou Harry, partindo para o banheiro.
Mione teria ficado muito mais tempo conversando com aquele homem que parecia partilhar o mesmo senso de humor que ela demonstrava. Melhor ainda em alguém tão bonito como ele.
— Calma, Mione, você vai casar hoje, menina — ralhou consigo mesma em voz baixa.
Suspirou e afastou-se. Precisava descobrir quais eram as possibilidades de saírem dali em pouco tempo. Detestava pensar em explicar aquilo a Kevin, sempre tão organizado e pontual. Era até engraçada a situação, mas acreditava que o noivo não teria vontade de rir.
— Senhoras e senhores, por favor peço que sejam pacientes — explicava o gerente da loja à pequena multidão reunida próxima à luz diurna vinda das portas. Um burburinho de protestos levantou-se. — Desculpem, mas precisam entender que essas cir­cunstâncias fogem completamente ao nosso controle.
— Como diabo pode dizer que foge ao seu controle? Vai me dizer que uma loja desse tamanho não tem ninguém capaz de consertar um gerador de emer­gência? — reclamou em tom irritado um senhor obe­so e bem vestido.
— Meu senhor, posso garantir que temos, e que estão trabalhando no problema. Por algum motivo desconhecido, nossos telefones também estão mudos. Até agora ainda não temos certeza sobre o que acon­teceu, mas posso adiantar que o fenômeno se estende sobre uma área muito grande.
Harry passou o braço no ombro de Lisa, que se sentia bem próxima ao pai. Não reclamou nenhuma vez por ter sido tratada como criança. Davis obser­vava os arredores com interesse, e Brandon agar­rava-se à perna do pai.
— E os elevadores? — indagou Mione. — Será que não tem ninguém preso lá dentro?
— Assim, quem sabe Keanu Reeves vem salvar a gente — brincou uma garota.
— Já verifiquei os elevadores, senhorita, e por sorte estavam vazios quando acabou a luz — res­pondeu o gerente.
— Eu tinha acabado de sair do elevador com meus filhos. Foi Deus quem me salvou — anunciou uma senhora, fazendo o sinal da cruz.
O gerente, mortificado, parecia não saber o que dizer. Davis aproveitou:
— Falando de filhos, quero dizer algo pelas crian­ças. 'Será que você não tem um departamento de brinquedos para deixar a gente enquanto a luz não volta? — sugeriu ele. Apressou-se a acrescentar: — Prometemos não quebrar nada.
— Duvido muito — disse Harry, percebendo que uma dor de cabeça vinha a caminho.
O que mais poderia acontecer num dia como aque­le? Davis insistia:
— Vocês não iam querer que a gente ficasse cor­rendo e gritando por esses corredores escuros, iam? Podíamos ficar todos numa sala, e os pais saberiam que estamos juntos.
— É melhor desistir, Davis — aconselhou Harry.
— Acho que a idéia é muito boa — interveio Mione. — Afinal não sabemos quanto tempo vamos passar aqui ainda. Daqui a pouco as crianças vão começar a procurar o que fazer.
— Meus filhos fazem compras comigo desde pe­quenos — protestou uma loira.
— É verdade, mas você sempre sabia quando ia voltar, e era tudo iluminado. Não temos idéia de quando a energia vai voltar. Principalmente se a área atingida for muito grande.
— É generalizado — informou um balconista. — Liguei um dos rádios portáteis na seção de eletrônicos, e fiquei sabendo que falta energia em vários estados. Eles não têm a menor idéia sobre a causa, portanto não sabem quando vão poder normalizar o abastecimento. Pode levar algumas horas.
Mione consultou o relógio.
— Kevin nunca vai entender isso.
A loira reparou no traje da companheira de in­fortúnio, e imediatamente seu olhar se suavizou.
— Você ia casar agora?
— Ia. A cerimônia devia começar às quatro horas. Mas eu imagino que se o problema for geral, a igreja deverá sofrer a mesma coisa.
— Por quê? O pastor é movido a eletricidade? — indagou Davis.
Harry virou-se, sem conseguir esconder o som do riso.
— Não, Davis — respondeu Mione. — Mas se as luzes não funcionarem lá, nem o órgão, eles não fazem o casamento.
— Oh — fez o menino, com certa decepção. Brandon olhou fixamente para Mione.
— Seu marido tem filhos?
Ela se abaixou para manter o olhar no mesmo nível
— Não, não tem.
— Então você não vai virar uma madrasta má, como a da Branca de Neve? E não vai fazer coisas horríveis com os meninos, não é? Meu pai está nos levando para um churrasco, mas Davis acha que ele vai dizer para nós que vai casar com ela.
— Brandon! — avisou Harry.
Mione olhou para o pai, cuja expressão confirmava a veracidade do que o garoto dissera. Então havia uma mulher na vida daquele homem, afinal. Ela forçou um sorriso antes de voltar-se para o menino.
— Nem todas as madrastas são más, Brandon.
— Mas põe você na prisão, se você fizer coisas erradas. Ou no colégio interno. E tiram os brinque­dos da gente, e fazem a gente dormir com insetos.
Harry gemeu, com a mão na testa.
— Não estou acreditando no que estou ouvindo.
Mione não tirou os olhos do rosto de Brandon e sorriu de forma tranqüilizadora.
— Você acha mesmo que seu pai ia deixar alguém fazer uma coisa dessas com você? — indagou ela com voz macia. O menino balançou a cabeça numa negativa. — Sabe disso, não sabe? Eu também acho que ele não deixaria fazerem nada com você. E apos­to que a moça é muito boazinha.
— Mesmo que seja advogada? — perguntou o menino. Mione precisou apertar os lábios para não rir.
— Mesmo que seja advogada.
— Você só está dizendo isso para ele se sentir melhor — disse Lisa. — Você não sabe de nada sobre nós ou sobre ela, portanto diz coisas que não são verdadeiras para nos acalmar. Somos crianças mas não somos bobos.
Mione encarou a adolescente.
— Acho que não sou perfeita, mas sei que não é decente mentir para uma criança. E nem se deve ficar assustando as crianças.
— Você é tão ruim quanto Frank — explodiu Lisa, olhando em seguida para o pai e afastando-se.
— Pelo menos sei que ela não pode ir muito longe — disse ele, oferecendo a mão para ajudar Mione a levantar-se. — Escute, queria me desculpar pelo que ela disse a você. Ela está naquela idade em que odeia tudo e a todos.
Ela ergueu-se com o auxílio dele.
— Não há o que desculpar. As crianças têm o costume de falar a verdade. Nunca mentem nesses assuntos. Devo presumir que Frank seja o padrasto, certo?
— A popularidade dele com ela não está em alta, no momento.
— Planeja casar outra vez em breve?
Estranhamente Harry sentiu certa relutância em admitir o fato.
— Estávamos pensando em contar para as crian­ças hoje à tarde.
— Como alguém que já teve dois padrastos e três madrastas, sendo que três deles tinham filhos de ca­samentos anteriores, acho que posso sugerir que escute de verdade o que eles têm a dizer. Crianças demons­tram mais bom senso do que os adultos imaginam.
— Ah, uma verdadeira perita em famílias sepa­radas — manifestou-se Harry, repreendendo a si mes­mo pelo tom arrogante.
Afinal ela só estava tentando ajudar. E ele tam­bém acreditava em sentar e conversar com os filhos.
— De primeira — confirmou ela, com uma ex­pressão diferente no rosto.
A mente de Harry viajou algumas horas para o futuro, visualizando a noite de núpcias que ela teria. Lençóis de seda, meia-luz, champanhe gelada...
— Acho que o dia hoje não saiu como você espe­rava — comentou ele, ainda elaborando a imagem de Mione usando lingerie sobre a cama.
— Talvez... — murmurou ela, baixando os olhos para o vestido. — Não é exatamente o tipo de roupa que se usa para fazer compras.
— Você é uma noiva muito bonita.
Ainda a imaginava usando roupas íntimas, bran­cas, de acordo com a tradição. Mas tinha um palpite de que ela ficaria arrasadora com lingerie negra. Sua consciência acusou uma pontada de culpa. Afi­nal era Carolyn que ele deveria imaginar na cama.
Mione fitou o companheiro de infortúnio. A pe­numbra não permitia que se distinguisse a cor dos olhos dele, mas o brilho de interesse a perseguira desde que se encontraram. Sentiu a boca seca.
Nesse átimo de tempo Harry percebeu o interesse dela, como um eco da própria vontade.
A temperatura do lugar deu a impressão de subir alguns graus. Por um instante foi como se algo os atraísse na direção um do outro.
Antes que Mione se entregasse aos próprios sen­tidos, teve a impressão de receber um chute da pró­pria consciência: era o dia de seu casamento! A úl­tima coisa que deveria estar fazendo era pensar em outro homem.
— Acho que vou ver se alguém conseguiu saber mais alguma coisa sobre a falta de energia — mur­murou ela, afastando-se com relutância.
Harry ainda tentava entender o que quase acontecera ao observar o vestido branco flutuando na penumbra. Quando se moveu percebeu que estava tonto.
— Pai? Podemos ir para casa agora? — disse Brandon, puxando o calção do pai.
Harry agachou-se e colocou as mãos nos ombros do filho menor.
— Cara, nós estamos com um problema aqui. A loja está trancada e não podemos sair.
— Por que não chamam alguém que tenha uma chave para abrir por fora?
— Precisam de eletricidade para abrir o mecanismo.
— Deviam ter feito alguma coisa para não acon­tecer isso.
— É, deviam mesmo — concordou o pai, erguen­do-se. — Nosso dia teria sido bem mais fácil.

Mione procurava o assistente do gerente pela loja. Precisava da aprovação do sujeito para um pedido. Quando chegou à seção de sapatos deixou-se cair num banco e tirou os calçados brancos de salto alto. Sorriu para uma mulher mais velha que descansava numa poltrona próxima.
— Muito prazer, meu nome é Sônia — apresen­tou-se ela, com um sorriso.
— Se eu tivesse reparado que esses sapatos aper­tavam tanto, não teria comprado. No momento, por exemplo, a idéia de dançar parece dolorida.
— Eu e meu Eric dançamos a noite inteira na recepção de casamento — confidenciou Sônia. — Nem reparei se meus pés doeram. Acho que nem me importei. Agora, com certeza eu saberia. Estamos comemorando o qüinquagésimo aniversário de ca­samento esta semana. Bodas de ouro. Eric achou que era o momento de partirmos num cruzeiro.
— Que maravilha! Para onde vão?
— Vamos dar a volta ao mundo. Meu Eric acha que temos muito tempo para aproveitar e dinheiro suficiente. Meus filhos gostaram, tanto que ganhei um vale-presente da minha filha mais velha, com o nome dessa loja. Eu tinha a esperança de conseguir comprar hoje tudo o que precisava.
Mione sorriu.
— É difícil imaginar um casal junto por cinqüenta anos.
— Não se o marido for como o Eric. Eu não con­seguia me imaginar casada com mais ninguém. Ao longo dos anos, ele me deu muito mais do que coisas materiais. Ele doou a si mesmo — declarou a se­nhora, com um sorriso radiante de felicidade.
Mione sentiu-se quase uma intrometida naquele momento de intimidade. O olhar de Sônia baixou para o traje inusitado da companheira.
— Que belo vestido está usando. Não vai colocar véu?
— Não. Resolvi não usar véu e nenhum chapéu que experimentei ficou bom. Vou usar só a tiara.
— Mas, afinal, por que parou aqui?
Mione repetiu sua história.
— Acho que deveria ter ignorado a meia — opinou Sônia, ao final. — Seu noivo deve estar muito preo­cupado a esta hora.
— Gostaria de poder avisar a ele onde estou — disse Mione, sentindo uma pontada de dor no estômago.
Seu olhar pousou sobre uma placa de papelão anun­ciando a oferta de sapatos esportivos da semana. De repente teve uma idéia, que a fez saltar da poltrona.
— Acho que descobri uma forma de avisar a ele.
Correu até o caixa e conversou brevemente com o homem. Em poucos instantes obtivera uma caneta marcadora, do tipo que a loja usava para fazer os cartazes de oferta.
Mione agarrou o cartaz de fórmica branca e correu para as portas principais. Assim que se aproximou, sentou-se para escrever seu recado em letras gran­des. Quando apoiou contra o vidro sua mensagem gigante, firmou-a e olhou para fora.
Teve uma surpresa. O espaço em frente à loja encontrava-se vazio. Se ali antes estivera uma limusine poderia ser um produto de sua imaginação.
— Se você não avisar meu noivo prometo que não vai receber pagamento nenhum — resmungou ela baixinho contra o vidro.
Ela voltou e devolveu os objetos emprestados. Aco­modou-se outra vez na poltrona, com um suspiro de resignação. Passaram duas mulheres discutindo.
— Você acredita numa coisa dessas? Podemos aca­bar ficando aqui a noite inteira! As autoridades ain­da estão tentando descobrir o que aconteceu.
— Tente ver as coisas pelo lado bom, menina. Deixamos nossos filhos com os maridos. Adivinha quem está agora tentando explicar para eles por que os malditos video games não funcionam?
— Melhor ele do que eu.
Mione apoiou a cabeça no encosto.
— Só pode ser um sinal do destino.

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