Capitulo 1



Capítulo 1


— O relógio não pode estar certo — lamentou Mione quando ergueu os olhos para o mostrador do relógio do quarto ao sair do banheiro. — Simplesmente não pode ser essa hora.
Os efeitos do longo banho de espuma se faziam sentir. Relaxara demais. Toda a ansiedade e a pressa voltaram num segundo. Estremeceu ao receber uma rajada de ar frio do ar condicionado. O dia era um dos mais quentes do ano e a última coisa que Mione precisava era de um resfriado. Retirou a toalha enrolada no corpo, esfregando-a lentamente sobre a pele. Depois, deixou-a cair no chão. Ficou parada, pensando o que fazer a seguir.
— Maquiagem!
Nua, correu de volta ao banheiro e aplicou os cos­méticos básicos com movimentos experientes, depois dedicou-se aos olhos. Cuidadosamente traçou uma li­nha com sombra verde-oliva na borda das pálpebras, completando a parte interior com um tom mais pró­ximo do verde-pastel. Resmungou ao tatear pela pia em busca do blush, que encontrou atrás do vidro de colônia. Coloriu o rosto com um tom saudável de rosa.
Concentrada, fez uma careta quando o ar condicio­nado desligou, deixando penetrar uma lufada quente.
Tinha de resolver casar no dia mais quente do ano? Esperava não derreter antes de chegar à capela. Uma das coisas mais indesejáveis era uma noiva suada.
— Batom — ordenou a si mesma. — Não, melhor colocar o vestido primeiro, depois o batom.
Apanhou o aplicador de talco, deixando no ar uma nuvem esbranquiçada de perfume. Completou com água-de-colônia do mesmo aroma, depois correu para o quarto. Nova consulta ao relógio informou que os minutos continuavam se escoando. Vestiu a lingerie bege: calcinha, sutiã e cinta-liga combinan­do. Com movimentos rápidos, enfiou as meias bran­cas e estendeu a mão para o vestido.
Apreciou ainda uma vez o caimento do tecido branco-perolado, que possuía um decote generoso. Aquilo realçava seus ombros bronzeados de sol. Um minuto depois examinava o traje em frente ao es­pelho. Um traje digno de uma noiva.
Colocou a gargantilha de pérolas, combinando com os brincos de pingentes que pusera antes do banho. Ao fechar a jóia, reparou que seus dedos tremiam.
Certamente não se tratava do famoso "nervosismo de noiva", pois ia casar com o homem perfeito para ela. Kevin. Exatamente do que ela precisava.
Sua mãe estava tão nervosa com a cerimônia que já se encontrava na capela, supervisionando a insta­lação da decoração. Gwen Granger Walker Andrews Patterson pretendia certificar-se de que nada sairia errado. Mione estava grata à mãe, por oferecer-se para cuidar da decoração final da capela e da festa, mas às vezes ela achava que a mãe estava mais excitada do que ela com o casamento. Até sua melhor amiga, Abby, já fora para a capela enquanto Mione perma­necia em casa para vestir-se em abençoada solidão.
O espocar de um rojão soou a distância, recordando o fato de que a data não se referia apenas ao aniver­sário e casamento dela, mas também se tratava de um feriado nacional, o Dia da Independência, o Quatro de Julho, feriado para todos os americanos.
Era dia de piquenique e churrasco, não casamen­to. E havia ainda o calor. Ela imaginou-se relaxando com seus vizinhos no pátio, observando as crianças correndo no meio dos irrigadores no gramado, ten­tando refrescar-se.
Não conseguia imaginar o Quatro de Julho como dia de seu casamento. Desde que nascera fazia ani­versário nesse dia, portanto já se acostumara; em compensação não tivera a mínima chance de esco­lher o dia em que nascera. Desde o dia em que fizera o pedido, Kevin parecia determinado a reali­zar a cerimônia nessa data, pelo significado especial. Dissera isso por mais de uma vez, ao deixá-la em casa após o jantar da noite anterior. Beijaram-se na despedida, porém não o tipo de beijos que ace­lerava o coração de Mione. Infelizmente.
— Feliz aniversário, Mione — desejou ela ao reflexo enquanto calçava os sapatos brancos de salto alto.
Abaixou-se para abotoar os fechos de pérolas.
— Hoje vou me casar — declarou ela, na esperança de que as palavras ditas em voz alta a acalmassem. — É meu aniversário e dia do meu casamento. Vou casar com um homem que sei que está apaixonado por mim. Seremos extremamente felizes e teremos muitos filhos. No ano que vem Kevin vai abrir sua filial, que será a primeira de uma série de outras pelo estado, e...
Não conseguiu continuar. Estava a ponto de chorar. Só podia ser a tal ansiedade de noiva. Mione não tinha propensão a perder o controle.
A campainha tocou.
— Só faltava essa. Deve ser algum vendedor de seguros, ou coisa parecida — resmungou Mione, ca­minhando com passo forçado para a porta. Abriu-a de uma vez, com uma péssima expressão de acolhi­da. — O que foi?
O homem do lado de fora recuou um passo. Tra­java um terno escuro e trazia um quepe nas mãos.
— Srta. Granger, sou Rodney. Estou aqui para levá-la até a igreja...
A frase terminara em tom de pergunta, como se ele estivesse incerto sobre o endereço, ou não tivesse certeza de que o vestido da moça à sua frente fosse de noiva.
Mione esticou o olhar por sobre o ombro dele, para o veículo branco e brilhante estacionado à sua porta. Havia alguns vizinhos reunidos ao redor, para exa­minar de perto a limusine.
— Se alguém passar vai achar que nunca viram uma limusine na vida — comentou ela. — Desculpe, mas deve ter havido algum engano. Não contratei uma limusine.
— Foi seu noivo quem- contratou — esclareceu o motorista. — Ele me pediu para dizer que não seria apropriado que a noiva fosse dirigindo para o casamento.
Ela não havia pensado naquilo. Realmente, não se lembrava de uma noiva que tivesse ido guiando o próprio carro para o casamento. Ainda bem que Kevin providenciara tudo.
Repentinamente pareceu-lhe que o ar faltava. Mione forçou-se a permanecer calma. O sorriso de Rodney diminuiu um pouco.
— A senhora... senhorita está bem?
Ela testou seu sorriso mais radiante.
— Acho que é só um pouco de nervosismo. Vou pegar minhas coisas.
Enquanto caminhava na direção do quarto, ela re­passou as tradições do matrimônio na cabeça. Algo novo: o colar de pérolas que ganhara de presente de casamento de Kevin. Algo velho: os brincos de pérola o diamantes que combinavam com o colar, pois haviam pertencido à sua avó. Algo emprestado: as fivelas co­bertas de pérolas que usou para prender suas ma­deixas haviam sido emprestadas pelo cabeleireiro que realizara um verdadeiro milagre com seu cabelo re­belde. Algo azul: uma das ligas adornando a coxa.
Apanhou a bolsa de seda que a acompanharia e reparou no telefone celular sobre o carregador. Bev, sua assistente, ficara encarregada de todos os pro­blemas que pudessem surgir durante a lua-de-mel. Não aguardava possíveis emergências, nem hecatombes. Principalmente no feriado. Resolveu deixar o aparelho sobre a mesa.
— Permita-me dizer que está linda, srta. Granger. O noivo é um homem de sorte — comentou o motorista ao acompanha-la até o carro.
Abriu a porta e ajudou-a a entrar na parte traseira.
— Obrigada. Esse assento é mais confortável que meu sofá — comentou ela, olhando ao redor.
— Tem champanhe na geladeira se você quiser acalmar a ansiedade — ofereceu ele, piscando.
Ela considerou a possibilidade, olhando para a garrafa. Quantas taças seriam necessárias para acalmar seus nervos? Talvez a garrafa toda não fosse o suficiente.
— Não obrigada. Acho que entrar bêbada na igreja seria uma péssima forma de iniciar qualquer casa­mento — comentou ela.
Durante o trajeto, Mione continuou dizendo a si mes­ma que não precisava preocupar-se com nada. Afinal, iria casar com um sujeito do qual qualquer mulher se orgulharia. Que hesitação seria aquela, então? Sen­tia-se envergonhada por não amar Kevin da forma como ele merecia, porém acreditava que muitos ca­samentos haviam se iniciado com menos do que ambos tinham, e deram certo. Não havia nenhum motivo para que ela não pudesse fazer o mesmo. As coisas estavam caminhando tão rápido que não podia pedir outro adiamento, mesmo porque sua mãe já fazia pla­nos para sair com os futuros netos.
— De onde vem tanta incerteza? — indagou em voz alta.
— Algum problema, srta. Granger?
— Não, obrigada. Só estou, me certificando de que trouxe tudo. Detestaria esquecer algo importante.
— Eu não me preocuparia com isso — riu ele, olhando-a pelo retrovisor. — Minha mulher esque­ceu o anel, e o padre nos casou do mesmo jeito.
Ela sabia que sua mãe estava com as alianças, portanto não precisava se preocupar com esse as­sunto. Resolveu tomar uma taça de champanhe. Uma só não faria mal. Quando servia o líquido dou­rado, baixou a cabeça e teve a impressão de enxergar algo em sua perna. Talvez fosse a iluminação no interior do carro, ou um jogo de sombras. Esquecida da garrafa, aproximou os olhos da perna. Sim, havia uma linha nítida em sua meia. Levantou o vestido para acompanhar melhor e certificou-se. Não era ilusão de ótica ou efeito de iluminação.
Acionou o intercomunicador.
— Rodney, precisamos parar.
Não tiveram problema para encontrar vaga em frente à loja de departamentos. Rodney desceu e abriu a porta.
— Só vai levar um minuto — prometeu ela.
O motorista não apreciava a situação incomum, o parecia pouco à vontade.
— Srta. Granger, sem querer parecer ousado... tem certeza que deseja casar?
— Claro que sim. Acontece que não posso casar com um fio desfiado em minha meia — respondeu Mione, esticando o pé para mostrar o desastre. — Está aparecendo demais. Só vou entrar um instante, compro minha meia, visto no provador e saio da loja. Sente lá atrás e tome um refrigerante enquanto espera. Prometo que só vai levar cinco minutos.
O sorriso de Rodney indicava uma certa dose de dúvida.
— Não sou daquelas que demoram uma hora na loja para comprar alguma coisinha e ainda saem cheias de pacotes. Pode ficar sossegado — garantiu ela, caminhando em direção à entrada.
Ignorou os olhares das pessoas que entravam e saíam da loja.
— Quem iria se casar no Dia da Independência? — sussurrou um homem à sua esposa.
— É uma forma de garantir os fogos na primeira noite — retrucou a mulher, encarando-o.
Preferia não ter escutado isso, pensou Mione, pro­curando a seção de roupa íntima. Não me parece um bom presságio.

Harry imaginara a visita dos filhos como uma época cheia de risos e brincadeiras pela casa, a exemplo do que acontecera durante o último verão. Chegara a organizar seu horário de forma a passar mais tem­po com eles. A verdade é que até então não escutara nenhum riso, mas já descobrira que sua idéia de diversão não combinava com a deles. O pior é que só haviam ficado juntos por uma hora.
O verão prometia ser longo.
Desde cedo, quando fora apanhar os filhos no aero­porto, só escutara suspiros profundos de Lisa, com doze anos, resmungos quase ininteligíveis por parte de Davis, em seus dez anos, e o olhar tristonho que Brandon, o caçula de cinco anos, cravara nele.
Percebera que algo estava errado ao abraçar Lisa, logo na chegada. Tentara dizer a ela que mal reco­nhecia sua filhinha, de tão rápido que ela estava crescendo. Recebeu um olhar de queixo levantado, nariz empinado e foi informado de que ela não era mais criança, e com toda a franqueza, será que ele precisava se vestir o tempo todo como um mendigo? O que as pessoas iriam pensar?
Na cabeça de Harry era feriado e dia de relaxar. Como iriam a um churrasco, trajara-se com aquela atividade em vista: uma camiseta verde com tuba­rões estampados, calção militar caqui e sapatos con­fortáveis, o que significava bastante usados. Repa­rou que seus filhos haviam atravessado o país ves­tidos da mesma forma, mas ao que parecia, não lhe era permitido o mesmo.
— Por que temos de ir para a casa dela? — re­clamou Davis, sem tirar os olhos da tela do video game portátil.
Os dedos moviam-se com rapidez, evitando que seu personagem fosse apanhado pelo inimigo. De vez em quando, gritinhos saudavam a conquista dos importantes pontos de bônus.
— Eu já disse. Carolyn foi delicada em convidar a nós todos para um churrasco — repetiu Harry, pela enésima vez. — Achei que seria uma oportunidade divertida para vocês conhecerem minha namorada. Carolyn está morrendo de vontade de conhecer vocês.
Ficou contente por ter resolvido não mencionar a decisão de casar-se com ela. Depois de observar a atitude deles, seria o mesmo que declarar guerra. Especialmente logo depois do segundo casamento da mãe dos três. Contudo, durante as férias de verão, planejava mostrar aos filhos como eram importantes para ele.
Lisa cruzou os braços, e a expressão estóica no olhar dela informou que o dia não seria tão agra­dável quanto ele imaginara. Davis só enxergava a tela do jogo. Brandon, encolhido no canto do banco, parecia um cachorrinho indefeso.
Carolyn sugerira o churrasco para o primeiro contato por acreditar que uma atmosfera relaxada seria mais apropriada. Além disso sua casa localizava-se nas proximidades do lago, de onde todos veriam o espetáculo de fogos de artifício para comemorar o feriado. Harry concordara porque imaginara que seria uma ótima ocasião para anunciar o noivado. Dissera a Carolyn que ele mesmo queria contar aos filhos. Mas não disse que Marie ameaçara mandar os três para morar com ele. Apesar de a ex-esposa apre­sentar o costume de exagerar as coisas, sentia que a intenção era séria. Para dizer a verdade, Harry gostaria de ficar com os três, mas não tinha certeza sobre qual seria a reação de Carolyn.
No momento, só podia esperar que a tensão di­minuísse até chegar ao seu destino.
— E se ela resolver casar com papai — murmurou Davis para Brandon —, aí vai ser nossa madrasta... e você sabe como são as madrastas.
O pequeno abriu os olhos, interessado:
— Está querendo dizer como a madrasta da Bran­ca de Neve e aquela da Cinderela?
— Com certeza — concordou Davis baixinho, com ar de especialista no assunto. — Talvez até pior. Ela é advogada, e você sabe o que advogados fazem com filhos que não são seus? Podem colocar você por muitos anos na cadeia, e ninguém mais vai saber quem é você. Ou então naquelas prisões horríveis que colocam correntes nos presos. Ela não vai querer a gente por perto, certo? Lembra da madrasta do Tommy Haine? Ela colocou ele no Colégio Interno.
— Não quero madrasta nenhuma! — berrou Bran­don, assustado.
— Davis!
Harry não precisou olhar para trás para saber de quem fora a culpa.
— Eu só estava mostrando meu jogo pra ele, pai — respondeu o filho do meio, em tom inocente.
— Que ótimo! — começou Lisa. — Mamãe casa com um idiota que pensa que ainda brinco com bo­necas e diz a Davis que ele não precisa de nenhum computador porque não sabe usar um e acha que Brandon devia estar na escola especial para retarda­dos. Viemos para ver se conseguimos evitar que você faça a mesma estupidez, e o que descobrimos? Que você provavelmente vai casar com alguém que não quer a gente por perto, do mesmo jeito que Frank. Acho que o melhor era a gente ir para um orfanato.
— Orfanato? — gritou Brandon, cada vez mais assustado. — Eles têm ratos nos orfanatos. E os meninos são obrigados a comer insetos.
— Davis!
Não era difícil rastrear as origens das idéias mór­bidas do filho caçula.
— Não fui eu que o obriguei a assistir Oliver Twist — defendeu-se Davis.
— Vamos conversar sobre isso mais tarde, mocinho.
— Sempre culpado — protestou o garoto, afun­dando no assento.
— Só estou pedindo que dêem uma chance a ela — disse Harry. — Uma vez que a conheçam, vão gostar dela, tenho certeza.
— Ela é gostosa? — quis saber Davis.
— Tem peitos grandes? — manifestou-se Brandon.
— Que diabo... — foi tudo o que o pai conse­guiu dizer.
— Mamãe diz que blasfemar é sinal de fraqueza mental — lembrou o caçula.
Harry suspirou e controlou-se. Não era o momento de dizer o que achava da idéia de fraqueza mental da ex-esposa. Afinal, não fora ele a ser apanhado em flagrante com o rapaz que fazia a manutenção da piscina. Marie voltou para a casa da mãe em Maryland e divorciaram-se. Se não fosse pelos mi­lhares de quilômetros que os separavam, a batalha pela custódia dos filhos teria sido dura. Imaginou se deveria ligar para Frank e avisar para tomar cuidado com a piscina.
— Madrastas são conhecidas por serem malvadas com garotinhos — disse baixinho Davis. — Não deixam você acender a luz de cabeceira de noite e você precisa dormir num quartinho pequeno sem janelas. Não tem cama nem porta, você precisa entrar rastejando.
— É, mas você também é menino. Vai ter que dormir no mesmo quarto — argumentou Brandon, de olhos arregalados.
— É, mas sou maior. Ela vai me fazer dormir no sótão com os morcegos.
— Pare com isso, Davis — interveio Lisa. — Você é tão nojento. Frank tem razão numa coisa: você devia ir para a Escola Militar.
Escola Militar? Harry tomou nota mentalmente para ter uma longa conversa com sua ex-esposa so­bre o assunto.
— Pelo menos não fico brigando com a mamãe o tempo todo para ela deixar usar pintura no rosto — provocou Davis, numa cantilena irritante. A irmã deu um tapa na mão dele.
— Cale a boca!
— Ela é uma bruxa de verdade? — quis saber Brandon.
As vozes dos três misturaram-se a tal ponto que não era mais possível distinguir palavras. A cabeça de Harry começou a doer.
— Quietos!
Por um instante foi possível escutar a respiração de cada um, tamanho o silêncio que se instalou no carro. O pai aproveitou o momento para falar pausadamente.
— Vamos para a casa de Carolyn, onde vamos nadar, comer um belo churrasco e nos divertir, nem que a gente se mate. Estamos entendidos?
— Papai, está pensando que a gente não sabe se comportar na casa dos outros? Não sou mais criança — afirmou Lisa, rolando os olhos nas órbitas.
— Posso levar meu Game Boy para dentro, não posso? — indagou Davis. — Ela não vai obrigar a gente a fazer nenhum jogo idiota, vai?
— E se ela quiser me comer? — perguntou o caçula.
— A única coisa que a gente vai comer são bifes deliciosos feitos na brasa — garantiu Harry, rezando para chegar inteiro até o final do dia. — Só vou pedir uma coisa: não quero "bombas", nem mergulhos escandalosos na piscina. Daqueles que molham os outros. Ao mesmo tempo em que falava, Harry lembrava que Carolyn nunca tivera filhos, nem irmãos. Espe­rava que a paciência dela resistisse ao teste que os filhos costumavam impor, capaz de irritar um santo.
— Ah, pai... — protestou Davis, frustrado.
Mergulhar na piscina era um de seus divertimentos favoritos, porque podia ser direcionado para molhar uma pessoa com precisão. Depois subia com ar inocente. Antes que pudesse reforçar a ordem, um grito agudo de arrepiar a espinha partiu do banco de trás. Temendo o pior, ele estacionou sua caminhonete no acostamento. Puxou o freio de mão e no mesmo gesto voltou-se para trás.
— O que foi, Lisa? Está machucada? O que acon­teceu, pelo amor de Deus? — perguntou ele, esten­dendo os braços para ela.
Ela imediatamente recuou, encolhendo-se contra a porta do passageiro. Os olhos castanhos demonstra­vam grande agonia. Harry procurou algum sinal de sangue ou outra coisa repelente que pudesse explicar o terror da filha, cujo rosto se avermelhava. Aos poucos Lisa voltou o rosto para a janela, como se não pudesse falar sobre o assunto encarando o pai.
— A alça do meu sutiã arrebentou — anunciou ela, com voz chorosa.
— Tenho certeza de que Carolyn vai ajudar você com um alfinete, ou alguns pontos — dizia Harry, dez minutos mais tarde, parado no mesmo lugar.
Estava certo de que o assunto feminino uniria as duas. Carolyn saberia resolver o problema. Porém enganava-se.
— Um alfinete? Alguns pontos? Está pensando que vou deixar que uma estranha cuide dessas coisas íntimas? Não posso ir — decidiu Lisa.
Harry respirou fundo várias vezes e contou até dez. Recuperando pelo menos parte do controle, argumentou:
— Estamos perto do lago. E muito longe de casa. Carolyn está nos esperando nos próximos dez minutos.
Lisa encarou o pai, a rebeldia e teimosia femininas estampadas no olhar.
— Não pretendo ir a lugar nenhum com meu sutiã pendurado. É só entrar numa loja e comprar outro. Se me obrigar a ir assim, vou ficar no carro o tempo inteiro.
— Pare com isso, Lisa. Você ainda não tem peitos. Ninguém vai reparar se não estiver usando sutiã — intrometeu-se Davis.
— Eu vou! — respondeu ela, encarando o irmão. O pai esfregou o pescoço e a nuca.
— Lisa, hoje é feriado. Não tem nenhuma loja aberta.
— Agora há pouco no rádio escutei um comercial de uma loja que está aberta hoje. Por que não vamos lá?
— Porque a Bradley's fica na direção oposta. Meu bem, não podemos resolver de outro jeito? — tentou Harry, em tom de súplica.
— Preciso de um sutiã novo!
Xingando mentalmente, o pai engrenou a cami­nhonete e começou a manobrar.
— Deve ter sido Marie — murmurou para si mes­mo. — Ela preparou tudo isso.
—Minha mãe disse que uma menina da minha idade não pode mais andar por aí sem sutiã — disse lisa.
Harry teve vontade de dar um tapa no próprio rosto. Sabia que a filha tinha uma audição excepcional, concentrou-se em entrar na estrada, em sentido. aposto do qual vieram.
— Posso comprar um jogo novo na loja? — tentou Davis.
— Não.
— Por que todo mundo tem que pagar quando ela quer alguma coisa? — queixou-se o garoto.
— Davis, se pretende sobreviver para completar seu décimo primeiro aniversário é melhor ficar de boca fechada na próxima meia hora — avisou Harry.
Fazia tempo que Davis não encontrava o pai, mas ainda conhecia aquele tom de voz. Ficou de boca fechada.
— Puxa, será que é de alguém famoso? — per­guntou Davis, admirando a limusine branca esta­cionada atrás deles.
— É difícil saber — comentou Harry, examinando o veículo reluzente.
Havia um motorista sentado no banco traseiro com a porta aberta.
— Ei, companheiro — chamou o homem, erguendo os olhos da revista que estava lendo. — Se por acaso encontrar uma noiva lá dentro, diga que se não sairmos em dez minutos ela vai chegar atrasada ao casamento.
— Pode deixar — disse Harry, sorrindo. Voltou-se para os filhos. — Uma noiva fazendo compras no dia do casamento. Acho que mal consegue esperar para usar o cartão de crédito do noivo.
— Não quero nenhum de vocês perto de mim — avisou Lisa, assim que entraram, estendendo a mão para o pai. — Sou perfeitamente capaz de fazer mi­nha compra sozinha.
—Vamos dar uma olhada nos jogos? — sugeriu Davis.
— Não.
Harry apanhou duas notas da carteira e entregou-as a Lisa. Observou a filha afastando-se na direção das roupas íntimas com certa melancolia. Lisa já era uma mulher e ele perdera boa parte daquela transformação. Sentiu um puxão na barra do calção.
— Pai, preciso ir ao banheiro — anunciou Brandon. Ele suspirou e estendeu a mão para o filho mais novo.
— Vamos. Você também, mocinho.
— Não preciso ir. Posso esperar na seção de eletrônicos.
— Davis, não pretendo ficar aqui nem um minuto a mais, portanto nós três vamos ficar juntos.
— Desmancha-prazeres — resmungou o menino, enfiando as mãos nos bolsos e andando devagar atrás.

— Nossos computadores estão lentos, hoje — des­culpou-se o caixa, tentando não reparar na indu­mentária da noiva à sua frente.
— Hoje saí sem cartão de crédito. Nunca imaginei que fosse precisar — explicou Mione. — Ainda bem que trouxe a carta de motorista. Existe uma cabine que eu possa usar?
O caixa olhou para as três embalagens de meias antes de responder.
— Use uma cabine na seção de lingerie — sugeriu ele, entregando a nota de compra.
Ela olhou na direção indicada. Não havia tempo a perder, se pretendia casar. Caminhou naquela di­reção, sorrindo ao ver uma garotinha examinando sutiãs. Ainda lembrava de seu ar de importância quando comprara o primeiro: branco, de algodão, com um pequeno motivo floral no meio.
Escolheu um provador vazio e entrou. Em poucos segundos estava suando no banco, depois de retirar a meia desfiada e vestir a outra. Descansou um pouco e colocou um dos pares novos sem nenhum problema. Levantou-se, ficou de costas para o espelho e olhou por sobre o ombro para verificar a parte traseira da meia nova. Tudo parecia perfeito.
— Agora sim. Parece que tomei a decisão certa em parar aqui — disse Mione, em voz alta. — Um bom presságio, finalmente.
Nesse instante, todas as luzes se apagaram.
— Por outro lado, talvez não — completou Mione, imersa na escuridão.

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