CAPITULO 3 - HISTÓRIAS DE DRAG
CAPITULO 3 - HISTÓRIAS DE DRAGÕES
Ao amanhecer, os raios do sol entraram pela janela, aquecendo o rosto de Harry. Esfregando os olhos, sentou na beira da cama. O piso de pinho estava frio sob seus pés. Esticou as pernas doloridas e coçou as costas enquanto bocejava.
Ao lado da cama havia uma carreira de prateleiras cobertas com os objetos que ele colecionava. Havia pedaços retortos de madeira, fragmentos estranhos de conchas, pedras quebradas que revelavam um interior brilhante e pedaços de grama seca amarrados em nós. Seu item favorito era uma raiz tão retorcida que ele nunca se cansava de olhar para ela. O resto do quarto estava vazio, exceto pela pequena cômoda e pela mesa-de-cabeceira.
Colocou as botas e olhou para o chão, pensando. Este era um dia especial. Foi mais ou menos a esta hora, há dezesseis anos, que sua mãe, Lílian, voltou para casa, no Carvahall, sozinha e grávida. Ela ficou longe durante seis anos, vivendo nas cidades. Quando retornou, usava roupas caras e tinha o cabelo preso por uma rede de pérolas. Foi procurar o irmão, Garrow, e pediu para ficar com ele até o bebê nascer. Depois de cinco meses, o menino nasceu. Todos ficaram chocados quando Lílian, chorosa, implorou para que Garrow e Marian o criassem. Quando eles perguntaram por que, ela apenas chorou e disse:
- Eu preciso.
Os apelos dela aumentaram desesperadamente até que eles finalmente concordaram. Deu a ele o nome de Harry. Partiu cedo na manhã seguinte e nunca mais voltou.
Harry ainda se lembrava de como se sentiu quando Marian contou-lhe a história antes de morrer. Saber que Garrow e Marian não eram seus pais verdadeiros perturbava-o muito. Coisas que eram inalteráveis e indiscutíveis de repente foram colocadas em questão. Finalmente, acabou aprendendo a viver com aquilo, mas sempre desconfiava que não tinha sido bom o bastante para a mãe. Sei que havia um bom motivo para ela ter feito o que fez. Eu só queria saber qual.
Outra coisa o incomodava: quem era seu pai? Lílian não tinha contado a ninguém e, seja lá quem fosse, nunca foi procurar Harry. Queria saber quem era, nem que fosse apenas o nome. Seria bom conhecer a linhagem dele.
Suspirou e foi até a mesa-de-cabeceira, onde lavou o rosto, tremendo enquanto a água escorria pelo pescoço. Refrescado, pegou a pedra que estava embaixo da cama e colocou-a em uma prateleira. A luz da manhã a acariciava, projetando uma sombra na parede. Tocou-a mais uma vez, depois foi depressa para a cozinha, ansioso para rever sua família. Garrow e Rony já estavam lá, comendo frango. Enquanto Harry os cumprimentava, Rony ficou em pé sorrindo.
Rony era dois anos mais velho do que Harry, musculoso, forte e meticuloso em seus movimentos. Não poderiam ser mais próximos mesmo se fossem irmãos de verdade.
Rony sorriu.
- Estou feliz porque você voltou. Como foi a viagem?
- Difícil. - respondeu Harry. - O tio contou a você o que aconteceu? - Harry pegou um pedaço de frango que devorou avidamente.
- Não. - informou Rony, e a história rapidamente foi contada. Devido à insistência de Rony, Harry largou a comida para mostrar-lhe a pedra. Esta provocou uma admiração considerável em Rony, mas ele logo perguntou nervosamente:
- Você conseguiu falar com Hermione?
- Não. Não surgiu uma oportunidade depois da discussão com Petigrew. Mas ela vai esperá-lo quando os mercadores chegarem. Dei o recado a Horst, e ele o passará a ela.
- Você contou a Horst? - indagou Rony incrédulo. - Isso era segredo. Se eu quisesse que todos soubessem, poderia ter acendido uma fogueira e ter feito sinais de fumaça. Se Petigrew descobrir, não me deixará vê-la .
- Horst será discreto. - garantiu Harry. - Ele não deixará que ninguém fique à mercê de Petigrew, muito menos você. - Rony não parecia estar muito convencido, porém não discutiu mais. Voltaram para as suas refeições ante a presença taciturna de Garrow. Quando as últimas mordidas foram dadas, os três foram trabalhar no campo.
O sol estava frio e pálido, provendo pouco conforto. Sob seus olhos atentos, os últimos grãos de cevada foram armazenados no galpão. Juntaram abóboras, repolhos, beterrabas, ervilhas, nabos, feijões e guardaram tudo no porão dos legumes. Depois de horas de trabalho, esticaram seus músculos doloridos, sentindo a satisfação de terem terminado a colheita.
Os dias que se seguiram foram ocupados preparando a comida para o inverno, fazendo conservas, salgando e descascando alimentos.
Nove dias depois da volta de Harry, uma nevasca cruel veio das montanhas e pairou em cima do vale. A neve caía como um lençol, cobrindo todo o campo de branco. Só ousavam sair de casa para pegar lenha para o fogo e para alimentar os animais, pois temiam perder-se no meio dos ventos uivantes e da paisagem descaracterizada. Passavam o tempo aconchegados perto do fogão enquanto golpes de vento faziam tremer as pesadas cortinas nas janelas. Dias depois, finalmente, a tempestade passou, revelando um mundo exótico de suaves montes brancos.
- Temo que os mercadores não venham este ano por causa deste tempo tão ruim. - disse Garrow. - Eles já estão atrasados. Vamos dar-lhes uma chance, esperando mais um pouco antes de irmos ao Carvahall. Mas se não aparecerem logo, teremos de comprar as provisões que sobrarem do povo da cidade. - Seu semblante era resignado.
Ficavam mais ansiosos conforme os dias se arrastavam sem dar nenhum sinal dos mercadores. A conversa era pouca, e a depressão estendia-se sobre a casa.
Na oitava manhã, Rony foi andando até a estrada e confirmou que os mercadores ainda não haviam chegado. Levaram o dia preparando a viagem para o Carvahall, juntando, com sorrisos amargos, itens que podiam ser vendidos. Naquela tarde, sem esperança, Harry foi verificar a estrada de novo. Viu cortes profundos na neve e numerosas pegadas entre eles. Exultante, voltou correndo para casa, gritando, dando novo vigor a seus preparativos.
Carregaram a carroça com o excedente dos produtos agrícolas antes do amanhecer. Garrow colocou o dinheiro ganho naquele ano em uma sacola de couro e amarrou-a cuidadosamente no cinto. Harry pôs a pedra embrulhada entre os sacos de grãos para que ela não rolasse com o sacolejo da carroça.
Depois de um café da manhã apressado, arrearam os cavalos e limparam a trilha que desembocava na estrada. As carroças dos mercadores já haviam aberto sulcos na neve, fazendo-os avançarem mais depressa. Ao meio-dia, já podiam ver o Carvahall.
Sob a luz do dia, aquele era um vilarejo tosco, repleto de gritos e risos. Os mercadores instalaram-se em um campo baldio nas cercanias da cidade. Grupos de carroças, barracas e fogueiras estavam espalhados pelo lugar. Eram pontos coloridos na neve. As quatro tendas dos trovadores eram decoradas com muitas cores. Um fluxo constante de pessoas ligava o acampamento ao vilarejo.
Multidões agitavam-se em volta de uma fila de barracas e tendas iluminadas, enchendo a rua principal. Cavalos relinchavam por causa do barulho. A neve foi amassada, dando à rua uma superfície escorregadia. Em outros lugares, as fogueiras derreteram a neve. Castanhas assadas acrescentavam um rico aroma aos cheiros que os envolviam.
Garrow estacionou a carroça e prendeu os cavalos. Em seguida, tirou moedas da sacola.
- Vão comer alguma coisa. Rony, faça o que quiser, só não deixe de estar na casa de Horst na hora do jantar. Harry, pegue aquela pedra e venha comigo. - Harry sorriu para Rony e guardou o dinheiro, já planejando como gastá-lo.
Rony partiu imediatamente com uma expressão de determinação no rosto. Garrow guiou Harry no meio do povo, abrindo caminho naquela agitação. As mulheres compravam tecidos enquanto, bem perto, os maridos examinavam fechaduras novas, anzóis ou alguma ferramenta. Crianças corriam para cima e para baixo na rua, gritando de alegria. Facas eram expostas aqui, temperos acolá. E panelas foram colocadas em fileiras brilhantes perto dos arreios de couro.
Harry, curioso, olhava para os mercadores. Pareciam menos prósperos do que no ano passado. Seus filhos exibiam um olhar assustado no rosto, e suas roupas estavam remendadas. Homens magros levavam espadas e punhais de uma nova maneira bem peculiar, e até as mulheres tinham adagas presas na cintura.
O que será que aconteceu para deixá-los desse jeito? E por que será que eles se atrasaram tanto? Pensou Harry. Ele se lembrava dos mercadores como pessoas cheias de alegria, mas estavam muito diferentes agora. Garrow continuou abrindo caminho, descendo a rua, procurando Merlock, um mercador especializado em bugigangas diferentes e em jóias.
Encontraram-no atrás de uma tenda, mostrando broches para um grupo de mulheres. A cada nova peça revelada, ouviam-se exclamações de admiração. Harry desconfiou que logo várias bolsas seriam esvaziadas. Merlock parecia ganhar novo vigor e crescer cada vez que suas mercadorias eram elogiadas. Usava um cavanhaque, tinha modos tranqüilos e parecia encarar o resto do mundo com um leve toque de desprezo.
O animado grupo não deixou que Garrow e Harry se aproximassem do mercador. Sentaram em um degrau e esperaram. Assim que Merlock ficou desocupado, correram até ele.
- O que os senhores desejam ver? - perguntou Merlock. - Um amuleto ou uma bijuteria para uma dama? - Girando a mão, pegou uma rosa entalhada em prata de excelente qualidade artística. O metal polido chamou a atenção de Harry, ele ficou apreciando-o. O mercador continuou: - Não custa nem três coroas, embora isto tenha vindo de longe, dos famosos artesãos de Belatona.
Garrow esclareceu com um tom de voz baixo:
- Não queremos comprar. Queremos vender. - Merlock, imediatamente, cobriu a rosa e olhou para eles com um novo interesse.
- Entendo. Talvez, se esse item tiver algum valor, vocês poderiam trocá-lo por uma ou duas dessas lindas peças. - Ele fez uma pausa por um momento, enquanto Harry e o seu tio ficaram parados de maneira desconfortável. Depois, continuou: - Vocês trouxeram o item a ser avaliado?
- Trouxemos, mas acho melhor mostrá-lo em outro lugar. – disse Garrow com uma voz firme.
Merlock levantou uma sobrancelha, mas falou de modo suave:
- Sendo assim, permita-me convidá-los a entrar na minha tenda. - Juntou suas jóias e, gentilmente, colocou-as em uma arca de ferro, a qual trancou. Depois, seguiu na frente, pelo caminho até o acampamento temporário.
Andaram entre as carroças até uma barraca afastada. Era avermelhada em cima e negra embaixo, com pequenos triângulos coloridos que se entrelaçavam. Merlock desamarrou a corda que fechava a barraca e jogou o pano para o lado.
Pequenas bijuterias e alguns móveis estranhos, como uma cama redonda e três assentos entalhados em três pedaços de tronco enchiam a barraca. Uma adaga retorcida, que tinha um rubi no punho, estava em cima de uma almofada branca.
Merlock fechou o pano que servia de porta da barraca e virou-se para eles.
- Por favor, sentem-se. - Depois de sentarem, continuou: - Agora, mostrem-me o porquê de nos encontrarmos em particular. - Harry desembrulhou a pedra e colocou-a entre os dois homens. Merlock aproximou-se para observá-la com um brilho nos olhos. Então, parou e perguntou: - Posso? - Quando Garrow deu a permissão, Merlock pegou-a.
Colocou a pedra no colo e inclinou-se para o lado, tentando alcançar uma caixa fina. Depois de aberta, ela revelou um grande conjunto de balanças de cobre, que ele pousou no chão. Quando acabou de pesar a pedra, examinou a superfície com uma lente de joalheiro, bateu nela gentilmente com um martelinho de madeira e marcou um ponto com outra pedrinha em cima dela. Mediu o comprimento e o diâmetro, depois escreveu os números em uma lousa.
- Vocês sabem quanto isto vale?
- Não. - admitiu Garrow. A bochecha dele pulava, e ele se ajeitava desconfortavelmente em seu assento.
Merlock fez uma careta.
- Infelizmente, eu também não sei. Mas sei o seguinte: essas veias brancas são feitas do mesmo material azul que as cercam, só têm uma cor diferente. E que material é este, de fato, não faço a menor idéia. É mais duro do que qualquer outra pedra que eu já tenha visto, mais duro do que um diamante. Seja lá quem for que a tenha lapidado usou ferramentas que eu nunca vi... Ou usou magia. E mais uma coisa, a pedra é oca.
- O quê? - admirou-se Garrow.
Um tom irritado surgiu na voz de Merlock.
- Você já ouviu uma pedra fazer este barulho? - Ele pegou a adaga em cima da almofada e bateu na pedra com a parte chata da lâmina. Uma nota pura encheu o ar e foi desaparecendo suavemente. Harry ficou assustado, com medo de a pedra ser avariada. Merlock inclinou a pedra na direção deles.
- Vocês não verão nenhum arranhão ou marca no lugar onde a adaga bateu. Duvido que pudesse fazer qualquer coisa que avariasse esta pedra, mesmo se eu desse uma martelada nela.
Garrow cruzou os braços com uma expressão contida. Um muro de silêncio parecia rodeá-lo. Harry estava intrigado. Eu sei que a pedra apareceu na Espinha por meio de magia, mas será que ela também foi feita pela magia? Para que e por quê?
Ele disse de repente:
- Mas quanto ela vale?
- Não sei dizer. - respondeu Merlock com uma voz triste. - Sei que há pessoas que pagariam bem para tê-la, mas nenhuma delas mora no Carvahall. Você teria de ir até as cidades do sul para encontrar um comprador. Isto é apenas uma curiosidade para a maioria das pessoas e não um item com o qual devam gastar dinheiro, já que há tantas outras coisas mais necessárias.
Garrow olhava para o teto da barraca como um jogador calculando os riscos.
- Você vai comprá-la?
O mercador respondeu instantaneamente:
- O risco não vale a pena. Eu poderia encontrar um comprador rico durante as minhas viagens na primavera, mas não há como ter certeza. E mesmo se eu achasse, você não seria pago até eu voltar no ano que vem. Você terá de achar outra pessoa com quem negociar. Mas entretanto, estou curioso, por que insistiram em falar comigo em particular?
Harry guardou a pedra antes de responder.
- Porque - ele olhou para o homem, imaginando se o mercador explodiria de raiva como Petigrew - encontrei isto na Espinha, e o pessoal daqui não gosta daquele lugar.
Merlock olhou para ele espantado.
- Sabe por que meus amigos mercadores e eu nos atrasamos este ano?
Harry balançou a cabeça.
- Nossas viagens têm sido assoladas pelo infortúnio. Parece que o caos está reinando na Alagaésia. Não conseguimos evitar doenças, ataques e a mais amaldiçoada sorte negra. Como os ataques dos varden aumentaram, Voldemort forçou as cidades a mandarem mais soldados para as fronteiras, homens necessários para combater os urgals. Os brutos têm migrado para o sudeste, em direção ao deserto Hadarac. Ninguém sabe por que e isso não é da nossa conta, exceto que eles estavam passando por áreas povoadas. Eles têm sido vistos em estradas e perto das cidades. Os piores relatos são sobre um Espectro, embora as histórias não sejam confirmadas. Poucas pessoas sobrevivem a tal enfrentamento.
- Por que não ouvimos nada disso? - inquiriu Harry.
- Porque - respondeu Merlock com raiva - só começou há alguns meses. Vilarejos inteiros foram forçados a se mudar porque os urgals destruíram os campos, e a fome se tornou ameaçadora.
- Quanta bobagem! - resmungou Garrow. - Não vimos nenhum urgal. O único que passou por aqui deixou os chifres pendurados na taverna do Morn.
Merlock arqueou uma sobrancelha.
- Pode ser, mas este é um vilarejo escondido pelas montanhas. Não é surpresa vocês terem passado despercebidos. Entretanto, acho que isso não vai durar muito. Só falei nesses fatos porque coisas estranhas estão acontecendo aqui também, já que você achou a pedra na Espinha. - Com um falar sóbrio, despediu-se deles curvando-se e dando um leve sorriso.
Garrow tomou o caminho para o Carvahall com Harry bem atrás dele.
- O que você acha? - perguntou Harry.
- Vou obter mais informações antes de tirar conclusões. Leve a pedra de volta para a carroça e, depois, faça o que quiser. Encontrarei vocês no jantar na casa do Horst.
Harry esquivou-se pelo meio da multidão e, feliz, correu para a carroça. As vendas ocupariam seu tio durante horas, tempo que ele planejava aproveitar totalmente. Escondeu a pedra embaixo das bolsas e partiu para a cidade com um passo presunçoso.
Ele andava de uma barraquinha a outra, avaliando as mercadorias com seu olhar de comprador, apesar de seu humilde estoque de moedas. Quando falava com os mercadores, eles confirmavam o que Merlock havia dito sobre a instabilidade na Alagaésia. Várias vezes, a mensagem era repetida: a segurança do ano passado nos abandonou, novos perigos apareceram. Nada mais é seguro.
Mais tarde, naquele dia, comprou três bastões de doce maltado e uma tortinha de cereja extremamente quente. Aquele calor foi bom depois de passar horas em pé na neve. Lambeu a calda grudenta dos dedos com pena, querendo mais. Sentou-se à beira de uma varanda e mordiscou um pedaço do doce. Dois meninos do Carvahall lutavam perto dele, mas Harry não sentiu nenhuma vontade de se juntar a eles.
Conforme o dia chegava ao final da tarde, os mercadores iam negociar nas casas das pessoas. Harry esperava impaciente pela noite, quando os trovadores apareciam para contar histórias e fazer truques. Ele adorava ouvir contos sobre magia, deuses e, se tivesse muita sorte, sobre os Cavaleiros de Dragões. O Carvahall tinha o seu próprio contador de histórias, James, amigo de Harry, mas os contos dele ficaram velhos, ao passo que os trovadores sempre tinham histórias novas que ele ouvia avidamente.
Harry tinha acabado de quebrar uma ponta de gelo do beiral da varanda quando viu Petigrew ali perto. O açougueiro não o viu, então Harry abaixou a cabeça e saiu correndo, virando uma esquina, em direção à taverna do Morn.
O interior estava quente e repleto da fumaça oleosa das velas feitas de gordura. Os chifres do urgal, pretos e brilhantes - cuja envergadura retorcida tinha a extensão dos braços dele esticados, - estavam pendurados acima da porta. O bar era comprido e baixo, com uma pilha de pedaços de madeira de um lado para os clientes cortarem. Morn atendia no bar com as mangas enroladas até os cotovelos. A metade de baixo de seu rosto era curta e amassada, como se tivesse encostado o queixo em uma roda de moagem. As pessoas lotavam as sólidas mesas de carvalho e ouviam dois mercadores que tinham encerrado seus negócios mais cedo e foram beber cerveja.
Morn olhou por cima de uma caneca que ele limpava.
- Harry! Que bom ver você! Onde está o seu tio?
- Comprando. - disse Harry, dando de ombros. - Ele ainda vai demorar.
- E Rony? Ele está aqui? - perguntou Moro enquanto passava o pano em outra caneca.
- Está, não havia nenhum animal doente para evitar que ele viesse este ano.
- Que bom, que bom!
Harry apontou para os dois mercadores.
- Quem são eles?
- Compradores de grãos. Compraram o estoque de todo mundo por preços ridiculamente baixos e, agora, estão contando histórias fantásticas, esperando que acreditemos nelas.
Harry entendeu por que Moro estava tão chateado. As pessoas precisam daquele dinheiro. Não podemos viver sem ele.
- Que tipo de histórias?
Morn bufou.
- Eles disseram que os varden fizeram um pacto com os urgals e que estão formando um exército para nos atacar. Supostamente, foi apenas pela graça do nosso rei que fomos protegidos por tanto tempo, como se Voldemort se importasse se nosso vilarejo fosse completamente destruído. Vá ouvi-los. Tenho muito mais a fazer do que ficar explicando as mentiras deles.
O primeiro mercador enchia a cadeira com a sua enorme cintura.
Todos os seus movimentos faziam-na protestar bem alto. Não havia um sinal sequer de pêlos no rosto, suas mãos gordas eram lisas como as de um bebê, e ele tinha lábios projetados para fora que pendiam petulantemente quando bebia em um garrafão. O segundo homem tinha um rosto avermelhado. A pele em volta da mandíbula era ressecada e gorda, recheada com caroços de banha dura, como manteiga rançosa fria. Contrastando com o pescoço e com o papo, o resto do corpo era magro e se unia forma não-natural.
O primeiro mercador tentava, em vão, puxar para dentro da cadeira as laterais do seu corpo que escorregavam para fora. Ele disse:
- Não, não, vocês não entendem. Foi só pelos incessantes esforços do rei em favor de vocês que podemos conversar agora em segurança. Se ele, em toda a sua sabedoria, retirasse o seu apoio, vocês estariam arruinados!
Alguém gritou:
- Certo, então por que você também não nos conta que os Cavaleiros voltaram e que cada um de vocês matou uns cem elfos? Acha que somos crianças para acreditarmos na sua história? Podemos cuidar de nós mesmos. - O grupo riu.
O mercador começou a responder quando o companheiro magro interferiu com um aceno de mão. Nos dedos, jóias vistosas brilhavam.
- Vocês não entenderam direito. Nós sabemos que o Império não pode tomar conta de cada um de nós, como vocês desejam, mas pode evitar que urgals e outras abominações invadam este - ele procurou vagamente pelo termo correto - lugar.
O mercador continuou:
- Vocês estão com raiva do Império por tratar pessoas injustamente, é uma preocupação legítima, mas um governo não pode agradar a todos. Inevitavelmente, haverá discussões e conflitos. Entretanto, a maioria de nós não tem nada do que reclamar. Todo país tem um pequeno grupo de pessoas descontentes que não estão satisfeitas com o equilíbrio do poder.
- É, - gritou uma mulher - se você quiser chamar os varden de "pequeno grupo"!
O homem gordo suspirou.
- Já explicamos que os varden não têm interesse em ajudá-los. Isso é apenas uma mentira perpetuada pelos traidores em uma tentativa de abalar o Império e nos convencer de que a verdadeira ameaça está dentro, e não fora, das nossas fronteiras. Tudo o que eles querem é depor o rei e tomar posse das nossas terras. Eles têm espiões por toda parte enquanto preparam a invasão. Nunca se sabe quem está trabalhando para eles.
Harry não concordou, mas as palavras dos mercadores eram serenas, e as pessoas concordavam com a cabeça. Ele deu um passo à frente e disse:
- Como vocês sabem disso? Posso dizer que as nuvens são verdes, mas não quer dizer que isso seja verdade. Provem que não estão mentindo. - Os dois homens olharam furiosamente para ele enquanto o povo do vilarejo esperava a resposta em silêncio.
O mercador magro falou primeiro. Ele evitou os olhos de Harry.
- Vocês não ensinam seus filhos a respeitarem os mais velhos? Ou vocês deixam garotos desafiarem homens quando bem entendem?
Os ouvintes ajeitaram-se de modo inquieto e olharam fixamente para Harry. Aí, um homem disse:
- Responda à pergunta.
- É o senso comum. - disse o gordo, com gotas de suor em cima do lábio superior. A resposta dele irritou o pessoal do vilarejo, e a discussão recomeçou.
Harry voltou ao bar com um gosto amargo na boca. Ele nunca havia encontrado alguém que favorecesse o Império e reprovasse seus inimigos. Havia um ódio do Império entranhado em Carvahall, a natureza disso era quase hereditária. O Império nunca os ajudou nos anos difíceis, quando eles quase passaram fome. E os cobradores de impostos eram impiedosos. Ele sentiu-se justificado ao discordar dos mercadores quanto à misericórdia do rei, mas especulou, de fato, sobre os varden.
Os varden formavam um grupo rebelde que invadia e atacava o Império constantemente. A identidade do líder deles era um mistério, como também quem havia formado o grupo nos anos seguintes à ascensão de Voldemort ao trono há mais de um século. O grupo ganhava muita simpatia quando conseguia se livrar dos esforços do rei para destruí-los. Pouco se sabia dos varden exceto que se você fosse um fugitivo e tivesse de se esconder, ou se odiasse o Império, aí eles o aceitariam. O único problema era achá-los.
Morn inclinou-se sobre o bar e disse:
- Incrível, não é? Eles são piores do que abutres voando em círculos sobre um animal morto. Haverá encrenca se ficarem aqui por muito mais tempo.
- Para nós ou para eles?
- Para eles. - disse Morn, enquanto vozes zangadas enchiam a taverna. Harry saiu quando a discussão ameaçou ficar violenta. A porta bateu atrás dele, cortando as vozes. Estava no começo da noite, e o sol desaparecia rapidamente. As casas projetavam sombras compridas no chão. Enquanto Harry descia a rua, notou Rony e Hermione em pé numa viela.
Rony disse algo que Harry não conseguiu ouvir. Hermione olhou para baixo, para as mãos dela, e respondeu em voz baixa. Depois, ficou nas pontas dos pés e beijou-o antes de sair correndo. Harry foi andando depressa na direção de Rony e brincou:
- Está se divertindo? - Rony resmungou de forma não-comprometedora uma resposta conforme começou a andar.- Você ouviu as novidades que os mercadores contaram? - perguntou Harry, seguindo-o. A maioria das pessoas do vilarejo estava dentro de casa, conversando com os mercadores ou esperando até ficar escuro o bastante para a atuação dos trovadores.
- Ouvi. - Rony parecia estar distraído. - Qual é a sua opinião sobre Petigrew?
- Achei que isso fosse óbvio.
- Haverá sangue entre nós quando ele descobrir sobre mim e Hermione. - afirmou Rony. Um floco de neve caiu no nariz de Harry, que olhou para cima. O céu havia ficado cinza. Ele não conseguia pensar em nada apropriado para dizer. Rony estava certo. Segurou forte no ombro do primo enquanto continuavam descendo pela pequena rua secundária.
O jantar na casa de Horst era farto. O salão estava repleto de conversas e risos. Licores doces e cervejas encorpadas eram consumidos em generosas doses, contribuindo para nutrir aquela atmosfera ruidosa. Quando os pratos estavam vazios, os convidados de Horst saíram da casa e dirigiram-se para o acampamento dos mercadores. Um círculo de postes, com velas no topo, foi montado no chão em volta de uma grande clareira. Fogueiras ardiam ao fundo, pintando o chão com sombras dançantes. O povo do vilarejo juntou-se lentamente em volta do círculo e esperou, ansioso, no frio.
Os trovadores saíram das suas barracas, fazendo acrobacias vestidos com roupas com franjas, seguidos por menestréis mais velhos e mais pomposos. Os menestréis proviam a música e a narração, enquanto seus companheiros mais jovens encenavam as histórias. As primeiras peças eram puro entretenimento: dissolutas, cheias de graça, quedas e personagens ridículos. Mais tarde, entretanto, quando as velas começaram a espocar em seus pedestais e quando todos haviam se reunido, formando um círculo coeso, o velho contador de histórias, James, deu um passo à frente. Uma barba branca, com pequenos nós, ondulava sobre o peito dele. E uma capa preta comprida escondia seus ombros curvados, obscurecendo o corpo. Abriu os braços e, imitando garras com as mãos, recitou para todos:
- As areias do tempo não podem ser detidas. Os anos passam, quer queiramos ou não... Mas podemos nos lembrar. O que foi perdido pode, entretanto, viver na nossa memória. O que vocês estão para ouvir é imperfeito e fragmentado, mas guardem tudo com cuidado, pois sem vocês, isso não poderá existir. Passo a vocês agora uma lembrança que foi esquecida, escondida na bruma nebulosa que repousa atrás de nós.
Seus olhos entusiasmados examinavam os rostos interessados. O olhar dele demorou-se em Harry, o último de todos.
- Antes dos pais dos seus avós nascerem, e sim, até mesmo antes dos pais deles, a ordem dos Cavaleiros de Dragões foi formada. Proteger e guardar era a missão e, durante milhares de anos, eles tiveram sucesso. A proeza na batalha era inigualável, pois cada um tinha a força de dez homens. Eram imortais, a não ser que uma lâmina ou um veneno os atacasse. Seus poderes eram usados apenas para o bem e, sob a proteção deles, cidades e altas torres foram construídas. Enquanto mantiveram a paz, a terra prosperava. Foi uma época de ouro. Os elfos eram nossos aliados, e os anões, nossos amigos. A riqueza enchia nossas cidades, e os homens prosperavam. Mas chorem, pois isso não podia durar muito tempo.
James olhou para baixo, silenciosamente. Uma tristeza infinita ressoava em sua voz.
- Embora nenhum inimigo pudesse destruí-os, eles não tinham como se protegerem de si mesmos. E aconteceu, no auge do poder, que um menino, chamado Voldemort, nasceu na província de Inzilbêth, que deixou de existir. Aos dez anos ele foi testado, segundo o costume, e descobriu-se que um grande poder residia nele. Os Cavaleiros aceitaram-no como um deles. Ele passou pelo treinamento, superando todos os outros em habilidade. Dotado de uma mente veloz e um corpo forte, ele ascendeu rapidamente na hierarquia dos Cavaleiros. Alguns viram a rápida ascensão como um perigo e alertaram os outros, mas os Cavaleiros ficaram arrogantes por causa do seu poder e ignoraram o aviso. Infelizmente, o infortúnio nasceu naquele dia. Então, logo depois que o seu treinamento terminou, Voldemort fez uma imprudente viagem com dois amigos. Voaram para longe, para o norte, noite e dia, e passaram pelo território remanescente dos urgais, imprudentemente pensando que seus novos poderes os protegeriam. Lá, em um grosso lençol de gelo, que não se derrete nem no verão, sofreram uma emboscada enquanto dormiam. Embora os amigos e os dragões deles tivessem sido assassinados, e ele tivesse sofrido grandes ferimentos, Voldemort matou seus adversários. Tragicamente, durante a luta, uma flecha perdida atingiu o coração do seu dragão. Sem ter o conhecimento necessário para salvá-lo, o animal morreu em seus braços. Assim, as sementes da loucura foram semeadas.
O contador de histórias apertou as mãos e olhou lentamente em volta, as sombras oscilavam em seu rosto desgastado pelo tempo. As palavras seguintes soaram como o som fúnebre de um réquiem.
- Só, despojado de grande parte de sua força e quase louco por causa da perda, Voldemort vagou sem esperança naquela terra desolada, procurando a morte. Ela não conseguia atingi-lo, embora ele se lançasse sem medo contra qualquer coisa viva. Os urgals e outros monstros, logo, fugiram de sua forma assombrada. Durante esse tempo, presumiu que os Cavaleiros poderiam conceder a ele outro dragão. Incentivado por esse pensamento, iniciou a árdua jornada de volta, a pé, atravessando a Espinha. O território que sobrevoou, sem fazer nenhum esforço nas costas de um dragão, exigia dele agora meses para atravessá-lo. Ele podia caçar usando magia, mas freqüentemente passava por lugares onde os animais não andavam. Então, quando seus pés finalmente deixaram as montanhas, ele estava à beira da morte. Um fazendeiro encontrou-o caído na lama e chamou os Cavaleiros. Inconsciente, foi levado para os domínios deles, e seu corpo foi curado. Dormiu durante quatro dias. Ao acordar, não deu sinal de que sua mente estava perturbada. Quando foi levado perante um conselho reunido para julgá-lo, Voldemort exigiu outro dragão. O desespero no pedido revelou a sua demência, e o conselho viu quem ele realmente era. Depois de ter recebido uma negação, Voldemort, através do espelho retorcido da sua loucura, começou a crer que a culpa do dragão dele ter morrido era dos Cavaleiros. Noite após noite, ele remoía essa idéia e bolou um plano para se vingar.
O volume das palavras de James caiu para o de um sussurro hipnotizante.
- Encontrou um Cavaleiro que simpatizou com ele e, ali, suas palavras traiçoeiras criaram raízes. Devido a uma argumentação persistente e ao uso de segredos obscuros que aprendeu com um Espectro, ele incitou o Cavaleiro contra os mais velhos. Juntos, traiçoeiramente, enganaram e mataram um dos anciãos. Quando o ato detestável foi realizado, Voldemort voltou-se contra o seu aliado e exterminou-o sem dar qualquer aviso. Os Cavaleiros encontraram-no depois, com sangue ainda pingando das mãos. Um grito partiu dos seus lábios, e ele fugiu para dentro da noite. Devido a ser sagaz na sua loucura, não conseguiram achá-lo. Durante anos ele se escondeu nas terras desoladas como um animal caçado, sempre vigilante contra seus perseguidores. A atrocidade cometida não foi esquecida, mas com o passar do tempo, as buscas cessaram. Depois, devido a um momento de infortúnio, ele encontrou um jovem Cavaleiro, Lucius, forte de corpo, mas de mente fraca. Voldemort convenceu-o a deixar um portão destrancado na cidadela Ilirea, que hoje é chamada de Urû'baen. Por esse portão, Voldemort entrou e roubou um filhote de dragão. Ele e seu novo discípulo se esconderam em um lugar maléfico onde os Cavaleiros não ousavam se aventurar. Lá, Lucius virou aprendiz das artes ocultas, aprendendo segredos e magias proibidas que nunca deveriam ser reveladas. Quando seu aprendizado terminou e o seu dragão negro, Shruikan, estava crescido, Voldemort revelou-se ao mundo, tendo Lucius ao seu lado. Juntos, lutavam contra qualquer Cavaleiro que encontrassem. A cada morte a força deles crescia. Doze dos Cavaleiros juntaram-se a Voldemort por desejarem o poder e por quererem vingança contra atos vistos como ofensas. Aqueles doze, com Lucius, viraram os Treze Renegados. Os Cavaleiros não estavam preparados e não resistiram ao massacre. Os elfos também lutaram amargamente contra Voldemort, mas foram sobrepujados e forçados a fugir para os seus locais secretos, de onde nunca mais saíram. Somente Dumbledore, líder dos Cavaleiros, conseguiu resistir a Voldemort e aos Renegados. Mais velho e sábio, lutou para salvar o que podia e evitou que os dragões restantes caíssem nas mãos dos seus inimigos. Na última batalha, perante os portões de Dorú Areaba, Dumbledore derrotou Voldemort, mas hesitou no golpe final. Voldemort aproveitou o momento e feriu-o no lado. Gravemente ferido, Dumbledore fugiu para a montanha Utgard, onde ele esperava recuperar as forças. Mas isso não aconteceria, pois Voldemort o encontrou. Durante a luta, Voldemort deu um chute entre as pernas de Dumbledore. Com esse golpe baixo, ele ganhou domínio sobre Dumbledore e decepou a cabeça dele com uma espada flamejante. Depois, conforme o poder corria por suas veias, Voldemort proclamou-se rei de toda a Alagaésia. E, desde aquele dia, ele tem nos governado.
Ao final da história, James retirou-se com o resto dos trovadores. Harry achou ter visto uma lágrima brilhando no rosto dele. As pessoas cochichavam baixinho, umas com as outras, enquanto eles saíam. Garrow disse para Harry e Rony:
- Considerem-se afortunados. Eu só ouvi essa história duas vezes na vida. Se o Império souber que James a contou, ele não viverá o bastante para ver um novo mês.
Comentários (0)
Não há comentários. Seja o primeiro!