IV




Enquanto se arrumava para o jantar, Gina tentava compreender por que havia se saído tão mal no incidente daquela tarde. Se ela não tivesse se perdido em explicações que ele não pedira, se tivesse se comportado como uma pessoa madura... Com certeza não estaria agora se sentindo tão arrasada.
Suspirando, sentou-se no banco estofado em frente à penteadeira e examinou a imagem refletida no espelho. Havia chorado tanto que as olheiras revelavam-se por baixo da maquilagem.
- Droga! - blasfemou.
Descansou o braço sobre a madeira polida e fungou o nariz desalentada.
Por quê? Perguntou-se. Por que sempre se sentia como vítima depois de uma discussão com Harry, quando ele, um segundo mais tarde, já voltava ao normal e conversava naturalmente com a Sra. Gittens? Era ele que conti¬nuava a tratá-la como criança e ela acabava entrando no jogo dele.
Na verdade, não estava zangada com Harry pelo modo com que repreendeu Cedrico. Ao contrário, era honesta o suficiente para admitir que a intervenção dele só lhe trouxe alívio, ainda que desencadeasse novo desentendimento. A atitude de Cedrico serviu principalmente para alertá-la contra os perigos daquele relacionamento, uma vez que não se sentia atraída pelo rapaz. Quanto a isso, só podia agradecer a Harry.
Mas estremecia ao lembrar da conversa que tiveram quando ficaram sozinhos, logo após o incidente. Ele a encarou impaciente e perguntou com rispidez:
- Desde quando aquele paspalho toma a liberdade de tocá-la?
- Harry, não é o que está pensando... É que... Bom, quando levei o jipe para a garagem, ele ficou com pena de mim e... - Baixou a cabeça e fixou o olhar no chão. - Acho que eu mesma queria aquilo...
- Como assim? Sofreu algum acidente com o Land Rover? Já não lhe pedi diversas vezes que não corresse?
- Não, não corri - explicou. - E não houve nenhum acidente.
- Por que então ele ia sentir pena de você? O que aconteceu? É melhor você mesma me contar, antes que a Sra. Gittens o faça.
Gina ergueu a cabeça instintivamente, como que iluminada por uma idéia.
- Quer dizer que ainda não falou com a Sra. Gittens?
- Não. Quando cheguei fui direto à garagem. Por quê?
- Oh, Deus do céu! - exclamou, relaxando os ombros. - Pensei que soubesse... Pensei que por isso tinha ficado tão furioso...
- O que havia para eu saber? Gina, vamos, conte logo? O que é que eu devia saber?
- Não se lembra?
- Lembrar de quê?
- Você me mandou ir a um lugar hoje à tarde...
- Céus! Claro que me lembro - começou Harry, finalmente compreendendo. - O Land Rover! Balbuciou. - Você apanhou Cho Chang no... - Agarrou-a pelos braços. - Diabos! Esqueci-me dela completamente!
Isso já era um conforto, pensou Gina, mas seu alívio durou pouco.
- Sua pestinha! - bradou Harry, corando de raiva. - Um dia vou lhe dar a surra que bem merece!
A violência das palavras dele devolveu-lhe a coragem e, reunindo as forças que lhe restavam, Gina o provocou:
- Você não é homem suficiente para isso, Harry Potter!
Libertou-se dele com violência e andou até a casa entrando pela porta da cozinha. Ignorando a perplexidade de Cook, subiu até o andar superior e trancou-se no quarto. Harry não a seguiu mas só sentiu-se segura depois de trancar a porta.
E agora ali estava, prostrada sobre o banco da penteadeira, estudando os olhos avermelhados e o rosto inchado. Já havia se passado três horas, e ainda receava descer Para o jantar com Harry e Cho Chang. Havia sido a Sra. Gittens que, depois de insistir muito, conseguiu fazê-la abrir a porta.
- Você sabia que isso ia acontecer - comentou a senhora, recolhendo as roupas que Gina deixou espalhadas pelo chão. - Se vista - aconselhou, vendo-a apenas com o roupão de seda. - Seu tio a espera para o jantar. Quer que conheça melhor a moça que chegou hoje à tarde.
- Creio que não há muito mais para eu conhecer - retrucou Gina, sentada na cama com as pernas cruzadas.
- Soube que você foi grosseira com a moça - disse a Sra. Gittens. ¬Se não quer que Harry venha buscá-la à força, sugiro que se esforce para ser gentil.
Gina tomou a suspirar, imaginando a roupa "social" que deveria vestir. A idéia de jantar em companhia de Cho Chang lhe dava calafrios, mas se ausentar da refeição poderia ser pior. Harry não iria perdoá-la.
Seu quarto dava para os fundos da casa. À direita, as imensas árvores projetavam sombras compridas no cair da tarde, quando morcegos começavam a voar, esbarrando nos galhos cobertos de folhas. À esquerda, onde havia o campo de tênis e a piscina, telas de arame forradas de rosas amarelas escondiam os vestiários. O quarto em si era espaçoso, e a mobília combinava com o estilo da casa e a paisagem: guarda-roupas embutidos gigantescos, uma penteadeira ampla e quadrada com espelhos e uma cama enorme, grande o suficiente para acolher várias pessoas.
Lembrava-se ainda do medo que sentiu quando Harry a colocou pela primeira vez naquela cama, embora ele estivesse sempre presente para, habilmente, espantar-lhe os temores... Quando despertava aos gritos por causa de um terrível pesadelo encontrava-o sentado na cama, pronto para confortá-la... Em seguida, quando ficava sozinha novamente, sentia profundamente a ausência dele, mas acalmava-se porque tinha certeza de que seria socorrida quando precisasse.
A Sra.Potter, mãe dele, discordava de sua presença na casa. O marido morrera repentinamente quando Harry tinha apenas dezenove anos, o que o obrigou a abandonar a faculdade para cuidar dos negócios. Harry tinha vinte e um anos quando Gina passou a morar ali e a mãe dele, inconformada, não perdia uma só oportunidade para criticá-lo pela decisão de acolher a criança.
- A menina não tem o nosso sangue, Tiago! Todos vão começar a falar! - argumentava ela.
Era das poucas pessoas que o chamavam de Tiago, mas suas súplicas nunca foram atendidas. O pai de Gina não tinha parentes vivos e Harry e a mãe eram os únicos com direito a reivindicar a tutela da menina.
Dava graças que a Sra. Potter não mais vivia ali em Matlock Edge... Não havia sido fácil suportar as pequenas provocações, as palavras ásperas, as dolorosas indiretas que a senhora lhe dirigia quando Harry eventualmente se ausentava de casa. Quando Gina completou dez anos, a Sra. Potter resolveu se mudar para Manchester, contentando-se com as visitas mensais que Harry lhe fazia. Apesar de longe, continuava a insistir que o apego de Harry por Gina lhe causava desgosto e a deixava doente.
Enxugando as lágrimas, Gina abriu as portas do guarda-roupa. Não gostava daqueles vestidos sofisticados, cuidadosamente enfileirados ali. Por ela, usaria sempre seu velho jeans que a deixava tão à vontade. Além disso, nos últimos tempos jantava sozinha, sentada em frente à televisão, sem se preocupar com a aparência. Quando, porém, acontecia de descer para jantar com Harry, esforçava-se por colocar uma saia e uma blusa. Não poderia se vestir assim desta vez, porque duvidava que Cho Chang apreciasse roupas tão comuns.
O ponteiro do relógio corria e não queria que Harry viesse à sua procura. Então, tomou um banho rápido e, sem pensar mais, decidiu-se pelo simples conjuntinho de saia e blusa. Que Cho Chang pensasse o que quisesse!
Abotoava a blusa quando ouviu batidas na porta.
- Já vou, já vou - respondeu, imaginando que fosse a Sra. Gittens.
- Estou acabando de abotoar a blusa...
Interrompeu-se bruscamente ao ver a porta se abrir e o vulto de Harry parar à sua frente. Ele vestia um temo claro que ressaltava a pele bronzeada e a elegância do corpo ágil e forte.
- Oh! - exclamou Gina, dando-lhe as costas e apressando-se em fechar a blusa. Felizmente, para sua surpresa, ele não estava irritado.
- Deixe que eu ajudo -disse ele, parando atrás dela.
- Não!
- Não?
- Quero dizer, você não sabe. - Corrigiu, os dedos trêmulos e impacientes.
Ele a segurou pelos ombros e fez com que virasse e o olhasse de frente.
- Como não sei? Indagou, afastando as mãos dela e prendendo os botões nas casas. Subitamente, seus dedos tocaram-lhe os seios por acaso e imediatamente ele tirou a mão. Desviou o olhar e andou em direção à porta, inquieto, como se tivesse algo a dizer. Finalmente deteve-se, voltou-se e fitou-a nos olhos. Na sua expressão esboçou-se um pouco da irritação que Gina conhecia. - Escute... Acho que hoje à tarde nós dois nos excedemos... Fui rude, admito. Tive motivos, bem sei, mas... De qualquer maneira - disse, levando uma mão ao pescoço, minha intenção não era magoá-la.
Os lábios de Gina tremiam e mais uma vez ela lhe deu as costas para desprender a fita do cabelo.
- Quem disse que você me magoou? Perguntou, tentando controlar o tremor da voz.
- A Sra. Gittens me contou que a surpreendeu chorando ¬respondeu, aproximando-se dela devagar.
- Oh... A Sra. Gittens! Exclamou, soltando o cabelo nervosamente.
- Sim, a Sra. Gittens! Harry insistiu, alisando-lhe os cabelos. Imagino que fui injusto... No ano que vem você completará dezoito anos. Idade para casar, se quiser. Idade em que terá liberdade para ver o jovem Cedrico... Se for a ele que ama.
- Não seja bobo, Harry! - disse, sacudindo a cabeça para desvencilhar-se das mãos dele e procurando a escova. Estaria ele arrependido? Teria esquecido o que ela havia feito com Cho cHang? Não estou interessada no "jovem Cedrico", como o chama. Não fique me defendendo, Harry. Não sou sua filha!
- Mas tenho idade para ser seu pai, não tenho? Bom, pelo jeito não aceita minhas desculpas. Vou descer. Não quero atrapalhar você...
Sem dúvida ele se divertia com ela, pensou Gina, esforçando-se por não replicar à altura.
- Obrigada... - comentou, e continuou a falar antes de ele chegar à porta: - Harry, fico contente por não estar mais bravo comigo.
- Eu disse que não estou? Entreabriu os lábios num sorriso irônico. - Só queria que soubesse que não ignoro o fato de que você está crescendo.
- Verdade?
- Verdade - confirmou sem ênfase. - Você me faz sentir envelhecido.
E antes que ela pudesse responder, retirou-se.
Tal como Gina previu, o jantar transcorreu numa atmosfera deprimente.
Reuniram-se na sala de jantar da família, um dos menores cômodos de Matlock Edge, em cujo centro havia uma mesa circular datada do século XVIII. As paredes eram forradas com painéis de madeira de carvalho, ornamentada com pequeninos botões de rosa. O teto era de estuque alto e, embora sustentasse um imenso lustre de bronze e cristal, eles comeram à luz de candelabros, como Harry preferia quando recebia visitas.
Cho Chang sentara-se do outro lado, em frente à Gina, usando um vestido de chifon azul-gelo que lhe deixava os ombros expostos. Tinha a pela clara, igual a de Gina, o que sugeria não estar acostumada a tomar sol. Talvez fosse mais branca e macia que algodão, pensou Gina.
Agora que enfrentava a rival, sentia-se péssima com sua blusa branca e a saia plissada azul-escura. Devia estar parecendo uma tola colegial. Por que não tinha vestido uma roupa mais vistosa? Recriminava-se. Pelo menos Harry a teria notado.
Cho, como Gina pôde perceber, soubera aproveitar as horas que ante¬cederam o jantar. Ela e Harry pareciam dar-se muito bem, relacionando-se com certa intimidade, apesar de ela ainda chamá-lo de Sr. Potter.
- Foi bom ter ido à reunião de Mau Hodge - observou Harry, enquanto Gina tentava engolir o pedaço de carneiro que estivera mastigando por longo tempo. - Não somos exatamente amigos mas colegas de profissão, e só resolvi ir porque precisávamos conversar sobre um pedido de exportação.
- Para mim também foi bom - disse Cho Chang. - Quero dizer, eu estava meio perdida. O aluguel do meu apartamento estava vencido e, como sabe, minhas qualificações não me preparam para qualquer tipo de trabalho. Sua proposta veio em boa hora.
- Quais são as suas qualificações, srta. Chang? Perguntou Gina polidamente.
Harry segurou a respiração, enquanto Cho sorriu com tolerância.
- Oh, é que... Como você, imagino, cresci esperando não precisar trabalhar. Papai era escritor de livros técnicos, muito bem-sucedido, por sinal. Mas, quando morreu, deixou tantas dívidas que eu fiquei praticamente sem recursos financeiros. Restou-me o suficiente para me vestir bem e cuidar da beleza!
Gina ficou tão embaraçada, que quis desaparecer. Mas, Deus do céu! Pensou irritada, Cho esperava realmente convencê-los com aquela história? Qualquer um pensaria duas vezes antes de fazer afirmações tão inconsistentes. Harry, entretanto, aparentemente acreditou.
- Em minha opinião... Esse é o tipo de mudança de vida necessário para qualquer um. Sinto-me culpado em relação à Gina - continuou - ela me convenceu de que se sentia feliz aqui em Matlock, onde nada fazia a não ser andar feito doida com aquela moto barulhenta. Creio ter chegado o momento de ela começar de fato a demonstrar que é minha sobrinha, e passar a agir como tal. De certa maneira, mamãe acertou ao dizer que a criava para crescer e viver como uma cigana.
Gina engoliu em seco, mas antes que pudesse responder Cho acrescentou:
- Bem, espero que ela se disponha a me ouvir... Só se pode ensinar quem tem vontade de aprender.
- Oh, tenho certeza de que ela não vai decepcioná-la - observou Harry, levando o copo de vinho à boca.
Gina rangeu os dentes. Falavam dela como se não estivesse presente e nesse momento sentiu o desejo - o infantil desejo - de fazer uma cena e deixar a sala. Conseguiu se conter. Permaneceu sentada e levantou o copo, numa espécie de saudação sarcástica a Harry, embaraçando-o pela segunda vez.
- Sua casa é maravilhosa! - Cho observou como se quisesse continuar sendo o centro das atenções. - Há muitos anos pertence à sua família? É que reparei numa estranha inscrição na escada. Algo no estilo de Grinling Gibbons...
- Um contemporâneo dele, creio eu - comentou Harry, recompondo-se e tentando sustentar um sorriso. - A casa foi comprada por meu avô no início deste século. Antes dele, pertenceu à condessa de Starforth.
- Uma história bem interessante! - disse Cho, terminando de comer. - Papai e eu tínhamos uma casa em Comwall, Trenholme. Comprou-a depois que mamãe faleceu. Segundo ele, trabalhava melhor lá do que em Londres, onde os amigos viviam à sua volta. Foi por esse motivo que mudamos. Papai só conseguia escrever em completa solidão.
- É curioso que nenhum dos amigos de seu pai pudesse lhe oferecer um emprego. - Interveio Gina, determinada a não facilitar as coisas para a outra. - Quero dizer, amigos são para essas coisas, não são? Para ajudar a gente quando estamos numa situação difícil.
Cho apertou os lábios.
- Gina, eu não estava numa situação difícil... De fato, ofereceram-me muitas oportunidades. Mas eu queria encontrar o emprego certo. O senhor entende, não, Sr. Potter? Uma moça com a minha formação... Bom, só valeria a pena um emprego onde eu me sentisse realmente à vontade.
- Compreendo - disse Harry, meneando a cabeça.
- Em outras palavras, não aceitaria limpar o chão ou controlar o estoque de um supermercado; é isso?
Cho procurou respondeu com polidez.
- Nunca me vi às voltas com propostas de emprego como essas ¬afirmou, lançando outro olhar de tolerância a Harry.
- Pois então não vejo o que você seria capaz de fazer. - Gina apoiou o rosto nas mãos. - Quer dizer então que suas qualificações não a preparam para nenhum tipo de emprego.
- Gina, agora já basta! - bradou Harry. - Você entendeu perfeitamente o que a srta. Chang quis dizer ...
- Oh, Cho, por favor!
- Está bem, Gina, está bem...

Continua ...

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