O ponto de mutação
Capítulo 9 - O ponto de mutação
A história da aluna que vencera a morte e voltara do além correu por toda Hogwarts. Primeiro Theresa passou por uma avaliação completa com Madame Pomfrey, que constatou uma deficiência protéica e passou uma dieta à base de carnes e ovos.
Seus pais foram avisados e no primeiro fim-de-semana eles vieram ver a filha, numa concessão especial do conselho da escola. Houve choradeira e muito embaraço por parte da garota. Eles mal podiam acreditar que tinham sua filha de volta e ela iria terminar Hogwarts aquele ano.
Apesar de ser da Corvinal, Theresa passou muitas horas com a Profª McGonagall, que dava Transfiguração. Durante dias, as duas conversaram sobre o que tinha acontecido, Theresa prestando as informações que sabia e a Profª McGonagall tentando achar uma explicação. O mais perto disso que encontraram foi uma justificativa. Theresa tinha toda a habilidade (mas não o treino) para ser uma animaga; talvez isso a tivesse ajudado a reter suas lembranças como humana enquanto era um seminviso. Esse era o maior desafio de um animago: manter-se pensando como um humano mesmo na forma animal.
A moça aceitou o convite de Minerva e se submeteu ao treinamento para obter um registro no Ministério da Magia como animaga. Dessa maneira, ela poderia reverter o feitiço, se por acaso ela se visse novamente na mesma situação. Se é que aquela situação pudesse se repetir algum dia.
Mas em meio a toda aquela badalação, Theresa estava extremamente deprimida. A última coisa que ela queria na vida aconteceu: ela tinha decepcionado Severo. E tinha feito isso por voltar a ser humana, então ela se odiava por isso. Ela não dormia, sentindo falta daquele corpo sólido e quente a seu lado. Ela chorava entre os quatro postes de sua cama, as cortinas fechadas, lembrando-se do dia em que quase matara Snape de susto quando subira nos dosséis da cama dele.
Tudo isso acabara para nunca mais voltar.
Nunca mais.
Por outro lado, ela descobriu que ficar ao lado de Snape todos aqueles meses a tinha ensinado muito sobre Poções. Como ele vivia falando com Tessa sobre ingredientes, receitas e a correta manipulação de ingredientes, Theresa estava craque na matéria e apta a fazer seus exames de N.I.E.M.s a qualquer momento.
Claro, isso não ajudou em nada a amenizar sua situação com Snape.
Ele simplesmente a ignorava, e evitava contato com qualquer um. Durante as refeições no Salão Principal, muita gente ficava encarando os dois, esperando ver algum olhar mudo entre os dois protagonistas da maior história de Hogwarts do ano, depois da derrota de Voldemort. Mas nada disso acontecia. Theresa evitava olhar a mesa dos professores e Snape, quando aparecia (o que era raro) para as refeições, não lançava um único olhar para as mesas de estudantes que não fosse cheio de desprezo e ódio.
Os alunos notaram, sem saudade, que seu professor voltara a ser sarcástico, cruel e injusto, mas isso era ainda pior com a aluna do sétimo ano de Corvinal que tinha sido seu animal de estimação. Theresa Applegate era constantemente alvo de tiradas sarcásticas, comentários cruéis e perseguição implacável. Até Harry Potter, flagelo da existência de Snape, tinha ficado em segundo plano. Com os alunos, Snape era cruel; com seus colegas professores, ele estava intratável. Nem mesmo Hagrid, que normalmente ignorava o jeito ácido de Snape, arriscava iniciar uma conversa com ele.
Isso era em público. Em particular, a coisa era pior.
Snape tinha localizado a esquecida garrafa de uísque de fogo e voltara a fazer extenso uso dela. Sentado em frente à lareira que um dia abrigara a cama com cobertores, ele deixava a bebida embaralhar as imagens que pareciam gravadas a ferro e fogo na sua mente: Tessa rindo e pulando, Tessa tomando banho, Tessa pegando a mão dele e colocando em sua cabeça, Tessa dormindo com ele, suspirando de pura felicidade...
Uma ilusão. E agora ele tinha um vazio no peito.
Como ele pudera pensar que algum animal pudesse realmente ter algum tipo de dedicação a ele? Ele não tinha sequer amigos, como podia ter imaginado que conseguiria cuidar de um animal? Ela deveria estar se divertindo às suas custas. Naquele exato momento, provavelmente ela estava rindo com suas amigas, rindo dele, contando a todos sobre seus hábitos pessoais, sua aparência quando nu, citando as coisas que ele explicava sobre ser "um verdadeiro Snape" ou outras informações degradantes desse tipo. Claro que adolescentes não iam deixar passar essa oportunidade para ridicularizar um professor.
E a garrafa esvaziou-se rapidamente.
Aos fins de semana, Snape passou a ser figura cativa no pub Cabeça de Javali, em Hogsmeade, onde ia comprar uísque. Outras noites ele aparatava até o Beco Diagonal para ir renovar o estoque de bebidas na Travessa do Tranco. Ostensivamente, era o que parecia. Mas Snape nunca se deixava ficar bêbado. Não, ele tinha sido forjado no fogo da batalha e sempre tinha sido um guerreiro - nunca se deixava abater.
Mas aquele vazio...
- Já chega!
Theresa viu que seus colegas no salão comunal olhavam para ela com cara de espanto e só então se deu conta de que tinha falado em voz alta. Que tola!
Sua amiga Deborah, que estudava a seu lado, indagou:
- O que foi, Thessa?
- Eu já te pedi para me chamar de Theresa!
- Desculpa. Eu sempre te chamei de Thessa, antes de -
Theresa interrompeu, irritada:
- É, mas o que aconteceu, aconteceu, e eu não posso fingir que nada aconteceu, entende?
- Eu sei - disse a amiga - Já pedi desculpas!
- Não, Debi - ela suspirou - Quem tem que pedir desculpas sou eu. Me desculpe por falar contigo daquele jeito. Mas eu estou tão nervosa, não consigo nem dormir...
Deborah era a única pessoa a quem Theresa tinha contado tudo o que realmente acontecera, fora Dumbledore e McGonagall. Debi, como era chamada, descobrira que tinha perdido a amiga-menina com uma paixão adolescente por seu professor de Poções, mas ganhara uma amiga-mulher com um amor não-correspondido por Severo Snape.
Para Deborah, Theresa podia contar a decisão que tomara.
- Eu preciso falar com ele, Debi. De qualquer jeito.
- Shhh! Fala baixo! Quer que todo o salão comunal saiba disso? Ou pior ainda: tá doida para levar uma azaração no meio da cara, é?
- Qualquer coisa é melhor do que esse silêncio.
- Theresa, você ficou louca? Snape vai te deixar em detenção até o dia da formatura!
- Pois eu vou falar com ele de qualquer jeito. E vai ser é agora - Theresa se levantou e saiu porta afora, ignorando os apelos da amiga e os olhares espantados dos demais colegas.
- O que significa isso?!
- Professor, por favor, precisamos conversar.
- Não temos nada a dizer, Srta. Applegate - ele disse, naquela voz gelada que ela aprendera a odiar - Cinqüenta pontos a menos para Corvinal por invadir meus aposentos.
- Eu não saio daqui até esclarecermos tudo!
- Como eu já disse, não há o que esclarecer. Cem pontos a menos.
- Eu não aceito isso! - ela se ajoelhou no chão - Também não me importa quantos pontos vá tirar. Por favor, professor, se o senhor algum dia teve carinho por Tessa, por favor, fale comigo.
O rosto dele se fechou numa carranca perigosa, e ele sibilou por entre os dentes:
- Não ouse pronunciar esse nome na minha frente.
- Mas ela sou eu! - Theresa sentiu as lágrimas encherem seu rosto - Não pode negar isso!
- Tessa se foi quando a senhorita voltou - disse Snape, com desprezo - Talvez ela nunca tenha realmente existido, mas não ouse se comparar a ela.
- Nós duas somos uma só: uma pessoa que o ama demais!
- Você não sabe do que está falando, menina! Pare com essa pretensão de falar a respeito de coisas que você absolutamente desconhece!
- Uma coisa que eu conheço é meu coração, e sei que ele é seu - As lágrimas escorriam por sua bochecha - Como explica essa devoção de Tessa? Era puro amor!
- Isso é absolutamente ridículo! Olhe para você! Não vê o papel que está fazendo?
- Não, não vejo! - ela andou de joelhos para perto dele - E não me importo, Severo Snape. Mais uma vez eu não como e não durmo por sua causa. Tudo que eu fiz foi retornar à minha forma humana, sem querer! Acredite: não passa sequer uma hora inteira sem que eu lamente isso ter acontecido! Eu tinha felicidade e contentamento e isso foi arrancado de mim! Mas não posso me sentir culpada por coisas que não fiz!
Snape se inflou, o vozeirão perigosamente ameaçador:
- Não fez?! Então vai negar ter insistido para que eu a adotasse em meus aposentos? Vai negar ter quase morrido de fome para me forçar a tomá-la como bichinho de estimação?
- Eu só estava triste por achar que meu amor não era correspondido! Mas depois... ele foi. Ele foi correspondido. Você me amou!
- Não confunda as coisas, garota! Eu tinha muita afeição por um animalzinho que era carinhoso e dedicado. Isso não tem qualquer semelhança com corresponder às expectativas românticas mal-direcionadas de uma adolescente inexperiente!
- Não percebe? Você se deixou ser amado! É a mesma coisa, Severo! Amor é amor, não importa se por um bichinho, um filho ou uma esposa. Você tem essa capacidade. Não a reprima. Ela está dentro de você, mas da mesma forma que um seminviso se assusta e some, você também se assusta e deixa esse amor desaparecer dentro de você.
Snape andou pelo quarto, irritado:
- Isso não está levando a lugar nenhum! A senhorita deve se retirar imediatamente! Vou reportar seu comportamento ao seu diretor de casa na primeira oportunidade!
Theresa balançou a cabeça, os ombros caídos, os olhos vermelhos e inchados de tanto chorar:
- Nada disso importa e se você não consegue compreender isso, então você tem razão: isso não está levando a lugar nenhum. Nada vai adiantar.
- Levante-se e saia daqui.
- Não sem antes me prometer uma coisa: não deixe esse amor dentro de você morrer por causa do que aconteceu entre nós. Se quiser me odiar, me odeie o quanto quiser, mas não jogue fora a chance de ser feliz, nem que seja com uma outra pessoa. Eu não vou conseguir ser feliz sem você, mas talvez você possa ser feliz sem mim, e só o que eu quero é vê-lo feliz. Seja como for. Por favor, prometa. Não mate esse amor que você tem dentro de si, porque ele é puro e é lindo.
Snape teve que respirar fundo para dizer:
- Qualquer coisa para a senhorita sair daqui imediatamente.
- Não se esqueça de sua promessa. Por favor. O senhor costuma cumprir suas promessas; cumpra essa também.
- Agora vá embora antes que eu a jogue daqui para fora. A senhorita não está mais fazendo sentido. Volte para a sua casa. Se isso se repetir, vou cuidar pessoalmente de sua expulsão de Hogwarts, e não importa que seja cinco minutos antes de sua formatura!.
Theresa se levantou, e com olhos vazios, olhou para o homem que um dia tinha sido seu mestre e que a tinha olhado com carinho:
- Não se preocupe. Prometo que isso não vai se repetir. Eu também cumpro minhas promessas.
Ela deu meia volta e deixou as masmorras.
Desnecessário dizer que Snape jogou seu copo de uísque dentro da lareira, irritado.
A noite estava perdida.
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