Capitulo IV



Gina estremeceu. A pesar do calor que ainda emanava do velho fogão no canto da cozinha em Penmadoc, o ar ainda permanecia frio naquela noite. E era como se o frio pudesse penetrar na sola de seus sapatos e subir devagar por suas pernas. Imagina por que Lilian não trocara o piso de pedras por outro, mais moderno e aconchegante. Talvez pudesse imaginar o motivo... Aquela cozinha ainda era parte dos domínios de tia Nell e até mesmo Lilian tinha receio de se indispor com ela. Além do mais, era muito provável que Lilian jamais entrasse na cozinha, a não ser para dar ordens de vez em quando. Problemas domésticos e culinários jamais haviam sido de seu interesse.

Entretanto, para Gina era um alívio saber que certas coisas em Penmadoc não tinham mudado como as outras. Seu pai havia morrido, e isso era impossível de acreditar embora fosse dolorosamente verdadeiro. Lilian era a dona da casa agora. Gina estava ali apenas porque haveria um funeral...

Mal podia crer que haviam se passado seis meses desde que vira seu pai pela última vez em Londres. Ele lhe parecera tão bem disposto como sempre fora, talvez até um pouco mais rigoroso do que sempre fora. Mas Gina percebera que ele estava satisfeito em revê-la. Talvez até mais do que seria normal... era estranho pensar em tal fato agora, mas continuava com a impressão de que seu pai agira um tanto afetadamente talvez para encobrir algum problema. Lilian dissera nada saber sobre ele estar sofrendo de problemas do coração, mas podia ser que ele já soubesse de alguma coisa e estivesse escondendo sua doença de ambas.

Uma dor aguda no peito encheu-a de saudade. Se soubesse, naquela época, do que iria acontecer... Mas, como poderia? Como gostaria de poder, como sua avó podia, no passado, ter algum tipo de premonição! Mas jamais sentira algo assim. Fossem quais fossem os poderes extra-sensoriais que sua avó possuíra, eles haviam sido enterrados com ela.

De acordo com Lilian, o ataque cardíaco de seu pai fora totalmente inesperado. Ele estivera cavalgando naquela manhã. Mesmo sem fazer parte do grupo de caça da região, que sempre se reunia para eventuais caçadas às raposas, ele gostava de seguir os cães e, apesar da neve que havia caído na noite anterior, ele saíra a cavalo como costumava fazer. Também de acordo com o que Lilian contara, ele voltara para casa às três horas aproximadamente e fora direto para eu estúdio. Fora lá que ela o encontrara duas horas mais tarde, caído sobre a escrivaninha, o copo de uísque de onde estivara bebendo ainda preso entre seus dedos.

Gina respirou fundo e esfregou as mãos pelos braços, procurando aquece-los. Esperava que seu pai não tivesse sofrido. Ao falar com seu editor, no escritório onde trabalhava em Nova York, ele lhe dissera que essa era a melhor maneira de se morrer. Sem sofrimento, sem agonia... Talvez tivesse sido assim, mas apenas para seu pai, pensava agora, e não para as pessoas que ele deixara. Tia Nell estava inconsolável. Como ela própria.

Gina estremeceu de novo e sentiu as lágrimas inundarem seus olhos. Aproximou-se mais do fogão, puxando a gola do roupão flanelado que vestia para junto do pescoço. Pelo menos na região de Gales, ainda se usava um fogareiro como aquele no inverno, pensou, olhando para as chamas que apareciam por entre os buraquinhos do metal. O calor produzido ali era extremamente reconfortante.

Suspirou e olhou ao redor. Descera para pegar um copo de leite quente porque não conseguira dormir. Ainda estava confusa com a diferença de fuso horário e, embora já passasse de meia noite, em Nova York ainda seria o começo do entardecer. Imaginara que o leite quente poderia ajudá-la a sentir-se mais sonolenta, mas ele estava demorando demais para ferver naquele fogão tão antigo. Talvez devesse ter procurado por uma chaleira elétrica ou coisa parecida, mas isso não lhe ocorrera antes. E, com a demora, estaria ainda com mais frio quando voltasse para a cama e seria ainda mais difícil de adormecer.

Uma das brasas caiu sobre outra, no fogareiro, chamando-lhe a atenção. Olhou melhor. Poderia jurar que ouvira alguma coisa cair, mas já não estava tão certa de que fora entre as brasas. Talvez lá fora... Sabia que estava um tanto assustada naquela noite e sabia que o motivo era sua fragilidade emocional. Mas tinha certeza de estar sozinha no andar de baixo da casa, e aquele barulho deixara-a apreensiva. A neve caía pesada lá fora, e a casa, tão austera quanto sempre fora, tinha ares de expectativa que seriam difíceis de serem ignorados por uma pessoa normal.

O leite começou a ferver no exato momento em que alguém tocou a maçaneta da porta de fora, girando-a devagar. O som era inconfundível, o ferrolho gemendo como sempre fizera, nos muitos anos em que Gina vivera ali. Assustada e trêmula sem saber ao certo explicar por que se sentia assim, Gina não conseguiu se mover e não percebeu que o leite transbordava, até que ouviu o chiar característico acompanhado do cheiro acre de queimado.

- Oh, meu Deus! – sussurrou, afastando a panela daquele queimador. Mas estava muito mais preocupada com quem poderia estar lá fora do que com o leite que sujara o fogão.

Prestou maior atenção e poderia jurar que um ombro masculino estava tentando forçar a porta. Imobilizada pelo medo, ela apenas aguardava para ver o que aconteceria em seguida. Ouviu uma imprecação dita em sussurros e outra tentativa mais violenta contra a fechadura.

Engolindo em seco, Gina conseguiu dar alguns passos vacilantes até a ponta do corredor que dava para a saída da casa, no outro extremo da cozinha. Não havia uma porta ali mas podia ver a espécie de aposento estreito em que botas e casacos eram deixados, enfileirados junto a um suporte preso á parede. Lilian chamava aquele lugar de “cantinho da lama”, mas apenas em um sentido figurado, pois estava sempre absurdamente limpo. Era apenas um vestíbulo, simples e comum, que protegia a cozinha do frio quando se abria a porta de fora no inverno.

Gina procurou ver melhor mas não conseguiu. Tinha certeza de que havia alguém lá fora, e esse alguém era um homem, a julgar pelos murmúrios abafados através da porta. E, possivelmente, gratificantemente humano, já que chegara a pensar que havia fantasmas naquela casa. Seria melhor enfrentá-lo e deixar o medo de lado, imaginou, dando mais dois ou três passos hesitantes pelo vestíbulo.

- Quem... quem está aí? – indagou com voz trêmula, consolando-se com a certeza de que a velha porta de carvalho inglês era inexpugnável.

- Ora, quem poderia ser? – respondeu uma voz masculina bastante irritada. – Não ouviu o jipe?

- O jipe? – Gina franziu as sobrancelhas, sem entender. Não sabia que alguém chegaria naquela noite, muito menos em um jipe... – Poderia me dizer quem é, por favor? – perguntou de novo.

- O quê? – ouviu-o esbravejar. – Abra a porta, mãe! E pare com essa bobagem!

- Mãe... – Gina repetiu para si mesma, confusa.

De repente, seu estomago pareceu se apertar como nunca antes. Não podia ser! Não queria acreditar que fosse! Não naquela noite! Não quando estava usando aquela velha camisola que achara no fundo do armário no andar superior e aquele roupão que julgava ser mais velho ainda.

Vestira aquilo em uma espécie de consolo para si mesma, porque seu pai lhe dera aquela roupa quando ainda era uma adolescente, e que atualmente não estava em bom estado.

- Harry? – perguntou, a voz quase não saindo de sua garganta. Sabia que ele deveria estar percebendo agora que não se tratava de sua mãe do outro lado da porta.

- Gina? – ouviu-o perguntar, o tom incrédulo. E, evidentemente tomando controle de si mesmo, prosseguiu: - Pelo amor de Deus, é você, Gina? O que está fazendo? Esperando por mim acordada?


Continua (...)

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