Capitulo III



- Minha mãe ligou. – Harry mordeu o sanduíche e, ainda mastigando, continuou: - Também ela queria falar comigo e não conseguiu.

- Você está comendo? – O tom da voz dela era de ultraje, e Harry engoliu em seco antes de falar novamente.

- Estou. – E, tentando se justificar, prosseguiu: - Estou tentando me fortalecer para a viagem. Vou ter que dirigir até Penmadoc esta noite.

- Penmadoc?! Você só pode estar brincando!

- Sinto mas não estou, meu amor. – Harry negou com a cabeça para o mordomo, vendo que este fazia mímica como a lhe preparar outro sanduíche. – Meu padrasto teve um ataque cardíaco há dois dias.

- Oh, sinto muito Harry! Eu não podia imaginar! – Ela era toda gentilezas. – E como ele está? Não foi nada muito grave, foi?

- Acho que sim, Cho. Ele morreu. É por isso que minha mãe quer que eu vá a Penmadoc imediatamente. Afinal, sou o único parente que ela tem e, naturalmente, ela vai precisar de meu apoio.

Harry imaginava se estaria ou não mentindo à namorada. Não sabia ao certo do que sua mãe estava precisando. Na verdade, sentira-a muito estranha quando tinham conversado pelo telefone. Apesar de terem passado muito anos juntos, jamais imaginara que a morte de Arthur pudesse abalá-la tanto quanto percebera quando falara com ela.

- Quer que eu vá com você? – Cho ofereceu.

Por alguns segundos, ele se sentiu tentado a aceitar, mas logo se lembrou de Gina, e sua recusa foi automática.

- Não, acho que não é necessário, querida. Você sabe, funerais são algo muito íntimo da família e ainda não sei como tudo irá transcorrer...

- Sua irmã de criação vai estar por lá?

A pergunta parecia inocente, mas Harry conseguiu captar certa irritação na voz de Cho. Depois que mencionara o fato de que sua irmã de criação era inteligente além de bonita, sua namorada passara a detestá-la. E isso era ridículo aos olhos dele, já que as duas jamais tinham se conhecido.

- Talvez... Mas, mesmo se estiver, aposto que serei a última pessoa que ela vai querer ver.

- Sei. E quer que eu acredite nisso? – ela estava sendo irônica agora. – Não pense que esqueci o que me contou sobre ela tentar flertar com você quando mal acabara de sair das fraldas!

Harry maneou a cabeça, aborrecido com a conversa. Devia estar bêbado quando falara a Cho sobre aquilo, imaginou.

- Não acreditou de fato no que eu disse, acreditou? – Tentou parecer incrédulo. – Ora, eu estava apenas brincando, Cho! Pelo amor de Deus, já se passaram mais de oito anos desde que eu e Gina nos vimos pela última vez!

Cho ficou em silêncio por alguns instantes, depois disse, com cautela:

- Então foi mentira o que me disse sobre ela ter entrado em seu quarto e ter se enfiado em sua cama?

- É claro que sim! – Ele devia, definitivamente estar mais bêbado do que poderia imaginar quando dissera tal coisa à namorada, pensou, irritado consigo mesmo.

- Sei... e sua mãe não os surpreendeu e não os ameaçou também?

- Não, meu amor! Ora, eu estava apenas me divertindo quando falei essas bobagens todas! Sabe, é que você é tão ciumenta e fica tão bonitinha quando sente ciúme, que não consigo deixar de provocá-la.

- seu nojento! Sabe que foi convincente? Eu pensei que fosse tudo verdade!

- Bem, pode me processar por isso, se quiser, querida. – Harry sentia-se aliviado por ter sido tão fácil convencê-la do contrário agora. – Escute, eu sinto muito, mas vou ter que desligar. Não quero sair daqui muito tarde, sabe?

- Mas... e quanto à festa na cada dos Rice? – Cho protestou. – Não pode voltar amanhã? Com certeza, não haverá muito o que você possa fazer em Penmadoc agora!

- não, mas preciso estar lá para dar apoio a minha mãe. Sinto muito, querida, mas acho que vai ter que ir a essa festa sem mim.

- E não é sempre o que faço? – ela continuava protestando, mas seu tom já era resignado. – Mas promete que vai me ligar para dizer o que está acontecendo?

- Prometo!

Aliviado por ter conseguido escapar com tanta facilidade, Harry desligou o aparelho e voltou à sopa. No entanto, as lembranças que a conversa com Cho haviam feito renascer estavam em sua mente agora e não o deixavam pensar direito. Sabia que aquele não era o momento apropriado para pensar em Gina ou no que havia acontecido naquela inesquecível noite de verão. Também não era o momento para ficar imaginando por quê, ao invés de retomar seu lugar na faculdade, naquele outono, ele deixara o país, passando o ano seguinte a viajar pela Europa, tentando apagar da memória o que havia acontecido...

- Sabe que já passa das seis horas, não, senhor? – ouviu a voz de Thomas perguntar, apreensiva. – Não é aconselhável dirigir até Gales esta noite. A visibilidade está reduzida e a polícia rodoviária está alertando os motoristas, através do rádio e da televisão, para que viagem apenas em condições absolutamente necessárias. Não acha que sua mãe compreenderia se...

- Não, não. Esqueça isso, Thomas. – Harry levantou-se e afastou-se da mesa. – Aos olhos de minha mãe, isso é uma emergência e, além do mais, há sempre a chance de que as condições do clima piorem amanhã. Não quero nem pensar na possibilidade de ficar detido aqui se deixar para partir amanhã.

O mordomo deu de ombros.

- Bem, se está tão determinado... – aquiesceu.

- Estou. Mas não se preocupe, meu velho. Não serei imprudente. E, se achar que estou em dificuldades, vou parar o carro e procurar um hotel à beira da estrada, está bem?
O criado tornou a erguer as sobrancelhas, e Harry riu das vibrações negativas que ele parecia estar espargindo por toda cozinha.

- Escute, eu preciso ir – disse animado. – Não acha que tenho problemas suficientes para ter que agüentar essa sua cara feia também? – brincou, dirigindo-se ao hall.

- Só estou pensando no seu bem-estar, senhor – Thomas rebateu, em voz calma, seguido-o.

- Eu sei.

Quando chegaram à porta que dava para a garagem, Thomas observou ainda, em tom quase de troça:

- Devo admitir, senhor, que esta é a primeira vez em que o vejo tão determinado em seguir as determinações de sua mãe.

Harry voltou-se, sorrindo. Percebia claramente as intenções do mordomo em tentar fazê-lo ficar por birra quanto a obedecer Lilian.

- Isso também não vai funcionar – replicou, pegando a mala e jogando-a no banco de trás do automóvel. – Bem, eu telefonarei amanhã, está bem? Onde quer que eu esteja. E... posso dar sua condolências a minha mãe, não? Tenho certeza de que não quer que ela imagine que não se importa com o que houve...

- Já ofereci meus pêsames a sua mãe, senhor – Thomas rebateu indignado. – Muito embora deva admitir que ela não pareceu interessada em minha solidariedade. – E depois, mostrando-se sinceramente preocupado com a segurança de Harry, acrescentou: - Tome cuidado, sim?

- Vou tomar, não se preocupe.

Harry deu alguns tapinhas amigáveis no ombro do mordomo e pensou com certo pesar nas fotografias que tencionava revelar na manhã seguinte. Entrou no jipe e, depois que a porta automática da garagem se abriu, deu marcha ré e partiu.

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