Capitulo XXIII
Harry parou em um posto da estrada para almoçarem. Falaram sobre assuntos triviais, já que ele procurava manter o autocontrole para poderem conversar melhor quando já estivessem em Penmadoc.
Já estava escurecendo quando cruzaram Severn Bridge, e o clima mostrava sinais de piora iminente. A chuva se intensificava e caía, pesada, quando, às sete horas, chegaram à aldeia. Oliver percebeu que Gina ficava cada vez mais e mais tensa conforme se aproximavam de Penmadoc e imaginava que, como ele, ela devia estar preocupada com o que os ladrões poderiam ter feito por lá.
Havia um carro estacionado junto ao portão de entrada e ele teve de parar o seu logo atrás. Imaginava quem poderia ser, se talvez sua mãe houvesse chamado o médico por algum motivo... Mesmo ainda estando insatisfeito quanto às conclusões sobre o incidente do telefonema na biblioteca, Harry sabia que sua mãe poderia estar muito chocada com o assalto.
- Lilian está com visitas – ouviu Gina comentar quando já soltava o cinto de segurança.
- Talvez sejam para sua tia... – ele rebateu, em um tom defensivo que não soube dizer por que usara.
- Ah, de fato. Tia Nell é muito sociável. – A ironia de Gina era patente.
- Bem, acho melhor ficar aqui enquanto vou buscar um guarda-chuva lá dentro.
- Não sou feita de açúcar.
- Não. De fato não é – Harry rebateu, aborrecido diante daquela teimosia.
Devia estar chovendo já havia algum tempo porque o chão estava lamacento. Tomaram o caminho que levava aos fundos da casa, para evitar entrarem com os pés sujos, e encontraram aberta a pesada porta que dava para o vestíbulo.
Deixaram as botas a um canto e dirigiram-se à cozinha, onde Harry esperava que tia Nell estivesse. Mas não havia ninguém ali. Até o fogo estava baixo, o que não era típico de Eleanor.
- Estranho, não? – Gina comentou.
- Talvez tia Nell não esteja se sentindo bem e tenha ido se deitar. Um assalto sempre mexe com os nervos das pessoas... – Harry tentou explicar.
- Não... Ela jamais deixaria a porta dos fundos aberta.
- Talvez não esteja em casa... Bem, vamos ver se Lilian está por aqui. – Ele tinha uma estranha sensação, que não conseguia entender. Não gostava de encontrar a casa vazia e silenciosa daquele jeito.
Passaram ao corredor, mas não havia ninguém na sala de jantar, que era contínua a ele, e nem na biblioteca. Havia, porém, uma luz acesa no escritório, e Harry caminhou até lá, sentindo sua pressão aumentar. Não chamara pela mãe, o que parecia estranho a si mesmo. Apenas continuava avançando pela casa, com a estranha sensação tornando-se pior a cada passo.
Gina o seguia, também quieta e apreensiva. Ele afastou a porta e viu o aposento vazio. O quadro que cobria o cofre estava no lugar, e Harry praguejou baixinho.
- Onde elas estarão? – indagou a seguir.
- Tem certeza de que foi tia Nell quem ligou para você ontem? – Gina perguntou. – Parece que tudo por aqui está em ordem, que não houve assalto algum...
- É. Também já notei... Mas era Nell, com certeza. Falei com ela esta manhã, e ela confirmou a história. Vamos tentar achar minha mãe. – Resoluto ele se dirigiu à escada.
Gina continuava seguindo-o, e ele sentiu vontade de dizer-lhe que esperasse lá embaixo. O estranho sentimento que tinha era de que não encontrariam algo agradável no andar superior. Mas, quando já ia se voltar para pedir-lhe que esperasse ali, ouviram vozes. Primeiro, a de um homem; depois, a de Lilian.
- Estou lhe dizendo que ouvi alguma coisa! – avisava o homem.
- Está imaginando coisas, Jaz – respondeu ela, a voz um tanto arrastada, a qual deixava Harry ainda mais tenso.
- Não. Eu ouvi vozes, tenho certeza! – rebateu o estranho, e sua voz parecia estar mais próxima, o que indicava que deveria estar se aproximando. Ele continuava, alarmado: - Depois do que aconteceu com Arthur, não quero que sejamos surpreendidos de novo. Pelo amor de Deus, Lilian, pode ser aquela velha! E talvez ela tenha trazido alguém com ela.
Harry havia parado no meio dos degraus, assim que ouvira a voz do homem. Agora aguardava apreensivo. O que tinham acabado de ouvir devia estar doendo em Gina.
- Nell está em Cardiff, eu já lhe disse – Lilian procurava acalmá-lo, e devia ter se juntado a ele, porque seus passos já ecoavam pelo corredor.
Harry começava a perceber que aquele fora o real motivo de Nell tê-los trazido até ali. Talvez não tivesse idéia de que viessem juntos, mas fizera uma tentativa e conseguira seu intento.
- Quer deixar que eu resolva esta situação? – indagou ele e voltou-se quando não recebeu uma resposta. Viu que Gina tinha os olhos presos ao topo da escadaria e que estava muito pálida.
- Gina? – chamou. – Você está bem?
Ela apontou para a porta do escritório que pertencera a Arthur e murmurou:
- Eu.. vi meu pai. ele estava lá. – E engoliu em seco. – Na porta. Acha que foi ele quem acendeu a luz?
Harry sentiu os cabelos de sua nuca se arrepiarem. Embora dono de muito bom senso, Harry sabia que alguma coisa muito diferente devia ter deixado o rosto de Gina tão pálido. Ela devia ter visto algo, com certeza. Ia responder, mas naquele momento sua mãe apareceu o começou a gritar.
Harry e Gina voltaram-se de imediato para vê-la, vestida no roupão de seda, junto ao homem que, apenas em roupas de baixo, olhava-os com expressão assustada.
- Ela disse que viu Arthur! – exclamou Lilian desesperada. – Será que ele estava aqui, de fato?
- Ora, pare de gritar, mulher! – exclamou Jazz, aborrecido. – Ela não viu nada! Está apenas surpresa. Eu lhe disse, Lilian, que ainda era cedo para...
- Para que? – Harry interrompeu, a voz fria como gelo. – Para continuar com seu caso? Mãe, você me enoja. E pensar que cheguei a acreditar em você!
Lilian olhou-o, parecendo só agora dar-se conta do que havia além de seu próprio susto.
- O que vocês estão fazendo aqui? – perguntou. Depois, percebendo que deveria defender sua posição, tentou sorrir e ser agradável: - Não se zangue, Harry. Eu sempre precisei de muito carinho e afeição, você sabe...
- Afeição? – ele repetiu sarcástico. – Isto está muito longe de ser afeição!
- Como pode saber, meu querido, já que foi sempre tão ingênuo em assuntos desse tipo? – Havia algo em seu tom que poderia ser tomado como extrema ironia ou apenas fingimento, mas Harry não teve certeza de como encarar tais palavras.
- Estou enojado – prosseguiu ele, ignorando o que a mãe dissera -, porque isso se passava debaixo do nariz de Arthur! Acabei de ouvir o que seu... namorado disse agora mesmo! Estavam aqui quando ele voltou da caçada, não foi? Ele deve tê-los encontrado juntos! Foi por isso que teve o ataque cardíaco.
- Não! – Lilian se desesperava. – Não foi assim!
- Como foi, então, mamãe? – sarcástico, ele forçava a última palavra.
- Diga-nos como foi. – Gina interferiu, dando um passo à frente e chamando a atenção de Lilian. – Porque você ligou para seu amante na noite em que tinha jurado não estar bem para ir ao enterro de meu pai!
Lilian arregalou os olhos.
- Como sabe disso?
- Porque ela estava na biblioteca – Harry explicou, frio, com um estranho prazer. – Agora vá em frente. Explique o que aconteceu na tarde em que Arthur morreu.
- Eu... – Ela vacilava e olhou para o homem a seu lado, como em busca de ajuda. Terminou, então, parecendo confusa: - Não sei ao certo o que aconteceu.
- Pare com isso, mãe! O que pretende agora? Fingir que Arthur não os viu?
- Não sei o que ele viu. – Ela baixara consideravelmente a voz.
Jaz falou em seu lugar, então, parecendo mais disposto a colaborar:
- Eu ouvi algo naquela tarde. Falei a Lilian mais ela disse que eu devia estar imaginando coisas. Mas estava enganada...
- Nós dois estávamos! – corrigiu ela, parecendo não estar disposta a levar a culpa sozinha. Voltou-se para o filho para explicar: - Eu tentei lhe dizer como tudo aconteceu antes do funeral. Sou... uma mulher... quente. Queria ser amada.
- Você precisa apenas de sexo! – Gina acusou, antecipando-se a Harry. – Não diga que meu pai não a amava, porque ele amava, sim. Demais. Deus, como eu queria que ele jamais a tivesse conhecido!
- Pare com isso! – Lilian tentava mostrar-se enfurecida agora para tentar desviara atenção de si mesma. – Não fale comigo nesse tom porque não vai funcionar, mocinha! Sei coisas demais a seu respeito! Sempre soube! Foi por isso que você fez o que pôde para inventar histórias a meu respeito para seu pai! Não sei por que envenenou a mente de Arthur contra mim e...
- Isso não é verdade! – Gina protestou, mas Lilian não pareceu se importar.
- Como acha que seu querido paizinho iria se sentir se soubesse como você é na realidade? – rebateu ela, cheia de raiva. – O coitado acreditava que tinha uma filha pura como um anjo... Que grande ilusão, não?
- Mãe, pelo amor de Deus... – Harry tentou interferir, mas Lilian esbravejou:
- O quê? Não quer que eu me defenda? Pois se ela mesma se sentiu tão a vontade para dizer o que pensa de mim!
- Pelo amor de Deus, Lilian... – Era jaz quem apelava para ela, mas de nada adiantou.
- Aliás, esperei muito tempo para lhe contar uma coisa, Harry. – Havia um brilho maldoso nos olhos de Lilian. – E não vou deixar que essa garota se saia bem agora.
- Isso não vai adiantar em nada, mãe – Harry começou a protestar, mas em vão.
- Não? Você não sabe nem a metade da história, seu tolo. Não sabe por quê, de fato, ela foi até seu quarto naquela noite, o que tinha planejado...
- Planejado? – Harry admirava-se. – Mãe, pelo amor de Deus, o que está dizendo? Pare com isso enquanto ainda há um pouco de decência em você!
- Você não entende... – Com voz afetadamente trêmula, Lilian tocou o peito do filho. – Acha que estou dizendo isso apenas para me defender, mas não é verdade. Ela o queria, Harry, e estava pronta para fazer qualquer coisa para conseguí-lo.
- Não... – O protesto de Gina quase passou despercebido, mas Harry ouviu-o e tentou impedir que a mãe continuasse.
- Mãe, deixe Gina fora disso. Sei que jamais gostou dela, mas já se passaram catorze anos desde aquela noite, e acho que já é mais do que tempo de esquecermos de tudo aquilo.
- Não – Lilian teimou. – Ela ainda me detesta. Sempre me detestou.
- Pare com isso, mãe! Escute, vamos voltar a Arthur. Acho que ficou bastante claro que ele viu ou ouviu alguma coisa ao voltar naquela tarde. Imagino que isso explique o fato de tê-lo encontrado apenas duas horas após sua morte...
- Correto – Jaz respondeu por ela. – Lilian ficou desesperada quando encontrou o corpo, mas já era tarde demais. Nada pudemos fazer.
- A não ser esconder a verdade – Harry observou friamente. – Não sei como conseguiu olhar-se no espelho depois, mãe.
- Não me venha com sermões. Posso ter feito muitas coisas, mas, pelo menos, não engravidei com o intuito único de prender um homem.
Houve um silêncio repentino e absoluto entre todos. Harry, mais do que todo, nada podia dizer. Seus pensamentos passavam velozes por sua mente, tirando conclusões, entendendo o real significado das palavras de Lilian. Então, quebrando o silêncio geral, Gina deu meia-volta e desceu correndo os degraus que a separavam do andar inferior, desaparecendo pela porta ao lado. Ao voltar-se para ela, muitas coisas fizeram sentido para Harry. Ela estava grávida quando ele partira para a Europa e jamais viera a saber...
Pensou em segui-la, mas, antes que o fizesse, Lilian pareceu perceber a extensão de seu erro.
- Oh, Harry! – pediu, tocando-lhe o braço. – Eu sinto tanto! Você jamais deveria saber! Ainda mais por mim... Mas será que não vê? Era exatamente isso que ela queria! Foi a maneira que encontrou para vingar-se de mim, de nós dois, por eu ter me casado com seu pai. Mas, graças a Deus, a gravidez não foi adiante! Teria sido o fim de sua vida, meu querido, de sua carreira, de todos nós!
Harry soltou-se das mãos dela com um puxão violento e encarou-a.
- Deve estar louca – murmurou com raiva. – Como pôde? Como sempre pôde pensar apenas em si mesma?
- O cofre foi aberto. – A revelação foi feita por Gina, que voltara e estava aos pés da escada agora.
A discussão terminou por aí, enquanto Harry descia para seguir com ela, mesmo sob os protestos da mãe.
- Então, houve um roubo de fato – comentou ele, ao juntar-se a Gina.
- Do que está falando? – indagava Lilian, seguindo-os aflita. – Jamais houve um roubo aqui! – E continuou caminhando até o estúdio, onde entrou, mesmo a contragosto.
O cofre estava aberto, por trás do quadro que Gina removera.
- Quem lhe disse que houve um roubo aqui? – Lilian protestava ainda.
- Nell – Harry respondeu sem se voltar.
- Pois se ela fez isso, estava apenas querendo causar problemas, porque fui eu quem abriu esse cofre!
- Você? – Ele se voltou para a mãe, surpreso. – Como poderia se não está com a chave?
- Eu tinha feito uma cópia antes da morte de Arthur. Além do mais, este cofre não é assim tão seguro...
- E o que encontrou lá dentro? – Harry encarava-a muito sério. Sabia que sua mãe entendia aonde queria chegar. Caminhou até o cofre e retirou os papéis e documentos que estavam lá dentro. – Não há muito aqui – comentou. – Apenas papéis de banco... Imagino que esteja procurando por isso.
Ele retirava do bolso o testamento que trouxera consigo, e Lilian arregalou os olhos.
- Não pode... – começou, mas foi interrompida por Gina:
- Isso é um testamento... Mas... Papai mantinha uma cópia no cofre?
- Este não é o testamento que ele entregou a Venning. – Tranqüilo, Harry explicou diante da expressão angustiada da mãe. – É outro, um que Arthur fez mais recentemente. Minha mãe encontrou-o antes do funeral.
- E por que ela não... – A pergunta de Gina ficou no ar.
- Por que achou que era o mesmo testamento que Venning tinha nas mãos. Mas só durante a leitura dele Lilian percebeu que eram diferentes. E então achou melhor omitir o fato de ter encontrado este porque o primeiro era-lhe muito mais favorável. Penmadoc foi deixada para você por completo no segundo testamento. Minha mãe não ficou desamparada, é claro, mas é óbvio que Arthur queria que a casa ficasse com você.
- E você esteve com esse testamento o tempo todo?
Gina começava a entender tudo, e Harry sabia que parte da culpa re cairia sobre seus ombros. Continuou explicando então:
- Sim, desde que voltei a Londres. Mas levei a chave do cofre comigo. Não tinha idéia de que minha mãe pudesse ter uma cópia.
- Você não tinha o direito de levar o testamento! – Lilian protestou por entre dentes.
Naquele momento, Jaz, que assistia a tudo calado, achou melhor interferir:
- Esqueça, Lilian. Gina já sabe de tudo agora. Eu a avisei de que Harry acabaria por revelar a verdade, mas você não quis me ouvir.
- Bem, eu jamais lhe perdoarei por isso – Lilian rebateu raivosa.
Harry engoliu em seco. Também não se perdoava, mas por motivos bem diferentes. Por ter, mais uma vez, dado ouvidos a Lilian, sabia que destruíra qualquer chance de que Gina viesse a confiar nele novamente.
- Não posso acreditar no que estou ouvindo – Gina lamentou-se em um fio de voz. – Então, foi por isso que Lilian não quis ir ao funeral... Estava tentado retardar a leitura do testamento. Mas... por quê? Porque achou que eu poderia colocá-la para fora desta casa?
- Exato – Harry reforçou. – Eu não disse nada porque você se foi antes que eu tivesse oportunidade de fazê-lo. Além do mais... ela é minha mãe e... Bem, acho que, no íntimo, queria protegê-la também...
- Eu... entendo... – Gina era mais caridosa do que Harry poderia supor. Mas Lilian nada queria dela.
- Olhem só! – exclamou ela com desdém. – Quanta bondade! Não era assim tão boazinha quando entrou no quarto de meu filho, escondida de todos!
Gina voltou, os olhos muito abertos, e Harry explodiu, farto de tanta animosidade:
- Chega, mãe! Acho que ainda não entendeu o que fez! Eu e Gina poderíamos ter sido felizes juntos! Você arruinou minha vida, mãe! Todas nossas vidas! E jamais vou lhe perdoar por isso!
(...)
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