Detenção nos porões



Detenção nos porões

Sentado em um das confortáveis poltronas da sala comunal de Ametista, Henry Monfort estava com os pensamentos a mil. O pedido que Nicole James o fizera não saía de sua cabeça.


- “Eu tenho certeza de quem foi.” - ela lhe dissera, quando ele perguntou se ela tinha alguma idéia de quem os entreouvira no primeiro dia de aula  – “Sei quem foi e quero que você faça algo a respeito, para que não aconteça novamente.”


Luísa de la Paje e Pedro Almeida jogavam xadrez de bruxo em uma mesa logo à sua frente. Ele olhava as peças se mexerem no tabuleiro, mas não prestava real atenção.


- “Eu as quero fora do meu caminho,”  - eram as palavras de Nicole, que insistiam em não sair de sua mente - “mas não as quero machucadas!”


Ele não entendia como.


Para Henry era muito mais simples atirar Alice Elsea e Érika Marinho de uma das janelas do quarto andar e fazer parecer suicídio. Ou incitar uma cobra para que as picasse. Ele mesmo poderia fazer aquilo, sendo ofidioglota. Mas tirá-las do caminho sem machucá-las? Não, não dava.


Ele passou as mãos pelo rosto, tentando concentrar-se e pensar em algo.


-“Você parece preocupado, o que aconteceu?” – era a voz de Luísa, que virara para encará-lo.


-“Nada que seja da sua conta, sua metida!” – Disse Henry, secamente.


A garota corou. Ele levantou-se e adiantou-se à mesa onde estava o tabuleiro de xadrez. Durante alguns segundos, ficou analisando a disposição das peças e subitamente teve uma idéia que lhe pareceu bastante boa.


-“Guardem essas porcarias e vão dormir!” – disse ele, dando as costas aos dois e dirigindo-se ao dormitório masculino da primeira série.


-“Porque deveríamos?” – questionou Pedro, irritado com a ordem recebida.


Henry parou no meio do caminho.


-“Porque eu estou declarando um empate!” – disse, virando-se e executando um feitiço que fez com que todas as peças do tabuleiro tombassem.


 


*      *      *


 


Érika sentia seu braço latejar com a dor, sua cabeça parecia pesar mais do que o normal e um zunido agudo enchia seus ouvidos. Mademoiselle Lautrec estava demorando a dar uma resposta às garotas, era como se o fato de ser uma fantasma tivesse tirado toda a pressa que ela poderia ter tido em vida.  Durante uma fração de segundo Érika achou que fosse desmaiar. Aquelas frias paredes de pedra estavam lhe dando uma sensação de sufocamento, pareciam estar se estreitando cada vez mais.


 -“Por favor?” – Alice quebrou o silêncio, sentia que era melhor se apressarem.


-“Por favor o que?” – perguntou Mlle. Lautrec, olhando para a garota com uma cara de quem havia acabado de acordar de um sonho.


-“Nos tire daqui!” – disseram Nicole e Alice ao mesmo tempo.


-“Ah, isso!” – disse a fantasma – “Acho que posso fazer isso por vocês,” – os rostos das garotas se iluminaram – “mas primeiro, vocês terão que fazer algo por mim!”


-“O que precisamos fazer pela senhorita?” – perguntou Nicole, que também não via a hora de voltar ao seu dormitório.


-“Na verdade é bem simples, só quero que vocês prometam que vão procurar Gabriel para mim e que vão avisá-lo de que eu estou aqui em baixo.”


-“Desculpe, mas que Gabriel seria esse, exatamente?” – disse  Nicole.


-“Ora, Griffindor, é claro!” – disse Ane Marrie, perdendo a paciência – “Vocês não conhecem o próprio diretor do colégio onde estudam?”


 


Alice e Nicole se entreolharam, nervosas. Érika mirava o chão, sentia que se abrisse a boca para falar qualquer coisa que fosse corria sério risco de vomitar.


-“Me desculpe, mas Gabriel Griffindor morreu em 1702, no séc. XVIII.” – disse Nicole, com a máxima cautela, já que a moça parecia não perceber nem que estava morta, quanto mais saber que estava morta há alguns séculos.


-“O que?” – fez a fantasma – “Quer dizer que Gabriel... o meu Gabriel...” – sua voz falhou.


-“Sinto muito.” – falou Alice.


-“Você... você...” – gaguejou Mlle. Lautrec, em meio a um choro sem lágrimas – “Mas como... como aconteceu?”


-“Não sabemos, foi há muito tempo.” – desculpou-se Nicole.


-“Há quanto tempo exatamente?”


Alice e Nicole entreolharam-se antes de responder:


-“Há uns três séculos, mais ou menos.” – a situação estava ficando desagradável, conversar com um fantasma que perdeu a noção do tempo não era tarefa fácil.


-“Vocês estão me dizendo que estamos...” – ela contou nos dedos – “No século XXI ?”


As garotas confirmaram com a cabeça, os olhos de Ane Marrie se arregalaram.


-“Escuta aqui,” – disse Érika, recuperando-se um pouco de seu mal-estar – “a senhorita sabe que está morta, não sabe?”


As outras a encararam reprovadoramente.


-“Morta?” – Mlle. Lautrec agora gaguejava mais do que nuca – “Moi? Mon Dieu, non!”


-“A senhorita não se lembra de como morreu?” – insistiu Érika, cada vez mais incrédula.


-“Érika, fica na sua!” – ralhou Nicole. Depois, com calma, dirigiu-se novamente a  Joanne. –“Lamentamos informar-lhe, mas a senhorita está morta, Mademoiselle Lautrec, a senhorita é um fantasma.


-“Um fantasma muito anti-social, diga-se de passagem.” – comentou Érika, num sussurro audível.


Joanne chegou ao ápice de seu choro sem lágrimas, Alice e Nicole estavam próximas ao desespero, não sabiam mais o que fazer para consertar a situação. Érika estava a beira de perder sua paciência, sentia-se mal e queria ir para a enfermaria o mais depressa possível.


-“Co-como vocês se atrevem! Invadem meus domínios no meio dos meus exercícios de canto para me dizer que eu... eu... morri.”


-“Quer dizer que aquela gritaria toda era uma música?” – perguntou Érika, ao que as outras garotas gritaram:


-“CALA A BOCA, ÉRIKA!”


-“Saiam daqui, agora!” – ordenou Mlle. Lautrec, partindo para cima das garotas.


As três gritaram, correndo em direção à porta, que desta vez estava aberta.


Elas passaram da porta e seguiram em frente, correndo o máximo que suas pernas lhes permitiam, até que chegaram a uma parte conhecida dos porões, próxima a sala de Poções. Estavam quase alcançando as escadas que levavam ao térreo, quando uma voz as fez parar.


-“As senhoritas estão planejando acordar o casarão inteiro com seus gritos?” – era a Sra. Fernandes, a professora de Poções.


- “Nós podemos explicar, professora.” – murmurou Nicole.


-“Tinha uma mulher fantasma louca perseguindo a gente!” – disse Érika.


-“Poupem suas desculpas, senhoritas, terão muito tempo para contá-las durante suas detenções!” – cortou a Sra. Fernandes – “Agora corram para seus dormitórios, se não quiserem parar na sala da diretora!”


 Nicole virou-se e começou a subir as escadas, Érika dirigiu-se a professora:


-“Acho que meu braço está quebrado, posso ir à enfermaria?”


A Sra. Fernandes consentiu com a cabeça. 


-“A senhorita está passando mal, srta. Elsea?”


-“Não, professora.”


-“Então volte para seu dormitório, eu me encarrego de acompanhar a srta. Marinho.”


Alice saiu, não sem antes lançar um olhar indagador à amiga, que sorriu fracamente para indicar que estava tudo bem, porém, a palidez excessiva de seu rosto a contradizia.


Não havia ninguém na sala comunal de Rubi quando Alice chegou, o que a fez preocupar-se com o horário. Arrependendo-se de ter quebrado tão rápido o relógio que ganhara no último Natal, ela dirigiu-se a porta do dormitório feminino. No entanto, antes que entrasse, alguém falou as suas costas:


-“Já passa da meia-noite, está tudo bem com você?”


A menina virou-se e viu que era Carlos quem lhe dirigia a palavra.


-“Tirando que eu peguei uma ‘bela’ detenção com a Fernandes, está tudo bem sim.”


-“Detenção? O que aconteceu? Sabe, fiquei preocupado quando você saiu para despachar aquela carta e demorou a voltar.” – falou o garoto, sentando-se em uma das poltronas da sala – “Vai me contar o que houve, ou terei que guardar minha curiosidade para amanhã?”


Alice sorriu. Recuando alguns passos, sentou-se em uma poltrona ao lado do amigo e contou-lhe, sem poupar palavras, o que acontecera naquela noite.


 


*      *      *


 


Na manhã seguinte, Érika veio saltitando em direção a mesa de Rubi, com o braço tão normal quanto antes de ter sido quebrado.


-“Não é ótimo?” – disse ela, toda animada a Alice e Carlos – “Ficou novinho em folha com um passe de mágica!” – e rindo das próprias palavras, sentou-se e começou a comer.


Não demorou para que várias pessoas da casa de Safira viessem perguntar como ela estava, já que a notícia de seu braço quebrado e da noite que Érika passara na enfermaria havia se espalhado pela escola com uma velocidade impressionante.


-“Eu não tinha idéia de que eles sabiam!” – disse ela, quando o que pareceu ser a última dupla de sextanistas de Safira se retirara, depois de checar se seu braço estava realmente bom para apanhar o pomo na primeira partida do campeonato de quadribol.


-“Bom, parece que sabia-a-am.” – falou Alice, no meio de um bocejo.


Érika não pôde deixar de notar que a amiga estava com olheiras. O motivo para aquilo era que, mesmo tento ficado acordada até tarde conversando com Carlos, Alice acordara cedo.


-“Srta. Marinho, aqui está o horário em que a senhorita deverá cumprir sua detenção!” – era o professor Kalil, o descendente de turcos que lecionava Feitiços e era o diretor da casa de Safira.


-“Obrigada, professor.” – disse a menina, apanhando o papel que o professor lhe estendia e sentindo todo o seu ânimo murchar.


-“Devo dizer-lhe também que estou muito decepcionado com a senhorita, uma detenção na segunda semana de aula! Da próxima vez que tivermos um incidente parecido, serei obrigado a escrever para seus pais.”


-“Não vai acontecer novamente, Sr. Kalil.” – murmurou Érika, olhando para o chão.


-“Espero que não! Passar bem, senhorita.” – finalizou o professor, girando nos calcanhares e se dirigindo à mesa dos professores.


-“Ah não!” – gemeu Érika, ao ver o conteúdo do papel – “Detenção com a Fernandes sexta-feira depois das aulas da tarde! Isso significa que vou perder o treino de quadribol.”


-“Então cumpriremos detenções juntas.” – comentou Alice, já que ela recebera o horário do ‘castigo’ mais cedo.


-“Isso é normal,” – falou Carlos, finalmente entrando na conversa – “geralmente os que transgridem as regras da escola juntos, cumprem detenções juntos.”


-“Então Nicole James se juntará a nós?” – disse Érika, e sem esperar pela resposta a sua pergunta, continuou – “Isso vai ser interessante! Como são as detenções aqui em Amgis?”


-“Eles geralmente colocam os alunos para fazer algo não muito útil. Como foi a professora de Poções que deteve vocês... bom, imagino que ela vai fazê-las limpar alguma coisa.” – explicou Carlos – “Sem usar magia, claro.” – acrescentou, rindo ao ver a expressão de desagrado no rosto de Érika.


 Alice, no entanto, não estava prestando atenção, comia seu pão puro, concentrada nos próprios pensamentos.


 


*      *      *


 


A detenção das garotas foi exatamente como Carlos prevera. Débora Fernandes as fez lavarem e re-lavarem incontáveis frascos de ingredientes vazios, sempre reclamando se alguma sujeira passava despercebida.


-“Eu estava pensando...” - começou Érika.


-“Ah, agora você pensa? Deveria ter começado a praticar essa ‘arte’ antes de ontem à noite, assim teríamos evitado os problemas que tivemos.” – caçoou Nicole, ao que a outra continuou como se não tivesse ouvido.


-“Porque nunca vimos Mlle. Lautrec na escola antes?”


-“Eu acho que ela não gosta de conviver com os outros... vocês viram como ela falou? ‘Quem se atreve a invadir meus domínios? ’ Ela considera aquela área dos porões como pertencente a ela.” – opinou Alice.


-“Não é óbvio?” – disse Nicole – “Alguma magia muito poderosa a impede de sair de lá. Essa mesma magia nos impediu de abrir aquela porta nas primeiras tentativas. No final, só conseguimos sair quando Joanne ordenou que fossemos embora.”


-“Então ela desfez o feitiço que lacrava a porta com aquela ordem?” – perguntou Alice, ao que Nicole confirmou com a cabeça. -“Deve ser por isso que ela não sabia que estava morta.” – continuou a menina – “Quer dizer, não sabia por que nunca saiu dos porões.”


-“Nós devemos ser as primeiras pessoas vivas que ela encontrou depois de morrer.” – disse Nicole, colocando mais sabão na esponja que estava usando para lavar um frasco particularmente engordurado.


-“Mas como uma pessoa não sabe que está morta?” – espantou-se Érika – “Quer dizer, parece tão absurdo que alguém não se dê conta de que parou de respirar, que pode atravessar paredes, essas coisas.”


-“Aquelas paredes não podiam ser atravessadas por Mlle. Lautrec, já que estavam enfeitiçadas.” – explicou Nicole, com o mesmo tom que usara em seu ‘não é óbvio?’.


-“O que realmente me intriga nessa história toda,” – comentou Alice – “é porque ela não quebra o feitiço que a prende, para poder sair de lá, como fez ao ordenar que fossemos embora?”


-“Menos conversa e mais trabalho!” – ralhou a professora, que estava do outro lado da sala, em sua mesa, corrigindo deveres de casa.


As três se calaram e continuaram a ensaboar frascos.


Ficaram lá por horas, lavando, secando e guardando frascos dos mais variados formatos e tamanhos. Alice já tinha perdido a noção do tempo, já que estavam nos porões e não havia nenhuma janela através da qual pudessem ver o anoitecer, quando a Sra. Fernandes as dispensou.


-“Garotas, infelizmente passamos do horário-limite.” – disse ela, mas seu tom era o de quem nada tinha a lamentar – “Sendo assim, vou dar-lhes essas autorizações para que as senhoritas possam voltar as suas salas comunais sem maiores problemas.”


Apanhando os papéis que a professora lhes oferecia, as garotas saíram da sala rumo ao segundo andar.


-“Boa noite.” – disse Nicole às outras, antes de desaparecer pela entrada de seu dormitório, que ficava embaixo da escada principal.


-“Boa noite.” – respondeu-lhe Alice. Érika limitou-se a acenar com a mão.


-“Ela não parece tão má assim, parece?” – comentou ela, quando as duas entraram no corredor oeste.


-“Talvez não seja, mas não se esqueça de que ela está tramando alguma coisa!”


-“Ainda não entendi o motivo dessa sua obsessão pelo que Nicole e Henry possam estar tramando.”


-“É por que você não viu o que eu vi na livraria do ‘The Witch’s House’.” explicou Alice – “Se você ao menos tivesse visto os olhos do pai dela... bom, não importa agora. Boa noite!” – concluiu, entrando na sala comunal de Rubi.


 


*      *      *


 


No dia seguinte, uma coruja carregando um grande pacote invadiu a mesa de Safira, onde Alice, Érika e Alexandre tomavam café-da-manhã.


-“É para você, Alice.” – sentenciou Érika, ao ver o endereço escrito no pacote.


Com todo o cuidado, Alice pegou o embrulho e deu alguns biscoitos à coruja, em agradecimento. Desmanchando o pacote, a menina viu que se tratava de um presente de aniversário de seus pais. Era um porta-retrato com uma foto dos três - sua mãe, seu pai e ela.  Junto com o presente, havia uma carta.


Minha querida,


 


Quero que saiba que seu pai e eu estamos muito felizes em lhe mandar esse presente em homenagem a seus onze anos de vida. Desculpe a minha falta de criatividade, mas o objetivo dele é que nós três estejamos sempre juntos.


Espero que gostes!


 


Beijos,


Mamãe.


Emocionada, Alice dobrou a carta e a guardou com todo o carinho.


-“O que é isso, Alice?” – perguntou Érika, curiosa como sempre.


-“É um presente de aniversário dos meus pais.” – explicou a garota.


-“Seu aniversário é hoje?”


A menina confirmou com a cabeça, ao que Érika se atirou em seu pescoço.


-“Parabéns! Porque não nos contou antes?”


-“Parabéns!” – disse Alexandre, do outro lado da mesa, estendendo-lhe a mão.


-“Muito obrigada!” – falou Alice, sorrindo – “Aos dois!” - acrescentou.


No entanto, um olhar na direção da mesa de Ametista a chamou sua atenção. Nicole cochichava algo ao ouvido de Henry, que logo em seguida se levantou e acompanhou a garota para fora do Salão Principal.


Alice sacudiu a cabeça. - Porque diabos me preocupo tanto com o que essa garota faz ou deixa de fazer? - perguntava-se, porém, nenhuma resposta convincente lhe vinha à cabeça.


 


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