Mademoiselle Joanne Crhistine



Mademoiselle Joanne Crhistine Satine Lautrec 


 -“Lumus!” – disse Érika, pelo que ela achou ser a décima vez.


Nada adiantava, sua varinha apenas acendia-se fracamente, durante poucos segundos.


-“Isso nunca vai iluminar nada! Ah, mas que droga, Lumus!” – insistiu ela, com um ar cada vez mais cansado.


-“Acalme-se Érika, se não você realmente não vai conseguir.” – falou Alice, como se tentasse fazer um pouco de sua calma passar para a amiga – “Preste atenção no movimento da varinha: Lumus!” – uma luz forte saiu da ponta da varinha da menina. Alguns alunos que estavam nas mesas mais próximas reclamaram do excesso de claridade.


-“Ei, devagar com isso!” – protestou Alexandre, que estava terminando uma redação para História da Magia Brasileira.


-“Desculpe.” – murmurou Alice, fazendo a luz se apagar.


Érika respirou fundo, era a milésima vez que Alice lhe mostrava como realizar o feitiço. Apoiando a cabeça nas mãos, ela olhou desanimada ao redor da sala comunal de Rubi, onde os três haviam decidido estudar, já que na sala de Safira Érika era interrompida de cinco em cinco minutos por alguém querendo um autógrafo, uma foto, ou simplesmente discutir a corrida lance a lance, mesmo que a garota insistisse que não havia “lance” algum para ser discutido.


-“Eu só corri!” – dizia ela, cansada de tantas perguntas.


Mas nada que dissesse convencia os outros de que ela não tinha feito algo especial com a vassoura para ganhar.


 – “Eu não ganhei, fiquei em segundo lugar!” – era outra frase que ela repetia sem parar, mas que não surtia efeito nenhum em seus colegas de casa. Safira inteira parecia acreditar piamente que Érika não havia apenas cumprido o Desafio das Doze, mas também que havia chegado à frente de Nicole James.


-“EU NÃO GANHEI!” – explodiu ela, quando algo que parecia ser o time de quadribol inteiro se amontoara à sua volta, pedindo que ela confessasse quais feitiços usara em sua vassoura para atingir a velocidade que a levou à vitória. Depois daquilo, tornou-se impossível continuar na sala e os garotos levaram suas coisas para a sala comunal de Rubi.


Pensando em tudo aquilo, Érika corria os olhos pela sala, até que viu através de uma das janelas o início de um estonteante pôr-do-sol. Era final de Domingo, o final de sua primeira semana em Amgis.


-“Se você quiser descansar, nos podemos parar por aqui.” – ela ouviu a voz meiga de Alice quebrar-lhe os devaneios.


-“Eu não posso parar por aqui! Alice, o professor Kalil me passou um dever de casa especial, foi horrível! Nós passamos a semana inteira praticando isso na aula de Feitiços, na última aula todos conseguiram, menos eu. Você não estava lá, mas o Alexandre viu, viu como eles riram de mim!” – ela disse tudo muito rápido, apontando para Alexandre ao final.


O garoto assustou-se ao ouvir seu nome, parou de escrever e, ao erguer os olhos do pergaminho, deu de cara com a expressão triste de Érika. Alice lançava um olhar preocupado à amiga, não sabia mais como ajudá-la, já havia tentado de tudo.


Os três ficaram parados por alguns segundos. Érika mantinha o dedo apontado para Alexandre, num tom acusador, ao mesmo tempo em que sua expressão era a de quem espera uma resposta decisiva. O olhar de Alice permanecia piedoso, enquanto o garoto tinha uma perplexidade latente em suas feições.


Aos poucos, Érika foi abaixando o braço. Sua respiração, que estivera ofegante por ter falado tão rápido, foi se acalmando. Porém, quando Alice achou que tudo ia ficar bem e que as duas voltariam, tranquilamente, a praticar, Érika fez menção de cair no choro.


Alice abriu a boca para falar, não queria por nada neste mundo que a amiga chorasse. No entanto, antes que pudesse dizer algo, foi interrompida por um recém chegado.


-“Estudando muito?” – era Carlos, que dirigiu-se sorridente ao trio, pegou uma cadeira e sentou-se entre Alice e Alexandre, de frente para Érika.


-“Na verdade, estávamos praticando o lumus, mas Érika está tendo um pouco de... dificuldade.” – disse Alice, ainda observando Érika com receio.


-“Acho que é só falta de concentração.” – disse a menina. Alice ficou feliz em constatar que ela engolira o choro. – “Uma hora eu consigo. Lumus!”


Uma luz ainda mais fraca que a anterior saiu da varinha da garota.


-“Seu problema não é falta de concentração,” – sentenciou Carlos, e concluiu – “é excesso de claridade.”


Os demais o encararam, perplexos, mas ele apenas sorria.


-“Sigam-me!” – disse o garoto, levantando-se sem dar maiores explicações.


Alice, Érika e Alexandre se entreolharam por um momento. Alice foi a primeira a se levantar.


-“Venham logo!” – disse ela, do meio do caminho entre a mesa e a porta, ao ver que os outros permaneciam sentados.


Ainda um pouco desconfiados, Érika e Alexandre se levantaram ao mesmo tempo. Os dois tiveram que correr para alcançar Carlos e Alice, que já estavam quase chegando à escadaria principal. Os quatro desceram até o primeiro andar, atravessaram o corredor Oeste e entraram em uma sala de aula vazia, ao lado da sala de Runas, que ficava no início do corredor Sul.


- “Muito bem,” – disse Carlos, com o rosto iluminado apenas pela luz de sua própria varinha – “esta sala será perfeita para praticarmos!”


- “Por quê? Quero dizer, não vejo como mudar de sala vai me ajudar.” – disse Érika, sem muita animação na voz.


- “Vai ajudar e muito, confie em mim!” – falou o garoto, com uma piscadela – “Agora, quando eu apagar a minha varinha, quero que você execute o lumus, tudo bem?”


Ela fez que sim com a cabeça, Alice e Alexandre apenas observavam, tentando entender aonde Carlos queria chegar com tal exercício. Aos poucos, a luz da varinha do garoto foi-se extinguindo até mergulhar a sala em uma completa escuridão.


Érika não se sentia nada confortável em meio àquele breu, não conseguia se lembrar de jamais ter estado em um aposento mais escuro.


- Preciso de luz, -  pensava ela -  preciso de muita luz.


Então ela compreendeu.


- “Lumus!” – disse Érika, quebrando o silêncio que se instalara na sala e sorrindo por constatar que sua varinha iluminava fortemente o lugar.


- “Aí está!” – disse Carlos, com ar triunfante – “É difícil conjurar a luz, até que se precise dela.”


 


*      *      *


 


- “Vou entregar aos senhores o calendário de provas desse período.” – disse o professor Gomes, na primeira aula da manhã de terça-feira – “Aconselho a todos que comecem imediatamente a estudar, pois posso lhes garantir que a prova de Herbologia não será nada fácil.”


Alice suspirou. Com a cabeça apoiada nas mãos, ela olhava melancolicamente para a parede sem-graça da ala Sul, através da parede de vidro fosco da estufa n°01. Érika rabiscava em uma folha de pergaminho, insensível ao que acontecia ao seu redor.


Ao receber o calendário de provas, Alice desviou os olhos da parede para ler o que dizia o papel.


 


Cara aluna Alice Elsea,


 


Temos o dever de lhe informar que suas avaliações discursivas do primeiro período deste ano letivo serão realizadas na sala de Feitiços, seguindo as seguintes datas e horários:


 


10/03 (quinta-feira) – História da Magia Brasileira, das 8h às 10h e 30 min;


11/03 (sexta-feira) – Poções, das 8h às 10h e 30 min;


11/03 (sexta-feira) – Herbologia, das 13h às 15h e 30 min;


14/03 (segunda-feira) – Feitiços, das 8h às 10h e 30 min;


14/03 (segunda-feira) – Transfiguração, das 13h às 15h e 30 min;


15/03 (terça-feira) – Trato de Criaturas Mágicas, das 8h às 10 e 30 min;


15/03 (terça-feira) – Astronomia, das 13h às 15h e 30 min;


 


Lembramos que o tempo mínimo de permanência na sala de provas será de 1h (uma hora) e recomendamos aos alunos que cheguem ao local de sua prova em torno de 10 min. (dez minutos) antes do horário marcado para o início das avaliações.


 


Caso você não saiba onde fica a sala marcada para sua avaliação, informe-se com antecedência com um monitor ou professor.


 


E não se esqueça: estude com antecedência!


 


Atenciosamente,


 


A diretoria da Escola de Magia e Bruxaria de Amgis.


 


- “Nossa primeira prova será dia dez de março?” – disse Alexandre, incrédulo, ao receber seu calendário – “Isso significa que temos apenas um mês para nos prepararmos!”


- “Você acha pouco?” – perguntou Érika – “Um mês para mim parece uma eternidade...” – completou com ar sonhador, olhando para o nada.


Alice desviou o olhar do papel e entrou na conversa:


-“Será que essas provas serão realmente difíceis como todo mundo está comentando?”


-“Rá!” – fez Érika, fazendo um gesto de quem espanta uma mosca – “Duvido muito! Sabe, andei conversando com um pessoal mais velho da minha casa e eles disseram que a coisa aperta mesmo só a partir do terceiro ano.”


Realmente, Érika vinha conversando muito com colegas mais velhos depois de seu excelente desempenho no Desafio das Doze. Conforme Alice e Alexandre haviam previsto, a história estava realmente demorando a gastar. Sempre que passava nos corredores, Érika era parada por alunos das mais diferentes idades e casas, querendo saber detalhes da corrida. Havia brigas entre alunos de Esmeralda e Safira, pois ambos eram capazes de jurar que suas respectivas colegas tinham chegado em primeiro lugar, mesmo aqueles que viram o nome desenhado pela fita. Para coroar, surgira um boato de que a diretora, Sra. Marlon, tinha mandado gravar o nome das vencedoras em duas placas de ouro maciço para colocar na sala de troféus da escola.


-“Qual será a sala de provas de vocês?” – perguntou Alexandre.


-“Sala de Runas.” – disse Érika em resposta.


-“Sala de Feitiços, e você?”


-“Sala de Astronomia Sudeste.” – disse o garoto – “Eu não fazia idéia que essa sala existia.”


As garotas riram baixinho.


- “Silêncio aí!” – ralhou o professor, que havia acabado de distribuir os calendários de provas e tentava começar a aula – “Se continuarem a conversar tão insistentemente, os três obterão zero como nota formativa!”


Imediatamente, Alice, Érika e Alexandre se aprumaram nas cadeiras e fizeram cara de interessados. O Sr. Gomes recomeçou, alisando seu cavanhaque branco pontudo “estilo Dom Quixote”, como diria Érika.


- “Hoje vamos dar seguimento ao nosso estudo das Ervas do Sol. Conforme vimos na última aula, o acônito licoctono é uma das ervas do sol mais raras que existem. Agora, será que alguém saberia me dizer qual é a diferença entre o acônito licoctono e o acônito lapelo?”


A maioria dos estudantes se entreolhou e sacudiu os ombros, os únicos que ergueram a mão foram Alexandre e Alice.


- “Sim, Sr. Marques?”


- “São plantas do mesmo gênero botânico, professor.”


- “Sim, são plantas do mesmo gênero, mas qual é a diferença entre as duas? A senhorita sabe, srta. Elsea?


- “Acônito licoctono é uma erva do sol, já acônito lapelo é uma erva da lua.”


- “Perfeito!” – exclamou o professor, entusiasmado. Alexandre lançou um olhar aborrecido a Alice, que limitou-se a levantar as mãos, como quem se rende. – “Como vocês já sabem, as ervas do sol são nosso assunto esse ano, assim como as ervas da lua o serão no próximo.” – continuou o mestre.


Ele falava pausadamente, andando de um lado para outro, com uma mão às costas e outra alisando o cavanhaque.


-“Hoje veremos a parte teórica de como cultivar e colher acônitos licoctonos, a parte prática será feita na próxima aula dupla.” – ele apontou a varinha para o quadro, fazendo com que a matéria do dia aparecesse – “Podem começar a copiar.”


 


*      *      *


 


O segundo sábado das garotas em Amgis amanheceu com um clima de quadribol no ar.


-“Depressa, se não eu vou chegar atrasada!”


-“Estou... correndo... o máximo... que eu posso!” – disse Alice, já arquejante, enquanto corria ao lado de Érika em direção ao campo de quadribol.


A garota não entendia como a amiga conseguia ser tão rápida. Érika também não, porque afinal de contas, ela só corria.


As duas chegaram arquejantes à porta do estádio, Érika carregando uma vassoura que conseguira emprestada, Alice apertando o lado direito do abdome dolorido. Antes de entrar, Érika respirou fundo. Não se lembrava de ter estado mais nervosa em toda a sua vida.


-“Vou torcer por você!” – falou Alice, ainda com a respiração rápida – “Boa sorte!”


 


-“Obrigada, vou mesmo precisar!” – e correu para dentro do estádio.


Era o dia das seletivas para os times de quadribol das casas, e o primeiro horário do dia estava reservado para a seletiva do time de Safira.


Alice subiu as escadas que levavam às arquibancadas e escolheu um lugar para sentar-se e assistir à seletiva. Logo, cerca de quinze garotos e garotas, incluindo aqueles que já estavam no time, levantaram vôo e começaram os exercícios. Alice acompanhou-os por algum tempo, mas não demorou em desviar sua atenção e deixar que seus pensamentos vagassem livres pelos acontecimentos das duas últimas semanas.


De repente, pareceu-lhe estranho estar ali, sentada na arquibancada de um estádio oval, com três balizas de cada lado do campo, com quinze pessoas voando montadas em vassouras e jogando um jogo com quatro bolas de funções extremamente distintas. Pareceu-lhe estranho estar em um colégio interno, quando todos os seus antigos amigos estavam estudando no turno matutino e voltando para casa ao meio-dia para almoçar com os pais.


Todos não param de perguntar por você, - disse sua mãe, em tom preocupado, na última carta que escrevera à filha - seu pai e eu já não sabemos mais o que inventar!


Alice sabia que não era nada fácil para seus pais segurarem a barra de ter uma filha tão diferente, uma filha bruxa. Mas ao mesmo tempo em que era estranho ver-se em um lugar onde os professores faziam a matéria surgir do nada no quadro-negro, onde fantasmas circulavam entre as pessoas como se fosse a coisa mais normal do mundo e onde o esporte mais popular era jogado com quatro bolas (algumas até com vontade própria), ela sentia que, se não tivesse vindo para Amgis, enlouqueceria.


- Aonde mais eu iria encontrar as explicações para todas as coisas estranhas que fazia quando era criança? Se continuasse sem entender, acabaria em um manicômio, sem dúvida.


-“Ela realmente voa muito bem, você não acha?” – a voz de Alexandre interrompeu-lhe os pensamentos.


-“Acho.” – respondeu Alice, enquanto o garoto sentava-se ao seu lado.


Os dois ficaram em silêncio por algum tempo, enquanto observavam Érika voar de um lado a outro do campo.


-“Alex, posso chamá-lo assim?” – falou Alice, ao que o garoto consentiu com um aceno da cabeça – “Você também nasceu trouxa, então me conte, foi muito difícil para seus pais aceitarem sua condição de bruxo?”


Ele refletiu durante alguns segundos, pensando em qual seria a melhor forma de responder àquela pergunta.


-“No início sim, mas depois, com o tempo, eles entenderam. Quer dizer,” – ele viu-se momentaneamente sem palavras, passou a mão pelos cabelos claros e riu pelo nariz ao lembrar-se da expressão que seu pai fizera ao ver uma coruja “invadir” sua sala de estar com um envelope preso à uma das patas – “meu pai custou a acreditar, achou que fosse algum tipo de piada, mas depois que eu lhe mostrei como eu conseguia fazer o jornal levitar, ele não teve outra escolha além de me mandar para cá.”


Alice sorriu, lembrando-se do estado de choque em que seus próprios pais ficaram ao verem a Srta. Jacobs consertar uma xícara usando magia. Em seguida, Alex e ela iniciaram uma animada conversa sobre as coisas estranhas que ambos faziam acontecer sem entenderem, e que agora sabiam o porquê.


Passado algum tempo, Érika apareceu, carregando a vassoura no ombro e parecendo muito cansada.


-“E então, como foi?” – perguntou Alice.


A menina, que estavam com a cara fechada, quase como se fosse chorar, respondeu-lhe mirando o chão.


-“Eu...sou a nova apanhadora do time!” – e finalmente deixou o sorriso que vinha contendo espalhar-se pelos lábios.


 


*      *      *


 


A repercussão das seletivas para os times de quadribol foi imensa e imediata na escola inteira, já que tanto Érika quanto Nicole haviam sido escolhidas para a posição de apanhadoras. Os comentários do final de semana deixaram de ser o Desafio das Doze e passaram a ser o confronto Safira x Esmeralda, na disputa pelo campeonato de quadribol. No entanto, a tabela do campeonato ainda não estava pronta, por isso não havia como saber a data do embate.


Outro acontecimento que era comentado quase com a mesma intensidade pelos corredores e salas comunais de Amgis era a seletiva do time de Ametista, onde Henry Monfort aparecera exigindo ser selecionado para a posição de apanhador. O argumento dele era que, tendo ficado em terceiro lugar na corrida, ele merecia ser apanhador tanto quanto Nicole e Érika.


-“Você ficou em terceiro lugar, Monfort, TERCEIRO!” – gritou-lhe o capitão do time de Ametista, Manuel Antunes, quando o treino chegara ao fim – “Aquelas duas deram a volta na escola antes do final das doze badaladas, você não conseguiu NEM AO MENOS ISSO!”


-“Você sabe com quem você está falando? Eu sou Henry Monfort! Meu pai tem influência suficiente dentro dessa escola para fazer você deixar de ser capitão EM UM PISCAR DE OLHOS se não me der essa vaga!” – Henry gritou-lhe de volta.


-“Só quero vê-lo tentar! Além disso, não sei de qual vaga você está falando, já que o posto de apanhador já está ocupado pelo Lúcio Vieira, do sétimo ano!” – e assim encerrou-se a discussão, que vazou para a escola inteira e gerou grandes gargalhadas em Alice, Érika, Carlos e Alexandre, quando Natália lhes contou o ocorrido.


-“Você só pode estar brincando!” – exclamou Alice, ao final da narrativa.


-“Estou é falando muito sério! Quem me contou foi o próprio Antunes.” – afirmou Natália, que por ser capitã do time de Rubi, conhecia todos os outros capitães.


Naquele domingo não se falou em mais nada, exceto em quadribol.


-“Você está quebrando vários recordes esse ano,” – comentou Alice, enquanto Érika e ela dirigiam-se ao corujal, domingo à noite. – “completou o Desafio das Doze, foi a primeira garota da primeira série, em setenta anos, a entrar para o time de quadribol, o que mais você está planejando?”


 A garota enrubesceu.


-“Tirar notas altas nas provas para que minha mãe não coma meu fígado.”


Rindo, as duas subiram os últimos degraus da “escada secundária”, como era chamada pelos alunos a escada da ala Leste que só ficava aberta nas segundas, quartas, sextas-feiras e domingos. Quando chegaram ao corujal, este estava semi iluminado pela claridade dos astros noturnos, o que o deixava com um aspecto sombrio e sinistro. Pelas três janelas compridas e estreitas do aposento, várias corujas iam e vinham, algumas saindo para caçar, outras voltando com o produto da caçada no bico.


-“É melhor nos apressarmos,” – falou Alice, preocupada – “daqui a dez minutos iremos passar do horário permitido para estar fora dos dormitórios!”


-“Não se preocupe, vamos despachar as cartas e voltar correndo para o segundo andar.”


Érika aproximou-se de uma coruja grande e robusta, acariciando o animal com a mão direita, disse baixinho:


 


-“Está disposta a fazer uma viajem à Suíça?”- a coruja abaixou a cabeça para dar uma bicadinha leve na mão da garota – “Espero que isso queira dizer ‘sim’!”


-“Quem está na Suíça?” – perguntou Alice.


-“Meu pai. Ele viaja muito, sabe.”


Enquanto a amiga prendia sua carta à pata da coruja, Alice procurou a ave parda que costumava usar para se corresponder com a mãe. Avistou-a em um dos poleiros mais altos, mas conseguiu facilmente persuadi-la a descer, já que as duas haviam criado, mesmo em tão pouco tempo, um vínculo de amizade.


Tendo despachado as cartas, as garotas saíram do corujal, caminhando rápido em direção à escada secundária. No entanto, quando fizeram a curva para sair do corredor Sul e entrar no Leste, esbarraram em alguém.


-“Ei!” – protestou Érika – “Olha por onde anda!”


-“Psiu!” – fez Nicole James – “O velho Tobias está vindo aí!”


As outras garotas fizeram cara de espanto. Tobias era o zelador de Amgis, temido pelos alunos por sua fixação em encontrar transgressores das regras e normas da escola. Era velho, corria entre os alunos o boato de que ele estava em Amgis desde sua fundação, tinha uma perna falsa de madeira que fazia um “toc-toc” característico a cada passo que dava, mas movia-se surpreendentemente rápido.


Percebendo o perigo que corriam fora dos dormitórios após o horário permitido, Alice e Érika, seguidas por Nicole, deram meia-volta e correram pelo corredor Sul. Elas podiam ouvir o “toc-toc” da perna do velho Tobias cada vez mais rápido, perseguindo-as.


-“Não vai adiantar nos escondermos no corujal, vamos para a sala de Astronomia!” – sussurrou Alice, ao que as outras, sem escolha, concordaram.


As três acabaram passando da sala de Astronomia Sul e entraram na Sudoeste, que estava tão escura que as garotas mal viam umas às outras.


-“Passamos dez minutos do horário limite, isso é mais do que suficiente para uma detenção.” – comentou Érika, desanimada.


-“Silêncio!” – ralhou Nicole – “ O velho Tobias ainda está lá fora.”


Podia-se ouvir seus passos ecoando pelo corredor, até que eles pararam.


-“Ele deve ter parado para checar o corujal.” – disse Nicole, afastando-se da porta em direção à parede oposta. – “Vamos nos esconder aqui, esperar que ele passe vistoriando e sair na direção da escada secundária.”


-“Ei ei ei! Quem você pensa que é para nos dar ordens?” – disse Érika, irritando-se com o jeito de falar da garota – “E como foi que você atraiu o velho Tobias para cá?”


-“Não estou aqui para dar ordens a ninguém, mas se vocês querem escapar dessa sem uma detenção, é melhor fazerem o que estou propondo. Além disso, não foi minha culpa o zelador ter resolvido patrulhar o corredor Leste justamente quando eu tinha acabado de chegar ao topo da escada secundária!” – respondeu Nicole, dobrando a carta que tinha na mão e colocando-a no bolso da calça.


Érika fez menção de responder, mas Alice interveio:


-“Chega, meninas! Melhor não discutirmos agora, o velho Tobias está vindo.”


Realmente, o “toc-toc” recomeçara. Enquanto Érika e Nicole discutiam, o zelador passara pelo corujal e pela sala de Astronomia Sul.


As garotas foram chegando cada vez mais para trás, enquanto ouviam a maçaneta da porta girando. Sem mais espaço, as três encostaram-se na parede imediatamente à frente da porta, estavam paralisadas pelo medo. Com um rangido lento, a porta foi-se abrindo. Ao mesmo tempo, elas fora escorregando as costas na parede de madeira lisa, até que seus joelhos estivessem completamente dobrados.


Érika, que estava do lado da parede lateral, desceu apoiando sua mão direita nela. Ao chegar ao chão, percebeu que a tábua estava um pouco solta no ponto em que a parede tocava o piso. Sem saber direito o por quê, ela empurrou a tábua o máximo que pôde.


As três garotas sentiram o piso tremer um pouco, até que, de repente, o chão desapareceu sob seus pés e elas caíram.


-“Aaaahhh!” – não havia como não gritar, tamanho o susto.


Subitamente, elas viram-se escorregando por um imenso túnel. No momento em quem o velho Tobias abriu a porta com um grito de “Peguei!” as garotas não estavam mais lá.


Enquanto o zelador olhava de um lado para o outro da sala, tentando ver aonde o, ou os transgressores pudessem ter se escondido, Alice, Nicole e Érika não paravam de escorregar túnel abaixo. Com um baque particularmente doloroso e um estalo forte, a queda acabou, tão repentinamente quanto havia começado.


-“Aaii!” – gritou Érika, chorosa – “Achou que meu braço quebrou!”


Nicole e Alice apressaram-se em sair de cima da garota, já que as três haviam caído emboladas.


-“Onde estamos?” – perguntou Alice, enquanto ajudava Érika a se levantar.


-“Lumus! – disse Nicole, puxando a varinha e dando uma olhada ao redor – “Estamos em algum lugar nos porões.” – concluiu.


-“Nós caímos por três andares?” – falou Alice, com um tom de incredulidade da voz, ao que Nicole confirmou com a cabeça.


-“Nós não caímos, Alice, nós despencamos por três andares!” – Disse Érika.


-“Quatro, se você considerar o térreo.” – completou Nicole, enquanto tirava o casaco fino que vestia para improvisar uma tipóia para o braço de Érika, amarrando as mangas compridas atrás do pescoço da garota.


-“Obrigada.” – agradeceu ela, surpresa com o gesto da outra.


-“Vamos sair daqui depressa.” – disse James, recuperando sua frieza habitual e começando a andar na direção para onde achou que ficasse a saída.


Elas estavam em um corredor largo, cujas paredes eram de pedra com archotes pendurados com um intervalo de alguns metros entre eles, mas estavam todos apagados.


-“Mas tem algo que não consigo entender: como foi que nós caímos?” – disse Alice, enquanto tirava sua varinha do bolso para acendê-la também.


-“Acredito que uma espécie de alçapão abriu-se sob nós, mas como, não sei dizer.”


Érika agradeceu em seu íntimo por estar tão escuro, assim nenhuma das outras veria o rubor que cobrira seu rosto ao ouvir as últimas palavras de Nicole. As três seguiram andando, com o caminho parcialmente iluminado pelas varinhas de Alice e Nicole, até que chegaram a um ponto onde o corredor virava para a direita e tornava-se mais estreito. No final do corredor estreito, elas encontraram uma porta.


-“Está trancada!” – declarou Alice, após uma frustrada tentativa de girar a maçaneta.


-“Alorromorra!” – disse Nicole, apontando a varinha para o buraco da fechadura.


Nada aconteceu.


-“Alorromorra!” – a segunda tentativa da garota também não surtiu efeito –“Está selada com uma magia muito poderosa, vamos procurar outro caminho.”


As garotas deram meia-volta e andaram em direção ao local onde haviam caído, mas alguns minutos depois viram-se em frente à mesma porta lacrada.


-“Estamos andando em círculos?” – perguntou Érika, atônita.


-“Não, estamos sofrendo algum tipo de feitiço que causa confusão!”


-“Alice está certa, mas é um feitiço que não sei como desfazer.” – disse Nicole.


-“Por que não?”


-“Porque, Érika, é como se fosse um feitiço realizado por uma criatura de outro mundo.” – explicou a garota.


 


Naquele instante, um silêncio pesado caiu sobre o grupo. Involuntariamente, todas olhavam ao redor, como se buscassem a origem do feitiço. Érika sentia o braço doer e a cabeça latejar, nunca desejara tão fortemente estar em sua cama. Mas talvez não devesse ser tão ambiciosa, estar na sala do zelador ouvindo que cumpriria detenções pelo resto do ano teria sido melhor do que estar ali, em meio àquele silêncio sufocante.


Subitamente, um barulho estranho ecoou pelo corredor, algo como uma mistura de um uivo com um grito. Geladas e paralisadas de medo, as garotas escutaram o barulho aumentar, até que a criatura que o produzia apareceu diante delas.


 Era uma mulher, com aparentes vinte anos de idade, usando um vestido rodado e cheio de babados. Era uma mulher muito branca, que emitia um brilho perolado e flutuava a alguns centímetros do chão.


Era um fantasma.


-“Oh!” – fez ela, ao ver as meninas – “O que fazem aqui garotas?” – falava com um nítido sotaque francês, gesticulando muito.


-“Nós nos perdemos...” – começou Érika – “Mas quem é você?”


-“Quem sou eu? Ora, eu quem deveria estar lhes perguntando isso, já que vocês estão invadindo meus domínios!”


Érika ergueu as sobrancelhas, mas antes que pudesse dizer algo, Nicole falou:


-“Somos alunas da escola, Nicole James é meu nome, e essas são Érika Marinho e Alice Elsea.”


-“Muito prazer garotas, eu sou Mademoiselle Joanne Crhistine Satine Lautrec!” – disse a fantasma, fazendo uma reverência. – “O que posso fazer por vocês?”


-“Pode nos tirar daqui?” – perguntou Érika, sem conseguir se conter.


-“Tirá-las daqui?” – Mlle. Lautrec ergueu suas grossas sobrancelhas, como se analisasse o caso das meninas.


 


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