Capitulo XVIII



- Você não tem que me ajudar com isso.
Harry não disse nada, simplesmente continuou a limpar os ferimentos na perna do cavalo. Parasitas eram um problema bastante comum, sobretudo em cavalos que viviam soltos nos pastos. Mas aquele tinha sido extremamente negligenciado. Os ovos do parasita com certeza já haviam se transferido da perna para o estômago do animal.
- Verdade, Harry. - Gina continuava a misturar o cataplasma para o ferimento do joelho. - Você teve um dia cheio. Eu posso cuidar disso.
- Claro que pode. Pode cuidar disso, de idiotas como Tarmack, de jóqueis bêbados e de tudo que aparecer na sua frente. Ninguém disse o contrário.
Como o tom do comentário foi ambíguo, sendo facilmente interpretado como uma ironia, ela virou-se para encará-lo.
- O que há de errado com você?
- Não tem nada de errado comigo. Mas sugiro que trabalhe a idéia em você mesma. Será que tem que fazer tudo sozinha, cuidar de cada maldito detalhe pessoalmente? Por que não aceita quando lhe oferecem ajuda e fica calada?
Gina, de fato, ficou calada, chocada, por cerca de dez longos segundos.
- Só achei que você estava cansado depois da viagem dura.
- Eu a aviso quando estiver cansado.
- Penso que não é só este animal aqui que está doente.
- Bem, se você quer mesmo saber, estou olhando para aquela que está me deixando doente.
A frase atingiu Gina como um soco no queixo, magoando-a profundamente. Mas o orgulho a fez reagir para se defender.
- Ficarei feliz em me afastar.
- Se eu achasse que isso iria funcionar - Harry murmurou, olhando para o cavalo e mudando radicalmente de assunto. - Vai ter que esperar pelo menos até amanhã à tarde antes de lhe dar um purgante - opinou. - Você não sabe ao certo quando ele foi alimentado pela última vez.
- Sei como tratar de verminoses, obrigada. - Com cuidado, Gina começou a aplicar o cataplasma no joelho ferido do pobre animal.
- Me dê isso. Vai acabar derrubando em sua roupa.
Ela deu um safanão, mal-humorada, quando Harry tentou tirar o pote de medicamento de suas mãos.
- As roupas são minhas.
- Então devia ser mais cuidadosa com elas. Não vê que é absurdo lidar com cavalos vestida desse jeito? É um vestido de seda, pelo amor de Deus!
- Tenho um armário cheio destes. Nós, princesas, somos assim, não sabia?
- Mas que bobagem! - Os dedos dele curvaram-se ao redor do pote e, embaixo do cavalo doente, os dois começaram um ridículo cabo-de-guerra. Harry teria rido, estava a ponto de fazer isso, mas então olhou para o rosto de Gina e notou que os olhos dela estavam úmidos.
Ele largou o pote abruptamente, e a surpresa fez com que ela caísse sentada no chão.
- O que está fazendo? - Harry perguntou.
- Aplicando um cataplasma antibiótico num joelho doente. Agora suma daqui e me deixe terminar com isso.
- Não existe nenhum motivo para ficar irritada assim. Nenhum mesmo. - Uma onda de pânico invadiu Harry, fazendo-o sentir uma estranha dor de cabeça. - Não precisa começar a chorar.
- Estou zangada, furiosa. Este é meu estábulo. Posso chorar quando e onde quiser .
- Tudo bem, tudo bem... - Ele se levantou e tirou um lenço do bolso, depois voltou a ajoelhar-se ao lado dela, entregando-lhe o lenço. - Pegue isto, assoe o nariz, limpe o rosto.
- Por que não vai para o inferno? - Com a expressão fechada, Gina deu as costas para ele e continuou aplicando o cataplasma no animal.
- Gina, eu sinto muito. - Harry não sabia ao certo por que estava se desculpando, mas aquele não era o lugar nem o momento certo para discutir. – Seque seus olhos agora, querida, e então vamos deixar este rapagão aqui confortável para passar a noite.
- Não use esse tom condescendente comigo. Não sou uma criança nem um cavalo doente.
Harry passou os dedos entre os cabelos num gesto nervoso, e deixou escapar um suspiro frustrado.
- E que tom de voz você prefere?
- Um que seja honesto. - Após verificar se o medicamento estava bem aplicado, cobrindo todo o ferimento, ela se levantou. - Mas temo que esse tom de zombaria que está usando desde que chegamos até aqui se encaixe nessa categoria. Na sua opinião, eu sou mimada, teimosa e orgulhosa demais para aceitar ajuda.
Embora a crise de choro aparentemente tivesse passado, ele achou melhor ser cauteloso.
- Isso chega bem perto da verdade - concordou, ficando em pé. - Mas é uma mistura interessante, e estou começando a gostar.
- Não sou mimada.
Harry ergueu as sobrancelhas e coçou a cabeça.
- Talvez a palavra tenha um significado diferente para vocês, ianques. Mas, para mim, parece que não é qualquer um que pode pedir ao pai um cheque de cinco mil dólares para comprar um cavalo doente.
- Vou pagar meu pai pela manhã.
- Não tenho nenhuma dúvida de que fará isso.
Perplexa, Gina abriu os braços.
- Então eu deveria tê-lo deixado ali, para que aquele idiota de Tarmack encontrasse um jóquei que aceitasse montá-lo?
- Não, você fez a coisa certa. Mas isso não muda o fato de você poder gastar uma soma tão grande de dinheiro sem nem mesmo piscar.
Harry aproximou-se do cavalo e passou a examinar-lhe os olhos e os dentes.
- É uma mulher generosa, Gina.
- Só porque posso ser, não é? - completou irada.
- Não deixa de ser verdade. - Ele passou a palma da mão pelo pescoço do animal, tateando cada centímetro. - Mas isso não diminuiu a grandeza de seu sentimento.
- Lentamente, continuou o exame mais minucioso do cavalo. - Vai ter que me perdoar... Irlandeses de meu nível social em geral são um tanto ressentidos com a nobreza. É uma coisa atávica que passa de pai para filho.
- O sistema de classes não sai de sua cabeça, Harry.
Aquilo era algo que não valia a pena discutir. Ele era como era. Seus dedos encontraram um pequeno nó.
- Ele tem um abscesso aqui. Acho que vamos ter que trabalhar nisso, talvez até lancetar.
Tinham muito o que trabalhar no próprio relacionamento que os ligava, Gina concluiu, encarando-o por sobre o corpo do pobre animal.
- Então me diga como homens de sua classe lidam com o fato de levarem mulheres como eu para a cama.
Os olhos de Harry faiscaram por um instante, fixos nos dela.
- Em geral não colocamos as mãos nelas, se for possível.
- Por acaso eu deveria achar isso lisonjeiro?
- Não. É a realidade, e uma realidade nada lisonjeira para nós dois.
Harry saiu da baia para apanhar um pouco mais de anti-séptico.
Gina suspirou.
- Então é assim que realmente pensa, Harry? - perguntou, seguindo-o até o armário de medicamentos veterinários. - O que aconteceu entre nós foi apenas sexo?
Depois de apanhar o remédio, Harry fechou a porta do armário.
- Não - ele falou sem se virar para encará-la. - Eu me importo com você. E isso só torna as coisas mais difíceis.
- Deveria torná-las mais fáceis.
- Mas não torna.
- Não entendo você. Não deveria ficar feliz por termos ficado atraídos um pelo outro, sem nenhum interesse, sem nos preocuparmos em entender nossos sentimentos?
Harry começou a voltar para a baia.
- Infinitamente feliz. Mas é tarde demais para isso, não é?
Outra vez perplexa, Gina seguiu-o até ficarem ao lado do animal.
- Você está zangado comigo porque se importa comigo... Que interessante!
- Não é exatamente assim. Na verdade, não estou zangado com você. - Murmurando algumas palavras para o cavalo, ele começou a tratar de pequenos arranhões que havia no pescoço. - Talvez esteja zangado comigo mesmo... e fica mais fácil descarregar essa frustração em cima de você.
- Isso, pelo menos, eu posso entender. Harry, por que estamos brigando? - Gina colocou a mão sobre a dele. - Estamos fazendo a coisa certa esta noite. O método pelo qual trouxemos o cavalo para cá não é tão importante quanto o que vai acontecer com ele agora.
- Você está certa, claro. - Harry estudou o contraste entre as mãos de ambos. A dele, grande, calejada pelo trabalho duro, e a dela, pequena e elegante.
- E o fato de nos importarmos um com o outro não é tão importante quanto o que vamos fazer a respeito disso.
Sobre aquilo ele já não estava tão certo, por isso preferiu nada dizer, continuando a tratar do novo cavalo de Gina em completo silêncio.

A manhã nasceu fria e cheia de névoa. Como tinha dormido pouco, Gina sentia dificuldade para pensar com clareza. A habitual descarga de adrenalina matinal não acontecera, por isso ela começou a cuidar da rotina diária com o corpo dolorido e a mente embotada.
A culpa era de Harry, concluiu, emburrada. A inconsistência dele, aquela mania de manter certa distância entre os dois era algo inexplicável. Ela nunca encontrara um problema que não pudesse resolver, um obstáculo que não pudesse transpor. Mas aquele homem podia se tornar uma exceção à regra.
Ele a magoara, e Gina não estava preparada para isso. Era possível que pudessem passar tanto tempo juntos, chegar a uma intimidade tão grande, e ainda assim não se compreenderem? Harry se importava com ela, e isso era um problema... Que tipo de lógica era aquela? Onde estava o bom senso nessa maneira de pensar?
Importar-se realmente com alguém fazia toda a diferença. Gina já observara a constante inclinação de Harry para a compaixão. E isso, em sua opinião, era mais atraente e tinha maior apelo do que seu corpo másculo.
A aparência de Harry, o rosto forte e anguloso, os olhos de um verde profundo, podiam até fazer o sangue dela ferver... o que realmente acontecia com freqüência. Mas, no início, esses mesmos detalhes a irritavam mais do que a atraíam. Entretanto, o coração generoso e a paciência com animais e pessoas eram os aspectos de sua personalidade que haviam conquistado o interesse e o respeito de Gina.
Em vez de serem um problema, tinham se tornado, e ainda eram, uma solução para ela.
Como Harry podia olhá-la nos olhos agora, depois de tudo o que haviam compartilhado, e ver apenas a filha mimada de um fazendeiro rico?
Como podia acreditar nisso e mesmo assim alimentar sentimentos por ela?
A dubiedade a deixava perplexa, irritada e muito próxima da fúria. Que seria inevitável, ela pensou com um bocejo, se não estivesse tão cansada para sentir qualquer coisa.
Aquele lapso de energia ficou ainda mais evidente e insuportável quando Maureen apareceu no estábulo.
- Só dei uma passadinha por aqui antes de ir para aquele inferno de escola - ela anunciou ao entrar na baia onde Gina estava examinando o joelho ferido do cavalo recém-adquirido. - Como ele está indo?
- Está mais confortável. - Testando, Gina ergueu a pata e dobrou o joelho. O animal bufou, agitado. - Mas como você pode ver, ainda está muito dolorido.
- Pobrezinho. Que maldade fizeram com você. - Maureen inclinou-se sobre o flanco do cavalo, acariciando-o. - Você foi uma verdadeira heroína ontem à noite, prima. Entrou naquele estábulo e foi logo assumindo o controle. Eu sabia que faria isso.
As sobrancelhas de Gina arquearam-se.
- Eu não assumi o controle. Nunca estou no controle.
- Claro que sim... você sempre faz isso. É a verdadeira durona. Foi muito legal assistir. E este garotão aqui está muito agradecido, não é, gracinha? É claro que observar aquele bonitão em ação também não foi nada mau... - Sorrindo, ela suspirou. - É o típico macho caladão. Pensei que ele ia afundar o nariz daquele idiota de Tarmack. Por um momento até desejei que fizesse isso. De qualquer forma, vocês dois juntos formam um time da pesada.
- Acho que sim...
- Nossa, e aqueles olhares ardentes?
- Que olhares ardentes?
- Vamos lá! - A menina revirou os olhos. - Fiquei num canto e fui apenas uma testemunha inocente. A cara com que ele olhava para você, como se, fosse um garotinho faminto e você fosse a última barra de chocolate do mundo.
- Essa é uma analogia ridícula, e você está imaginando coisas.
- Ele ia fazer picadinho de Tarmack quando aquele canalha xingou você. Nossa, fiquei sem respiração quando ele agarrou o sujeito pelo colarinho e o ergueu do chão. Foi tão romântico...
- Não há nada de romântico numa briga. E embora eu, com certeza, tivesse conseguido cuidar de Tarmack sozinha, fiquei feliz com a ajuda de Harry.
"Droga!", ela pensou. Não tinha sequer se lembrado de agradecer a ele. Carrancuda, saiu da baia para pegar uma escova que estava pendurada na parede oposta.
- Sim, você podia ter cuidado do cara. Você sabe se virar sozinha muito bem o tempo todo. Mas não precisar ser salva não torna o fato de realmente ser salva menos excitante, você sabe.
- Não, eu não sei - Gina disparou. - Vá para a escola, Maureen. Tenho muito trabalho para fazer aqui.
- Estou indo, estou indo... Uau! Você não deve ter consumido sua cota normal de cafeína pela manhã. Vou voltar mais tarde para ver como nosso cavalinho está passando. Até mais.
- Sim, claro. Como quiser - Gina murmurou quase para si, voltando a trabalhar nos outros cavalos. Não havia nada errado em ser capaz de lidar com problemas sozinha. Nada errado em querer fazer isso. Mas, na verdade, tinha gostado de receber ajuda de Harry.
E não precisava de nenhuma cafeína.
- Gosto de cafeína - resmungou. - Gosto disso, o que é inteiramente diferente de precisar disso. Poderia largar esse hábito na hora que quisesse, e não sentiria nenhuma falta.
Contrariada, apanhou a lata de refrigerante energético que havia deixado em cima do balcão de selas.
Tudo bem, talvez sentisse falta daquilo. Mas só porque gostava do sabor. Não era como se fosse uma viciada, dependente ou...
Ela não entendeu por que a lembrança de Harry voltou à sua mente naquele instante. Tinha certeza de que se a visse olhando horrorizada para uma lata, ficaria espantado. Só não saberia que, em vez da lata de energético, ela estava vendo o rosto dele.
Não, aquilo também não era uma necessidade, Gina apressou-se em dizer a si mesma. Não precisava de Harry Potter. Era atração o que sentia. Afeição... um tipo cauteloso de afeição. Ele era um homem que a interessava, e a quem admirava de várias formas. Mas não era como se precisasse...
- Oh, céus!
Tinha que ser uma reação exagerada, concluiu, ao colocar a lata de lado como se ela contivesse nitroglicerina. O que estava fazendo era algo tão simples quanto super-romantizar um caso amoroso. Era uma coisa muito natural, sobretudo por ser sua primeira experiência.
Não queria estar apaixonada por Harry. Começou a esfregar a escova vigorosamente no flanco do cavalo, como se aquele esforço a ajudasse a afastar os pensamentos daquele irlandês impossível. Não tinha escolhido ficar apaixonada por ele. Aquilo era ainda mais importante. Ao sentir as mãos começarem a tremer, ela as ignorou e passou a escovar com mais força ainda.
Quando sua mãe apareceu para trabalhar, Gina já estava suficientemente sob controle para perguntar se Molly não podia cuidar dos assuntos do escritório enquanto ela exercitava Sam.

Continua (...)

Compartilhe!

anúncio

Comentários (0)

Não há comentários. Seja o primeiro!
Você precisa estar logado para comentar. Faça Login.