Capitulo XXVIII





Gina estava ocupada beijando o rosto do diretor russo quan¬do Harry entrou no camarim depois do espetáculo, naque¬la noite. Ela vestia um roupão curto e vermelho, e ainda estava com a maquiagem pesada que usara para se apre¬sentar no palco. Os cabelos continuavam presos no alto da cabeça em um penteado sofisticado, que usara para o se¬gundo número, uma dança espanhola, quando trajara uma vestimenta muito sexy.
A platéia aplaudira entusiasmada, e Harry também.
Mas naquele instante entrava no camarim para encon¬trá-la aos beijos com o russo antipático que a insultara tan¬to poucas horas antes. Harry teve um súbito e absurdo pen¬samento sobre qual dos dois mataria primeiro.
— Desculpe a interrupção — falou em voz alta.
Gina voltou a cabeça com calma, o olhar brilhante, e sorriu.
— Harry!
Davidov passou um braço pelo ombro da bailarina e exa¬minou o intruso com frieza.
— É este o empreiteiro? O que me odeia? Acho que agora me detesta ainda mais. Não gosta que eu a beije.
— Ora! Não seja bobo! — riu Gina.
— Não gosto mesmo — sibilou Harry.
— Que absurdo! Este é Davidov!
— Sei muito bem quem é. — Harry fechou a porta. Pre¬feria não ter testemunhas do duplo assassinato. — Conheci sua esposa hoje.
— Sim, ela gostou de você e de seu filho. Eu tenho três filhos, um rapaz e duas meninas. — De modo provocador, o diretor de bale beijou os cabelos de Gina. — Minha mu¬lher sabe que vim aqui no camarim cumprimentar esta bai¬larina. Ela foi maravilhosa, costuma ser perfeita e não a perdôo por ter me abandonado.
— Estou tão feliz! — disse Gina, esquecendo a dor terrí¬vel nos pés.
Davidov ergueu o olhar, em um gesto impaciente.
— Feliz! — resmungou com pouco-caso. — Como seu diretor, não me importa sua felicidade contanto que dance bem. Mas como seu amigo... — Beijou-lhe as mãos. — Fico feliz que tenha tudo o que deseja.
— Ficaríamos todos muito mais felizes se você se afas¬tasse dela — disse Harry.
Gina franziu a testa.
— Ciúme é uma coisa horrível e, neste caso, sem sentido.
— Assassinato também é algo horroroso, mas neste caso faz sentido — sibilou Harry.
— Um minuto! — pediu Davidov. — Se vocês dois que¬rem brigar, esperem até eu acabar de falar. Escrevi o bale Rosa Vermelha para minha esposa Ruth. E ninguém desem¬penhou o papel de Carlotta tão bem quanto Gina... depois de minha mulher, é claro.
Lágrimas inundaram os olhos de Gina.
— Obrigada.
Estão sentindo a sua falta — disse Davidov, beijan¬do-a na testa só para provocar Harry ainda mais. Depois voltou-se para ele. — Já a conheceu, portanto sabe que é um verdadeiro tesouro. E estou aqui com Gina porque também a considero um tesouro. Se tem olhos nessa sua cabeça deve saber do que estou falando, depois de vê-la dançar esta noite. — A expressão de Davidov adquiriu um brilho di¬vertido. — Entretanto, no meu caso, se pego um homem beijando minha mulher, quebro as pernas dele. Sou russo.
— Em geral começo quebrando os braços — disse Harry, mais à vontade e entrando na brincadeira. — Sou irlandês.
Davidov soltou uma gargalhada.
— Gostei dele — disse a Gina, dando um tapinha nas costas de Harry, todo satisfeito, e saindo do camarim.
— Ele não é maravilhoso? — perguntou Gina, enlevada.
— Há algumas horas, você o odiava.
Gina fez um gesto de pouco-caso com a mão e sentou-se para remover a maquiagem.
— Aquilo foi no ensaio. Sempre o odeio durante os en¬saios.
— E sempre o beija depois dos espetáculos?
— No caso de tudo correr bem, sim. Ele é um gênio. Senão fosse por Davidov, não teria me transformado em uma boa bailarina, nem seria a pessoa determinada que sou. Somos íntimos, Harry, mas não como está pensando. Ele adora a esposa. Certo?
— E as coisas são assim no meio artístico?
— Sim. Do mesmo modo que os jogadores de futebol dão tapinhas uns nos outros no vestiário.
— Mas não consigo imaginar seu irmão dando beijos nos outros jogadores do time de beisebol. — Harry sentiu o olhar de reprovação de Gina e suspirou fundo. — Tudo bem, já entendi.
— Ótimo! O espetáculo foi maravilhoso, não? Gostou?
— Você foi incrível! Nunca vi algo parecido.
Gina saltou do banquinho e abraçou-o.
— Fico tão contente! — Riu ao ver que borrara o rosto de Harry com a maquiagem muito branca. — Desculpe-me. Fiquei tão nervosa com a família presente! Papai e mamãe que vieram de Shepherdstown, e meus avós... tios e tias... e Rony mandou flores. — Voltou a sentar-se e passar cre¬me no rosto. — Pensei que iria passar mal de tanto nervo¬sismo. Mas na hora, só ouvi a música. É assim que acontece no momento certo.
Harry relanceou o olhar pelo camarim. Estava coberto de flores, a maioria rosas. Mas todas pareciam pálidas em comparação com o entusiasmo no rosto de Gina.
De repente um pensamento surgiu-lhe na mente. Como ela podia abandonar tudo aquilo e por quê? Ia perguntar, quando a porta abriu-se com um repelão, e a família entrou para cumprimentá-la. O momento havia passado.

Gina parecia estar muito à vontade também no dia se¬guinte, na casa do Brooklin onde os avós moravam. A exó¬tica bailarina que brilhara no palco na noite anterior fora substituída pela garota adorável, vestindo um jeans confor¬tável e andando descalça.
Aquela transformação era um mistério para Harry. Qual dos dois papéis Gina preferia? Precisava descobrir, prome¬teu a si mesmo.
Porém, no momento, pensou, o melhor a fazer era apro¬veitar o fim de semana. A casa estava repleta de pessoas e o barulho era constante e ensurdecedor.
O piano encostado a um lado da espaçosa sala era toca¬do seguidamente por diversas pessoas. Tudo servia, de rock a Bach. Um aroma gostoso de comida impregnava o ar, vin¬do da cozinha. O vinho era servido sem parar, e ninguém ficava quieto no mesmo lugar por mais de cinco minutos.
James sentia-se muito à vontade naquele ambiente, observou Harry.
Sempre que conseguia vê-lo, em meio a uma dezena de outras pessoas, estava brincando com Max, empurrando carrinhos no tapete da sala ou correndo de um lado para o outro. A última vez que o vira estava sentado no colo do velho Yuri, e parecia conversar com seriedade. Antes disso, passara correndo escada abaixo, e nem percebera a presen¬ça do pai. Harry anotou mentalmente que precisavam ter uma conversa sobre correrias na escada.
— Ele está bem — disse uma mulher como se lesse seus pensamentos, sentando-se no sofá ao seu lado. Tinha a marca registrada dos Stanislaski: Ruiva, bonita e desinibida.
— Meu nome é Rachel. Sou tia de Gina. Somos uma família bastante indisciplinada, não?
— Vocês são muitos — disse Harry, tentando traçar mentalmente uma árvore genealógica.
Rachel. Irmã da mãe de Gina. Casada com o dono do bar que era meio-irmão de Nick. Ufa! Era difícil armar o quebra-cabeça, pensou.
— Logo vai se acostumar — disse Rachel sorrindo. — Aquele ali é meu marido, está fingindo enforcar nosso filho Gideon que estava conversando com Sydney, a ruiva boni¬ta, mulher de meu irmão Mik, e Laurel, a caçula de Mik e Sydney. Mik está ali, discutindo com meu outro irmão, Alex. E Bess, a esposa de Alex, aquela ruiva maravilhosa, parece estar dizendo algo muito importante para sua filha Carmen e a pequena Kelsey, filha de Nick e de Freddie. O jovem alto e bonito que está saindo da cozinha é o primogênito de Mik, Griff, que parece ter ido convencer minha mãe, Nádia, a dar-lhe um pedaço de bolo. Entendeu?
— Bem...
— Vai absorver com o tempo. — Rachel soltou uma ri¬sada divertida e deu-lhe um tapinha no joelho. — E ainda existem muitos outros que não estão aqui. E pode ficar des¬ cansado que seu filho está bem, e... Você não está bebendo. O que vai querer? Vinho?
— Claro, obrigado.
— Pode deixar que vou buscar — disse Rachel, levantando-se com a mesma velocidade com que se sentara.
Imediatamente Griff tomou-lhe o lugar e começou a con¬versar sobre carpintaria.
Esse, pelo menos, era um assunto que podia levar avante, pensou Harry.
Gina atravessou a sala, abrindo caminho entre adultos e crianças, e sentou-se no braço do sofá, oferecendo-lhe um copo de vinho.
— Tudo bem por aqui?
— Sim. Estou agindo conforme o manual dos escoteiros que diz: quando estiver perdido, apenas sente em um lu¬gar, que os outros o acharão. As pessoas sentam perto de mim, conversam um pouco e seguem adiante. Em breve conhecerei todos os detalhes de sua família, se continuar neste sofá e usando este sistema.
Quando virou a cabeça para o lado, viu que Griff já se¬guira adiante, e Alex sentava-se, colocando os pés na mesinha de centro.
— Então, Bess e eu estamos pensando em acrescentar um ou dois cômodos na nossa casa de campo.
Harry sorriu e voltou-se de novo para Gina, sussurrando:
— Percebe o que digo?
Mas ela levantou-se e foi para a cozinha onde Molly dava os retoques finais em uma salada enorme. Nádia esta¬va no fogão supervisionando o trabalho de Laurel, que mexia uma panela.
- Precisam de ajuda? — perguntou Gina.
— Sempre há gente demais na minha cozinha — repli¬cou Nádia.
Os cabelos da senhora eram brancos como neve e o ros¬to marcado pelos anos. Mas o olhar era cheio de vivacidade. Disse a Laurel:
— Muito bem. Pode ir agora.
— Mas quero comer, vovó. Estamos todos famintos!
— Logo. Diga a seus irmãos e irmãs, primos e primas, para colocarem pratos e talheres na mesa.
— Certo! — respondeu a menina, saindo da cozinha e já gritando ordens.
— Essa gosta de mandar — comentou Nádia.
— Mãe! Todos na nossa família gostam — disse Molly rindo. — E como vai Harry, Gina?
— Está conversando com o tio Alex — Gina examinava o que fervia nas panelas. — Não é maravilhoso?
— Tem um olhar bondoso mas decidido — comentou Nádia. — E cuida bem do filho. Você tem bom gosto, Gina.
— Tive bons exemplos. — Gina inclinou-se e beijou a avó. — Obrigada por recebê-lo.
Nádia escondeu a emoção.
— Vá ajudar a pôr a mesa. Seu jovem amigo e o filho vão pensar que não se come nesta casa.
— Em breve verão que é bem o contrário — replicou Gina, pegando uma torrada e beijando a mãe ao sair da cozinha.
— Bem — disse Nádia, mexendo em outra panela. — Logo teremos um casamento para dançar. Você está contente com a escolha de Gina, filha?
- Claro. Ele é um bom homem e a faz feliz. Para ser sincera, eu não teria escolhido melhor se tivesse que arrumar-lhe um marido. — Olhou para a mãe, emocionada. — Oh! A minha garotinha vai se casar!
— Sei disso, filha — disse Nádia correndo a abraçar Molly e oferecendo a ponta do avental para que a filha enxugasse os olhos úmidos.



Continua...


Obrigado a: Nani, Kalih e Lua pelos comentarios ^^

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