Capitulo XXII



Harry estava espantado. Como corria o tempo! O Natal fora no outro dia, e já era primavera. Parecia que quando era criança as férias se prolongavam mais.
Os Skully tinham resolvido aproveitar o final dos feria¬dos e levar os filhos para a Disneyworld. Isso causara muita dor de cabeça, porque James implorara e choramingara para que fossem também.
Harry explicara por que não era possível viajar naquele momento, de modo paciente no início, mas logo adquirira o tom de comando paterno, ao perceber que as lamúrias não acabavam. Como resultado de tudo isso, ficara com um garotinho mal-humorado em casa por dois dias, e sentindo uma absurda sensação de remorso.
E foi com esse humor que viu-se, naquele dia, ladrilhando o pequeno banheiro do apartamento de Gina
— Nunca me deixa ir a lugar algum — queixou-se James, entediado com os brinquedos que trouxera para a obra.
Em geral gostava de acompanhar o pai no trabalho, mas não quando seu melhor amigo estava na Disney descendo a Space Mountain, pensou. — Não vale! — acrescentou para si mesmo, usando um termo que aprendera com os operá¬rios do pai.
Quando Harry o ignorou e continuou a pregar azulejos na parede, James tentou outra coisa:
— Por que também não pude ir para a casa da vovó?
— Já disse que ela estava ocupada hoje de manhã. Mas virá mais tarde buscá-lo. Aí poderá ir para sua casa.
E dava graças a Deus por isso, concluiu em pensamen¬to, porque já não agüentava mais tanta rabugice.
— Mas não quero ficar aqui. É chato. Não é justo ter que ficar aqui sem fazer nada quando todo mundo está se di¬vertindo.
Harry afastou a mão de um azulejo que ia pegar e disse:
— Olhe, tenho trabalho a fazer, e é assim que ponho comida em casa. — Mal falou, percebeu que dissera as mesmas palavras que o pai costumava dizer. Suspirou contrafeito. — Estou preso aqui, e você também. Mas continue com essa atitude e nunca mais irá a lugar algum.
— Vovó me deu cinco dólares, portanto não precisa me comprar comida.
— Maravilha! Vou me aposentar amanhã.
— Meu avô e minha avó podem me levar à Disney e você não.
— Não levarão você a parte alguma — retrucou Harry, irritado com o tapa que levara em seu orgulho. — Terá sor¬te se for à Disney quando tiver trinta anos. Agora, chega!
- Quero a vovó! — berrou James. — Quero ir para casa! Não gosto de você!
Gina entrou naquele exato instante e presenciou a explo¬são d lágrimas que seguiu-se ao desabafo do menino. Lançando um olhar para o rosto cansado e triste de Harry e para a criança deitada no chão aos soluços, resolveu intervir.
- O que houve, James querido?
- Quero ir para a Disneyworld!
As palavras saíram abafadas e entrecortadas, enquanto soluçava sem parar. Harry aproximou-se e ficou de cócoras ao lado do filho, seguido por Gina que meteu-se no meio dos dois, replicando:
- Nossa! Eu também! Aposto que todo mundo quer ir para lá.
- Menos o meu pai...
É claro que ele também quer! Seu pai é quem mais deseja ir. É por isso que é pior ainda para ele, porque tem que trabalhar.
- Gina, posso resolver isto sozinho — sussurrou Harry.
- Quem disse que não? -- Mas mesmo respondendo assim, levantou-se, e puxou James com delicadeza. — Por que não vamos para minha casa, querido, e deixamos seu pai terminar o trabalho de hoje?
- Minha mãe virá buscá-lo daqui a pouco — replicou Harry, estendendo o braço para segurar o menino, que en¬roscou-se em Gina
Gina notou o sofrimento no rosto bonito e viril e dese¬jou abraçar pai e filho, em uma comunhão tripla, cheia de carinho. Porém, pensou, antes de sucumbir ao impulso, não seria sensato no momento. Era melhor manter distância.
— Não tenho mais nada que fazer aqui hoje, Harry. Por que não deixa James ir para minha casa e me fazer compa¬nhia? Telefone para sua mãe e peça que vá buscá-lo lá.
— Quero ir com Gina — soluçou o menino, encostando-se em suas pernas.
— Ótimo. — Harry causava pena, com seu ir de cão re¬jeitado e deixando transparecer uma culpa absurda. — Obrigado. Pode ir.
Com um gesto exausto, sentou-se em um balde virado, enquanto ouvia os dois se afastarem e James dizer:
— Papai gritou comigo...
— Sim, eu sei — replicou Gina, beijando o rosto do menino, que estava molhado pelas lágrimas, enquanto des¬ciam as escadas. — E você gritou com ele também. Aposto que seu pai também está triste.
— Acho que não. — James encostou o rosto nas pernas de Gina. — Ele não quer me levar para a Disney.
— Também sei disso. E acho que a culpa é minha.
— O quê?! — exclamou o garotinho, erguendo o olhar espantado.
— Bem... seu pai prometeu fazer essa obra para mim, e entregar em um prazo determinado. Então, por causa dessa promessa, também me comprometi com outras pessoas que agora dependem de mim. — Sorriu para a criança que acom¬panhava o raciocínio com olhar inteligente. — Se o seu pai quebrar a promessa terei de quebrar a minha, e isso não seria certo com muitas pessoas. Seria, James?
— Não, mas só uma vez...
— Seu pai quebra as promessas que faz para você?
— Não — admitiu a criança, baixando a rabeca.
- Não fique triste, meu querido. Quando chegarmos à minha casa vamos ler uma história sobre um outro James. O que tinha um pé de feijão.
- Posso comer biscoitos?
- Sim — replicou Gina, sorrindo e apertando-o contra si.

O menino adormeceu antes de o James do conto de fadas trocar sua vaca pelos feijões mágicos.
Pobre criança, pensou Gina, ajeitando uma manta sobre o pequeno corpo. E pobre Harry.
Começava a pensar que não dera crédito suficiente ao homem. Ser pai não era apenas brincar de luta no chão da sala e jogar bola no quintal. As lágrimas, os desapontamen¬tos e a disciplina eram a parte ruim. O problema era preci¬sar dizer não quando o coração desejava concordar.
- É tão amado, meu querido — murmurou, inclinando-se para beijar James na testa. — Seu pai quer que saiba disso.
Quando o telefone tocou, apressou-se a atender, para não acordar o garoto.
- Alô? — Sorriu, e saiu da sala carregando o aparelho. - Davidov! O que fiz para merecer um telefonema do mestre?

Mais tarde, embora se sentisse tola por fazê-lo, Gina retocou a maquiagem e penteou os cabelos. Seria a primei¬ra vez, embora por casualidade, que iria encontrar-se com o pais de Harry. Entretanto, se pretendia que fossem seus sogros no futuro, precisava causar uma boa impressão.
James acordara revigorado. Então fora correr no quintal, lutar com uma espada de brinquedo e fazer um forte com paus e pedras que encontrou. Isso resultou em uma enor¬me bagunça.
Os divertimentos encerraram-se com um lanche na co¬zinha.
— Meu pai está furioso comigo — confidenciou James, entre dentadas em uma maçã com queijo.
— Não acho. Creio que está um pouco aborrecido por¬que não pode dar o que você quer. No fundo, os pais que¬rem fazer todas as vontades dos filhos e deixá-los felizes, mas às vezes não é possível.
Lembrou-se de quando era menina e das cenas que fa¬zia para demonstrar sua frustração ante uma negativa do pai ou da mãe. Muito choro, seguido de mau humor, que sempre terminava como no momento atual, no caso de James, com tristeza e remorso. Continuou:
— Às vezes é impossível agradar os filhos porque não seria a melhor coisa a fazer. E às vezes porque não se pode mesmo. Quando o filho chora, grita, bate o pé, os pais fi¬cam aborrecidos, mas magoados também.
James ergueu o rostinho com os olhos muito abertos e os lábios trêmulos.
— Não quis aborrecer o meu pai...
— Sei disso, meu bem. E aposto que se explicar-lhe com calma e bons modos como se sente, farão as pazes.
— Seu pai gritava com você?
— Sim. E eu ficava louca de raiva ou muito infeliz. Mas depois de um certo tempo, em geral concluía que fora me¬recido.
— E eu mereço?
— Acho que sim. Havia uma coisa da qual nunca me esquecia, mesmo em meio às maiores brigas quando me sentia infeliz ou furiosa: que meu pai me amava. E você sabe o mesmo sobre o seu pai, não sabe?
— Sim — replicou James, balançando a cabeça de modo solene e concordando. — Somos uma dupla.
— Uma dupla fabulosa.
James virou as fatias finas de maçã no prato, formando figuras. Gina era bonita, pensou, e muito boa. Sabia brincar e contar histórias. Até gostava quando o beijava, e não se importava nem um pouco. E como ela ria, quando fingia não querer beijá-la! Era uma brincadeira entre os dois. O pai também gostava de beijar Gina, lembrou. Ele dissera isso e não mentira.
Então, os dois podiam se casar, mesmo que o pai dis¬sesse que isso não ia acontecer. Aí ela seria a esposa dele e sua mãe, concluiu James. E todos viveriam juntos na grande casa. E um dia, quem sabe, poderiam ir à Disneyworld.
— No que está pensando assim tão concentrado, James?
— Estava pensando se...
- Ora! — exclamou Gina, erguendo a cabeça ao ouvir o som da campainha da porta, e sorrindo. — Depois você me conta, certo? Deve ser sua avó.
Passou a mão nos cabelos pretos do menino e apressou-se a atender. Segurando a maçaneta, tomou fôlego. Era bo¬bagem ficar nervosa, pensou. Abriu a porta e deparou-se com o Sr. e a Sra. Potter.
— COMO vão? Prazer em conhecê-los. — Deu um passo atrás, convidando-os a entrar. — James está na cozinha to¬mando um lanche.
— Foi gentileza sua tomar conta dele para Harry — dis¬se Lilian Potter, entrando e tentado disfarçar o olhar observador sobre os móveis do hall. Ela também retocara a maquiagem, apesar dos protestos do marido.
— Gosto de ficar com James. É uma ótima companhia. Por favor, entrem. Tomem um café.
— Não queremos incomodar — disse Tiago.
Para ele as casas eram todas iguais, já que entrava e saía de uma centena delas, consertando pias e vasos sanitários.
— Fiz café agora mesmo. Por favor, vamos entrando, a não ser que estejam com pressa.
— Temo que...
Tiago interrompeu-se ao sentir uma leve cotovelada da esposa, e Gina continuou:
— Meus pais foram dar um olhada na obra que Harry está fazendo para mim.
— Ele sempre foi bom nisso — replicou Lilian, lançando um olhar sereno para o marido, que cerrou os lábios com força.
— Sem dúvida transformou aquele casarão velho — co¬mentou Gina, entrando na cozinha. — Veja quem chegou, James!
O menino sorriu, tomando um gole do chocolate.
— Olá, vovô e vovó. Estava brincando com Gina.
Era igual ao pai quando criança, pensou Tiago, e seu co¬ração encheu-se de carinho como sempre acontecia ao ver o neto. Perguntou:
— Onde deixa a vaca que dá chocolate, parceiro?
— Oh! Deixamos no quintal — replicou Gina —, e tira¬mos seu leite duas vezes por dia. Já vem com chocolate.
— Gina tem brinquedos em casa — explicou James. — A mãe dela é dona de uma loja inteira de brinquedos! Ela dis¬se que no meu aniversário iremos lá e poderei escolher um presente.
— Que maravilha — murmurou Lilian, lançando um olhar perscrutador para Gina. — Como vai sua mãe?
— Está bem, obrigada.
Lilian aprovou o modo como a jovem preparara a mesa para o lanche. Com elegância, mas simplicidade. E aprovou o gesto dela ao entregar um guardanapo para James limpar a boca.
Tinha potencial para ser uma boa mãe, concluiu a se¬nhora. E seu netinho precisava disso. Quanto a Gina ser uma boa esposa, teria de verificar mais tarde, concluiu. Disse em voz alta:
— Todos estão comentando sobre sua escola de bale. -Ruborizou-se ante o olhar de desprezo do marido. — Deve estar muito animada para começar!
— Sim. E já tenho várias alunas inscritas. As aulas de¬verão começar em poucas semanas. Se souber de alguma mãe que esteja interessada em bale para sua filha, gostaria que fizesse um pouco de publicidade para mim.
— Shepherdstown não é Nova York — cortou Tiago com secura, servindo-se de açúcar.
— Está enganado — replicou Gina com delicadeza e se¬renidade, embora tivesse percebido o sarcasmo na voz do Sr.Potter. — Adorei morar em Nova York e trabalhar lá. E claro que ajudou muito ter parte da família morando lá. Gostei de viajar, conhecer novos lugares, ter a oportuni¬dade de dançar em grandes teatros. Mas Shepherdstown é meu lar e onde desejo ficar. Acha que o bale é absurdo aqui?
Tiago deu de ombros.
— Não entendo dessas coisas.
— Mas eu sim. E acho que uma boa escola de dança será algo maravilhoso em qualquer lugar. Somos uma cidade pequena, é claro — acrescentou, bebericando café —, mas temos uma universidade também, que traz pessoas diferen¬tes de todos os lugares.
— Posso comer um biscoito? — perguntou James.
— Por favor? — emendou a avó.
— Por favor? — repetiu ele.
Gina levantou-se, mas parou a meio caminho, ao ver Harry pelo vidro da porta dos fundos. Acenou e foi abrir.
— Levei um susto!
— Desculpe — replicou ele um pouco sem fôlego, mais pelo nervosismo que pela corrida que dera até o quintal da casa. — Tentei telefonar antes — disse, acenando para os pais. — Mas não estava com o celular.
— Dissemos que viríamos buscar o menino às três e che¬gamos no horário — falou Tiago.
— Sim, mas mudei um pouco os planos — replicou Harry, olhando para o filho, sentado com os olhos no prato de biscoitos e o queixo quase grudado no peito. — Diver¬tiu-se com Gina, James?
O garoto acenou que sim, erguendo o olhar aos poucos. Os olhos estavam cheios de lágrimas quando murmurou:
- Desculpe-me se fui mau e se magoei você, papai. Harry ajoelhou-se e segurou o rosto o filho entre as mãos.
— E eu lamento ter gritado e não poder levá-lo para a Disneyworld.
— Não está mais bravo comigo, pai?
— Não. De jeito nenhum.


Continua...
Obrigado a todos pelos comentários ^^

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