Capitulo XVIII



Do andar de cima, Harry podia ouvir, se prestasse atenção, o ruído da furadeira no
térreo. Ouvia também o rumor abafado das marteladas e das lixadeiras no quarto de
Gina.
Iria ficar muito bonito, concluiu. O apartamento perfeito para uma mulher
solteira ou um casal sem filhos. Um pouco apertado para mais de duas pessoas,
pensou.
E ficou ali parado, olhando o vazio.
Você vai se casar com Gina? Por que James tivera de jogar a idéia na sua
cabeça? Tirara toda a leveza da situação. Não estava pensando em casamento,
raciocinou. Não podia dar-se a esse luxo. Tinha um filho pequeno e seu negócio
estava apenas começando. Além do mais, possuía uma casa mal-acabada e que
precisava de muitos reparos. Não era o momento de começar a pensar em
acrescentar mais uma pessoa no cenário familiar. Já mergulhara em situação seme-
lhante no passado. Não se arrependera, mas precisava admitir que fora uma época
terrível para todos os envolvidos. Para que fazer tudo de novo se havia tanto ainda a
ser resolvido em sua vida?
Concluiu que seria procurar encrenca na certa.
Além do mais, Gina não estava à procura de casamento, claro que não. Mal
se instalara na cidade. Tinha a escola para administrar.
Falava francês, visitara a França, Inglaterra e Rússia, e talvez pretendesse
voltar. Por que não? E ele estava ancorado na Virgínia Ocidental, com uma criança
para cuidar.
Fora uma paixão louca com Cho, lembrou. Eram jovens e tolos, pensou
com carinho. Ele e Gina oram dois adultos de bom senso que apreciavam a
companhia um do outro. Muito sensatos para cometer uma tolice.
Uma mão pesada tocou seu ombro, quase o fazendo largar a máquina que
segurava.
— Nossa, Potter! Eu o assustei?
Tomando fôlego e erguendo-se, Harry deparou com Jerry Skully. O pai de
Rod fora seu amigo de infância. Apesar de estar com mais de trinta anos, mantinha
o ar jovial e o sorriso de garoto travesso que exibia naquele momento.
— Não o ouvi chegar, Jerry.
— E eu o chamei várias vezes. Estava fora deste mundo, homem!
Assim dizendo, Jerry pôs as mãos na cintura e olhou em volta, fazendo Harry
pensar que um sujeito de terno e gravata em uma obra era uma visão muito
engraçada.
— Precisa de emprego? Tenho um martelo extra.
Era uma velha brincadeira entre os dois. Jerry era um gênio da matemática,
muito hábil com relacionamentos humanos, porém não conseguia desatarraxar uma
lâmpada sem instruções por escrito, passo a passo. Harry continuou:
— Já colocou as prateleiras na lavanderia?
— Não, mas num belo dia apareceram pregadas na parede. Você teve
alguma coisa a ver com isso ou foram os duendes que fizeram o trabalho?
— Não contrato duendes, Jerry. O sindicato deles é muito desorganizado.
— Que pena! Mas sou muito grato aos duendes por terem resolvido esse
problema para mim.
Aquele diálogo de duplo sentido era um código entre os dois amigos, onde um
agradecia ao outro pela gentileza. Jerry mudou de assunto:
— O primeiro andar está maravilhoso. Carrie e Beth estão me deixando
loucos com essa história de aulas de bale. Creio que começam no mês que vem.
— Sem dúvida. Pelo menos o térreo ficará pronto. — Harry começou a
arrumar o armário que ia pregar. — E o que faz aqui a esta hora do dia? Horário de
almoço mais longo?
— O serviço bancário é mais duro do que pensa, amigão.
— Que mãos macias — provocou Harry, fungando. — E está usando perfume
também?
— Será que não reconhece cheiro de loção pós-barba? Bem, o fato é que
tinha uma reunião fora e consegui sair mais cedo, e resolvi vir visitá-lo para ver o
que está aprontando neste velho prédio. O dinheiro do banco está metido nisto, você
sabe.
Harry sorriu, olhando por cima do ombro.
— A cliente escolheu o melhor empreiteiro.
Jerry resmungou algo sarcástico por entre os dentes cerrados, mas que simbolizava o afeto entre os dois amigos, e disse em voz alta:
— Então, pelo que ouvi falar, você e a bailarina estão dançando juntos.
— Cidade pequena, mexericos demais — murmurou Harry.
— Ela é linda. — Jerry aproximou-se, examinando de perto o trabalho de
Harry. — Já assistiu a um espetáculo de bale?
— Não.
— Eu já. Minha irmã caçula... lembra-se de Tiffany? Teve aulas de bale
alguns anos, quando éramos crianças. Dançou o Quebra-nozes. Até que foi
interessante... Ratos gigantes, lutas com espadas, árvores de Natal enormes... O
resto eram apenas pessoas pulando e rodopiando. Agradou a todos os gostos.
— Ótimo.
— Mas, como ia dizendo, Tiffany acabou de voltar para casa. Morou em
Kentucky nos últimos anos e, por fim, divorciou-se do idiota com quem se casou. Vai
ficar com nossos pais até arrumar a vida.
Harry apenas acenou, demonstrando prestar atenção.
— Então, pensei que já que voltou à circulação, poderia levá-la para dar uma
volta. Animá-la um pouco. Um cinema... um jantar.
Harry continuou seu trabalho, sem nada dizer. Jerry pigarreou.
— Pensei em você. Tiffany passou por maus bocados. Seria formidável s
pudesse se relacionar com um sujeito decente para variar. Ela tinha uma queda p
você quando éramos crianças. Então... vai telefonar para minha irmã?
Brody encarou-o, parecendo voltar de outro mundo.
— O quê? Sair com quem?
— Ora, Brody! Tiffany! Minha irmã! Vai telefonar para ela e convidá-la pa
sair?
— Eu?!
— Potter, acabou de dizer...
— Espere um minuto. — Harry largou a trena e tentou compreender. — Olh
acho que não posso fazer isso. Estou saindo com Gina.
— Não está casado com ela, nem morando junto. Qual o problema?
Mas havia um impedimento, pensou Harry. O fato de ter ficado fora de
circulação por alguns anos não o deixara ignorante sobre certas coisas. Além do
mais, não tinha a menor intenção de sair com Tiffany ou com qualquer outra mulher
Mas sabia que Jerry não ficaria contente por ouvir isso. Respirou fundo, e explicou:
— A questão é que não estou no grupo dos disponíveis para sair a toda hora
— Está tendo um relacionamento com a bailarina.
— Não... quero dizer... apenas saímos...

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