Conhecendo a si mesmo



A contragosto, Kassandra voltou na desconfortável carroça. O destino não era muito melhor, mas Greig havia recebido-a de braços abertos, sem se importar com quem ela era ou quem teria atacado-a daquela forma. E Greig, apesar de humilde, não era ignorante, ele havia percebido a insatisfação de Kassandra em relação a sua casa, e percebera também que ela se esforçava para não fazer desfeitas a ele.
A noite de Ação de Graças foi comemorada com um singelo jantar, porém aconchegante; Nellie era uma cozinheira de mão cheia. Na hora da sobremesa, os garotos continuaram sentados, se acotovelando, esperando com entusiasmo a gostosura que estava por vir. Kassandra pediu licença e foi sentar na varanda. Andrew, o filho mais velho de Greig, chutava pedras alguns metros além do pequeno barraco das ferragens.
― Senhora - cumprimentou Greig, parando de costas pouco a frente de Kassandra e fitando o terreno que se perdia no horizonte.
Kassandra balançou a cabeça, cumprimentando-o também.
― A senhora parece triste. Sente-se bem?
Ela não respondeu de imediato.
― A senhora gostaria de se hospedar no hotel lá da cidade?
― Estive pensando nisso - respondeu finalmente.
― Eu entendo...
― Entende mesmo, senhor McCoy? - quis saber ela.
Greig não respondeu, apenas encarou-a.
― Não quero que pense que menosprezo sua hospitalidade, senhor, mas acho que já estou bem melhor, posso seguir meu caminho...
― Então a senhora sabe quem fez - e ele passou a mão diante do rosto - isso com a senhora?
― Na verdade... não me lembro ainda.
― Hum - murmurou. - E como é que vai poder se proteger estando sozinha?
― Já abusei demais de sua família.
― A senhora não conhece o verdadeiro significado da palavra abuso.
Kassandra o fitou intrigada. Greig sentou no degrau da escada, jogando o corpo contra ela e passou a ajeitar alguma coisa qualquer na bota sovada.
― Os garotos gostam da senhora, as histórias que conta a eles... Eles terminam os deveres antes do tempo só para poderem se sentar ao pé do sofá e ouvi-la.
Kassandra sorriu brevemente, lembrando do pai e do avô, grandes contadores de história, embora seguidores das trevas. E ali sentada, naquele momento, não entendeu o porquê da escolha deles.
― Nellie é turrona, mas vejo a satisfação nos olhos dela por ter outra mulher na casa.
― Não creio que o senhor esteja enxergando o que realmente acontece.
Greig virou o rosto para ela.
― Ai de mim, senhor McCoy, querer colocá-lo contra um de seus filhos, no entanto, acredito que ela não goste de mim.
― Ela tem um jeito ranzinza e é resmungona... ela é assim.
Kassandra emudeceu.
― Senhora Crabbe, o que diria se sua mãe tivesse partido e deixado aos seus cuidados uma casa cheia de filhos?
Desta vez, Kassandra enrubesceu, mas Greig não percebeu porque a única fonte de luz agora era o minguado luar.
― Sinto muito por Nellie ter que se encarregar de tudo aqui. Até tentei arranjar um marido para ela... - e balançou os ombros. - Mas ela foi relutante quanto a isso.
― Porque ama o senhor e viu que se saísse de casa, o senhor se sobrecarregaria ainda mais.
― Sim, talvez - murmurou Greig voltando a olhar para o horizonte.
Kassandra sentiu pena dele.
― Eu não preciso de piedade - falou Greig como que lendo a mente de Kassandra, o que era impossível já que ele era um trouxa.
― E se o senhor se casasse...
― A senhora acha mesmo que eu não tentei isso? Que mulher ia querer cuidar de crianças que não são seus filhos?
Kassandra mordeu o lábio, lembrando do estado das crianças depois do jantar. E antes dele, quando Nellie era autoritária ao extremo obrigando-os a se lavarem antes de comer.
― A senhora deve estar pensando porque é que tive tanto filhos, não é mesmo? - Greig não esperou que ela respondesse. - Minha esposa adorava crianças. Só não gostava deste lugar.
Kassandra não podia culpá-la, o lugar era demasiado desconfortável e descuidado, seco e sem vida. Como uma mulher poderia viver assim?
― Odiei... eu a odiei por muito tempo, não me orgulho nada em confessar.
― O senhor não precisa me contar essas coisas...
Ele nem ao menos a olhou, parecia não ter escutado, e então, Kassandra continuou:
— Apesar de seus filhos serem bagunceiros, senhor McCoy, são muito responsáveis. Cuidam do trato dos animais e do lavor da terra com pulso forte.
Greig fitou Kassandra por instantes como que decodificando a frase que ela acabara de dizer, depois voltou a olhar para as botas, e murmurou:
― Se a senhora deseja se hospedar na cidade, não irei impedi-la.
Kassandra levantou, desceu os degraus e parou diante dele.
― Amanhã acontecerá o baile que Nellie deseja ir tanto.
― De... deseja?
― Por que não nos leva até lá? Faça uma surpresa a ela!
Greig McCoy sorriu de forma tão espontânea que pareceu tão jovem quanto um de seus filhos.

A intuição alertava a Kassandra sobre o eminente arrependimento de se misturar com trouxas. Mas embora estivesse receosa, sentiu-se feliz ao longo da noite, especialmente ao ver Greig descontraído, e os filhos deles se divertindo com outras crianças e adolescentes.
― Então, finalmente, conhecemos a jovem hospedada em sua casa, Greig - era a mulher de Troy Stevenson, o vizinho, um doce de pessoa, fora a melhor amiga da mulher de Greig. As duas famílias já tinham sido muito unidas, freqüentavam a casa uma da outra e participavam regularmente dos cultos dominicais. Depois que a senhora McCoy partiu, o resto da família se afastou da comunidade. Talvez por vergonha, pensou Kassandra, ou talvez porque Greig não agüentava reencontrar os casais amigos, felizes, sempre felizes, assim como o resto da comunidade.
As apresentações se deram durante quase toda noite porque havia muitas pessoas que acabaram roubando o pouco tempo para Greig e Kassandra dançarem uma única música. Mas, pelo menos, ela dançara algumas modas, meio que desajeitada, com Andrew, que era a antipatia em pessoa.
― Devo admitir, Greig, que não posso imaginar um atrativo sequer em sua casa que tenha fascinado a atenção daquela mulher a permanecer lá - era Henri Gilligan.
McCoy e Gilligan se estranhavam havia anos porque o segundo defendera a fuga da esposa do primeiro dizendo que era uma vergonha ter uma casa como a que McCoy construíra. Além disso, Gilligan hospedara em seu hotel, durante dias, a mulher de McCoy. Gilligan não era benquisto na cidade por conta de seu jeito arrogante, como nenhum outro inglês poderia ser. Mas era dono de muitas terras e proprietário do hotel e do cassino local e, por tal, respeitado e temido.
― Acredito que Greig não se importe muito com aparências, não é mesmo? - alfinetou Troy, colocando a mão no ombro de McCoy. Era difícil ele ser descortês, mas dadas às circunstâncias precisava defender o amigo.
― E deu no que deu - ironizou Gilligan debochando.
Greig olhou por sobre o ombro do homem que estava a sua frente e viu Kassandra conversando descontraída; reparou como ela mantinha o corpo ereto, os cabelos ajeitados no coque displicente, vez ou outra alisava o sedoso vestido que comprara dias atrás na cidade.
― Ela apenas é hospede em minha casa. Está se recuperando de um incidente, mas assim que quiser, ela poderá partir.
― Disso eu sei, meu caro. A convidei para ficar em meu hotel, ela apreciou o convite, e muito. Mas acredito que só esteja em sua casa ainda, McCoy, por indulgência a seus filhos.
― Não coloque minhas crianças no meio da história - rosnou Greig chamando a atenção das pessoas que estavam próximas.
A esposa de Troy entrou sorrindo na roda de conversa e convidou Greig para uma valsa, querendo evitar o eminente atrito entre os dois homens. Greig saiu a contragosto, encarando Gilligan como se fosse enforcá-lo com o olhar. Enquanto McCoy era distraído pelos Stevenson, Gilligan aproveitara para cortejar a senhora Crabbe, que estava sendo apresentada - por conta de ser inglesa - à esposa do banqueiro Theodore Smith.
― A beleza das estrelas está ofuscada esta noite pelas senhoras - envenenou Gilligan, erguendo o braço ao céu e depois tomando primeira a mão da esposa de Theodore, Rebba, e depois a de Kassandra.
Rebba Smith soltou uma gargalhada estridente, desdenhosa e arrogante; era muito vaidosa, apesar de nada bonita. Kassandra, no entanto, agradeceu quase murmurando e levou o copo de ponche aos lábios.
― McCoy me contou que a senhora se recupera de um incidente...
― Sim - respondeu sobressaltada, olhando na direção de Greig. - Fui... assaltada - completou rápida.
― Em que mundo estamos, meu Deus! - exclamou falsamente Gilligan, querendo demonstrar perplexidade. - E os demais que com a senhora estavam? O cocheiro não a defendeu?
― Hum, meu caro senhor, somente a senhora Crabbe foi encontrada caída, desmaiada em pleno deserto. Não havia sinal de luta ou de rodas de diligência, nem mesmo qualquer bagagem foi encontrada nas proximidades. - Quem tomou a palavra foi Cliff McCoy, terceiro filho de Greig, aparecera para pegar um refresco, estava suado de tanto dançar. - O pai acha que, por causa do dia quente e seco, os rastros foram apagados. Ventou muito naquele dia, sabe?
― Que horror! Que horror! - exclamou Gilligan com a mão no peito. - Não há como apagar o passado, mas posso lhe oferecer um bom futuro, senhora Crabbe. É só aceitar meu convite e se hospedar em meu hotel! Garantirei à senhora que jamais se entediará por aqui!
Kassandra sorriu, o convite era bastante tentador com toda certeza, mas sua intuição pulsava forte naquele momento, avisando-lhe para esperar, para tomar cuidado com precipitações, com decisões momentâneas.
― Muito gentil de sua parte, senhor Gilligan, mas não, obrigada. Claro que se formos à cidade não recusarei passar a tarde em seu hotel, usufruindo de uma de suas maravilhosas banheiras - e sorriu para si mesma, despedindo-se e seguindo de encontro a Greig McCoy.
― O senhor se importa em me levar para casa?
Sem responder, Greig sorriu para ela, lhe estendeu o braço e a conduziu até a carroça. Falassem o que fosse dos filhos de McCoy, mas aquelas crianças eram muito obedientes, não foi preciso que Greig as chamasse, assim que viram o pai se dirigir para a carroça, organizaram-se e aprontaram-se para ir embora. E quando Greig açoitou o ar com o chicote, fazendo os cavalos trotarem, todos já estavam devidamente assentados na parte de trás da condução.
Durante a viagem Kassandra teve a impressão, em vários momentos, de que Greig a observava, porém, quando o mirrava, pegava-o fitando fixamente a sinuosa estrada, que mais parecia uma trilha.
A manhã de domingo raiou ensolarada. Kassandra se demorou a levantar, somente o fez quando não ouviu mais barulho vindo do resto da casa. Saiu do pequeno quarto, que antes pertencera a Greig, em direção à janela da cozinha, que se abria para a parte dos fundos da casa. Espreguiçou-se, massageou-o pescoço de leve e suspirou, baixando a cabeça em seguida. Passou a mão numa xícara e girou os tornozelos para pegar água quente no fogão do outro lado do cômodo, quando parou de súbito ao dar de cara com os amendoados olhos de Greig McCoy a encarando. Houve um silêncio constrangedor até que os dois se recobrassem daquele transe. E foi quando Greig passou seus olhos pelo corpo de Kassandra, desviando-os depois, embaraçado, para a caneca sobre a mesa, que ela descobriu por quê: estava apenas de camisola. Rapidamente, ela voltou ao quarto e colocou um vestido.
Greig continuava sentado no mesmo lugar.
― Perdoe-me a falta de decoro - ela murmurou ao passar por Greig, que meneou a cabeça em resposta. - Nem percebi que estava de...
― Eu lhe devo desculpas, fiquei observando-a ao invés de me mostrar aqui.
― Não se desculpe, não é preciso. Não foi nada demais.
― Pode não ser nada demais de onde a senhora vem, senhora Crabbe, mas por aqui importa muito - ele foi direto e sério.
― O senhor sente falta dela, não é mesmo? - a pergunta pegou Greig desprevenido, desarmando-o por completo.
Ele se pôs de pé e fez menção em sair da cozinha quando ela desabafou:
― Perdoe-me novamente, não foi minha intenção...
Mas Greig a interrompeu.
― Juro que pensei mal de todos os ingleses depois de conhecer Gilligan,
― O senhor não deixa de ter certa razão.
― A senhora não é má pessoa - afirmou como se a conhecesse bem.
― É o que pensa de mim? Mesmo sabendo que escondo meu passado?
― Então o esconde? Acreditei que não se lembrava dele - confessou. Em seguida sorriu gentilmente. - É justamente por não querer relembrar más memórias que não falo do passado.
― Mas não tem curiosidade em saber de onde vim, porque estou aqui ou quem me feriu, deixando-me no estado em que me encontrou?
― Bem, curiosidades todos temos - ele foi sincero -, senhora Crabbe, mas respeito ao tocar em certos assuntos é primordial.
― Eu fugi - respondeu ela sentando diante de Greig, sem que ele fizesse a pergunta que estava na mente há muito tempo.
― Senhora, por favor...
― Fugi de meu marido, dos amigos dele, da sociedade na qual vivíamos.
Greig desviou o olhar para o lado oposto quando ela o enfrentou com firmeza.
― Não tenho filhos e não tive amor, somente incertezas e desapontamentos.
― Quem não as têm, senhora? - Greig parecia decepcionado com o que ouvira.
― Uma grande ironia, não é? Vir parar justamente na casa de um homem cuja esposa fugiu também...
Greig pareceu não gostar do trocadilho porque levantou e deu as costas a Kassandra, tomando a direção da varanda sem lhe dar satisfações.
― Gostaria que o senhor não pensasse mal de mim - disse ao segui-lo para fora da cozinha.
― E o que importa para a senhora o que penso? Não sou ninguém - rebateu com certo escárnio. Kassandra não se abalou, estava acostumada a lidar com aquele tipo de atitude.
― Importa que o senhor tenha sido a primeira pessoa depois que meu pai morreu a quem posso confiar a palavra.
Greig voltou a olhá-la com o cenho franzido, interessado e ao mesmo tempo desapontado pela confissão que acabara de ouvir.
― Casei-me por conveniência. Um casamento arranjado pela minha mãe. Mulher horrível - desabafou para si mesma, mas sua voz soou alta. Greig se surpreendeu com a sinceridade. - E como não poderia deixar de ser, foi um fiasco, um fracasso. O casamento foi uma piada.
― Uma... piada? - ele quis saber mais.
― Meu marido não é um homem de palavra. É desleal, mesquinho, traiçoeiro. E ser um grande bajulador de seu mestre é o que o torna mais fútil do que todos esses adjetivos juntos. Fui forçada a viver na casa desse homem, submetendo-me às vontades e a caprichos.
― Mas era seu marido, afinal de contas...
― Não, não. Morávamos na casa do mestre dele - ela corrigiu, pois Greig não tinha entendido a frase -, o mestre de meu marido mandava em nós como se fosse dono de nossas vidas.
Kassandra percebeu que falara demais, o homem parecia não entender onde ela queria chegar.
― A vida com Crabbe não era deveras má, eu podia dominá-lo, sozinho era... - no entanto, ela parou de falar, percebeu que mentir não era mais prioridade. - Não - riu. - Não era fácil conviver com ele. Nunca é fácil conviver com quem não nos damos bem.
― Era inevitável casar com esse homem?
Kassandra riu novamente, pareceu debochar de si mesma.
― Outra ironia. Tudo o que um pai poderia fazer por uma filha meu pai me fez por mim, exceto a coisa mais preciosa que uma jovem poderia querer: casar-se por amor.
Greig não pareceu muito convencido, mas para Kassandra não era uma questão de poder ou não convencer. Era apenas um desabafo.
― Eu não pude tolerar mais certas atitudes, as coisas estavam seguindo um rumo muito insólito...
― Então foi... ele... seu marido quem... - Greig apontou para os braços de Kassandra, referia-se aos ferimentos que ela tinha quando a encontrara.
― Realmente não posso lhe afirmar - mentiu descarada ao lhe dar as costas -, não faço idéia. - Ouve silêncio antes de ela continuar. - Mesmo que tivesse filhos de Crabbe eu teria fugido de casa, muito embora os tivesse trazido comigo. Porque... vejo ao olhar dentro dos olhos de seu filho Elliott que eu não teria coragem de abandonar uma criatura tão indefesa e cheia de amor. - Ela fechou os olhos, ajeitando o vestido que nem amassado estava, e uma lágrima o molhou. Greig correu a ponta dos dedos pelo corrimão da varanda como se verificasse o pó que havia neles.
― Se a senhora deseja ficar na cidade, no hotel de Gilligan, não irei me importar.
Kassandra mordeu o lábio e desviou o olhar para longe, um cavalo passava correndo, levantando poeira. Sim, a verdade causava aquele tipo de estrago e sempre vinha acompanhada pela dor.
― Mas se não se importa realmente com a simplicidade de minha casa, sou honesto em lhe dizer, prefiro que permaneça aqui.
O sorriso de Kassandra foi pleno, como há muito não tinha sido. Ela mesma não fazia idéia do porquê de sentir tanta felicidade, estava entre trouxas, porém não se importava mais com esse detalhe. Vivia com o mínimo de luxo e pela primeira vez na vida se deu conta de que toda aquela suntuosidade não era necessária para se viver com alegria.
Greig sorriu ao perceber a felicidade no rosto da moça e viu Kassandra corar quando percebeu que estava sendo observada.

Compartilhe!

anúncio

Comentários (0)

Não há comentários. Seja o primeiro!
Você precisa estar logado para comentar. Faça Login.