Capítulo 9
— Treze — resmungou Harry.
— Como? — Hermione parou de lustrar a antiga cômoda de mogno e olhou por sobre o ombro. Sorriu com o que viu. Largado na cama, o grande campeão contava cuida¬dosamente treze moedas. Junto dele, James, de pernas cruzadas, exibia expressão triunfante no rostinho.
— Esse camaradinha ganhou treze das minhas moedas con¬quistadas com muito suor. — Harry bateu na coxa, falsamente de¬solado. — Treze. Deve ser má sorte. Posso pegar outro resfriado.
Sofrendo de uma gripe fraca de verão, vestia apenas um short estampado com chifres de touro. Roupa que o deixava irresistível, segundo ele.
Com ou sem gripe, o corpo desnudo elevava a temperatura de Hermione. Cuidar do homem durante a enfermidade testara sua força de vontade ao limite. Quando protestou por causa dos trajes sumários, Harry ergueu o sobrolho repetidamente, lembran¬do-a de que estavam, afinal, casados, e que ela era bem-vinda para juntar-se a ele na cama enorme sempre que quisesse. A única coisa que a mantinha sã… e longe daquela cama… era caçoar, rebater cada insinuação.
— Se está mesmo sem sorte, vai ganhar uma bolha bem no… — Ela ergueu o sobrolho, deixando que ele completasse a su¬gestão com a própria imaginação.
— Ora, Hermione Jane, estou chocado. — Ele riu, contrariando a afirmação.
Ela lhe atirou uma toalha.
— Eu ia dizer nariz.
— E arruinar esse meu belo rosto? — Harry lançou um olhar de falso medo para James. — Sua mãe é cruel, sabia?
— Ela cuidou muito bem de mim quando tive "catapola" — James mantinha a mão de cartas enquanto empilhava suas moe¬dinhas e não prestava muita atenção na conversa dos adultos. Claramente já decidira que Harry era um herói digno de sua aten¬ção. — Quer brincar de novo?
Suspirando exageradamente, Harry assentiu.
— Por que não? Não podemos brincar lá fora. A enfermeira Catraca não vai permitir.
— Amanhã. — Hermione aplicou mais uma camada de óleo de peroba na cômoda e lustrou. — Não queremos que desmaie nesse calor após uma doença tão séria.
Harry riu, o sorriso brilhante contra a pele morena. Aproveita¬ra-se ao máximo da febre, deixando Hermione mimá-lo. O tempo todo, mirando-a com seu olhar sugestivo, abrindo buracos na parede protetora que ela construíra com tanto cuidado.
— Não se preocupe, Harry. Vai melhorar logo. — James, aben¬çoado fosse, acampara no quarto de Harry e se esforçava para dis¬trair seu novo amigão.
— Ele está melhor — insistiu Hermione. — Qualquer um tão relaxado já devia estar quase bom. Se estivesse realmente doen¬te, ficaria deitado como um morto.
James riu. Harry gemeu.
— Má. Ela é má, eu lhe digo.
James riu de novo.
— Sim, mas eu a amo. Você não?
Harry fitou-a por sobre a mão de cartas e deu uma piscadela.
— Claro que sim, amigão.
Hermione sentiu uma onda de felicidade invadir-lhe o corpo. Des¬de o dia no riacho, de onde Harry trouxera James para casa alheio ao próprio estado febril, não deixava de pensar nele. Harry colocara o bem-estar do menino acima do próprio e então pagara caro por isso, sofrendo mais com a gripe do que deveria. E o trabalho na fazenda mostrava sua dedicação exclusiva ao novo lar. Potter parecia realmente determinado a se estabelecer e deixar os rodeios para trás.
Harry mudara realmente? Ele falava a sério ao insistir em que podiam fazer dar certo? Seria realmente possível eliminar a mágoa e a raiva que nutria havia tanto? Amava-o, mas podia confiar nele? Podia confiar em si mesma para decidir?
Hermione queria muito confiar. Mas não podia se esquecer de que um dia dera tudo àquele homem, só para ver-se sozinha e grávida, enquanto ele já se engraçava com Shannon Sullivan.
Mas ele não sabia sobre o bebê, observou uma voz interior. Tudo teria sido diferente se tivesse lhe contado?
A pergunta não tinha resposta. Ambos fizeram o que fizeram e não havia volta.
Com o pano e o frasco de óleo de peroba debaixo do braço, Hermione pegou os lençóis usados do pé da cama e dirigiu-se à porta. Tivera uma dose excessiva do corpo nu para uma manhã.
— Vocês dois, façam companhia um ao outro. Quero fazer a faxina enquanto estão longe de mim.
Harry ergueu a cabeça, deixando um pouco a análise de suas cartas coloridas.
— Não precisa se incomodar em limpar o escritório. Eu mes¬mo faço isso. Está muito bagunçado lá, não se preocupe.
Algo no tom e na forma como evitou seu olhar fez Hermione de¬ter-se. Ela o fitou interrogativa por um segundo antes de se voltar. O que Potter estava escondendo?
Harry deixou que James ganhasse mais duas vezes antes de de¬cidir que não queria mais se fingir de doente. Após a crise de calafrios três dias antes, já se sentia melhor, mas gostara da atenção de Hermione, do toque das mãos em sua pele, de como ela olhava para ele, do perfume doce, de vê-la andando de short. Céus, se não estivesse com febre, teria ficado por causa dela. Ela o deixava louco de desejo, e ele não podia suportar mais nem um minuto. Um camarada ligado ao trabalho externo não podia ficar na cama para sempre… a menos que tivesse com¬panhia, claro. Lançou um olhar triste a James. O menino não era exatamente a companhia que tinha em mente.
— Amigão, o que você acha de irmos até o celeiro e ver como o seu pônei está?! — convidou Harry, em tom de conspiração.
James parecia hesitante, mas guardou as cartas na caixa e desceu da cama.
— Mamãe pode ficar brava.
— Por isso, seremos bem silenciosos. — Harry foi ao closet, pe¬gou uma calça jeans e uma camisa e as deixou na cama. Já começara a se vestir quando Hermione surgiu à porta.
— O que está fazendo?
— Opa, descobertos! — Ele lançou um olhar de soslaio a James e então voltou a atenção a Hermione. Ela estava engraçada, enrubescida e de olhos brilhantes, como se tivesse febre. O tom brincalhão desapareceu completamente.
— Está ficando doente também?
— Estou doente, sim. Cansada de ser enganada. — Ela mos¬trou uma pilha de envelopes que trazia às costas, as mãos trê¬mulas. — O que é isto?
Ela não estava doente. Estava furiosa. Harry largou a camisa que segurava.
— Eu lhe disse para ficar longe do escritório.
— O que eu não sei não me magoa? É isso o que acha?
— São apenas algumas contas, Hermione. — Contas que ele pre¬tendia pagar quando adoeceu. Contas que ele não esperava e para as quais não havia provisão.
— Eu verifiquei os livros. — Hermione cerrava os dentes, quase perdendo o controle. — Esta fazenda está tão mal financeira¬mente que podemos perdê-la.
Harry levou a mão ao rosto e suspirou, cansado. Como se safar sem quebrar a promessa feita a Pete?
— Ouça, Hermione, estou cuidando disso, está bem? Não há com o que se preocupar.
Com o temperamento dela, Harry devia saber que Hermione não se conteria por muito tempo. Ela explodiu como uma bomba atômica.
— Não me preocupar? É a vida do meu filho! Não vou ficar parada vendo você destruir tudo o que meu pai construiu.
Harry começava a se cansar do papel de vilão. Ergueu a voz.
— Deixe isso comigo, Hermione.
— Não deixo, não. — Ela cerrou os punhos e entrou no quar¬to. — Meu pobre pai crédulo. Ele se importa com você. Como pôde fazer isso com ele?
Ambos gritavam àquela altura.
— Eu me importo mais com o seu pai do que você imagina.
— Ele passou a vida inteira construindo este lugar. — Trê¬mula, ela se postou diante dele. — Ver a fazenda se afundar num mar de dívidas vai matá-lo.
Antes que pudesse se deter, Harry rebateu em alto e bom tom:
— São dívidas dele.
Hermione recuou, a raiva se aplacando.
— Meu pai nunca contrairia tantas dívidas — murmurou, incrédula.
— Encare os fatos, Hermione. Ninguém é perfeito. Você comete erros, ele comete erros. Raios, eu cometi erros! Se não estivesse tão determinada a manter esse orgulho dos Granger intacto, veria que seu pai não tinha mais como manter a fazenda. Ele perdeu o controle da situação. Precisava de ajuda.
— E está tentando me dizer que você foi essa ajuda? Que assumiu a fazenda por causa de seu bom coração?
— Sim! — Harry agarrou-lhe os ombros, querendo que ela visse a verdade. Querendo que ela parasse de pensar o pior dele. Não era como o pai. Hermione não enxergava aquilo?
Os dois adultos estavam tão tomados pelas fortes emoções que se esqueceram do garotinho junto à cama. Mas, quando Harry levou as mãos a Hermione, James reagiu com braços e pernas.
— Deixe minha mãe em paz! — gritou ele, chutando e es¬murrando com toda a força de seus cinco anos. — Não bata nela! Não bata nela!
Os adultos congelaram. Hermione empalideceu e ajoelhou-se ao lado da criança agitada.
— Pare, James. Pare já! Harry não vai me bater.
— Isso mesmo, mocinho. — Harry esqueceu-se completamente da raiva ao ver o medo da criança. Abraçou o menino. — Um caubói não bate na mulher. Ele cuida dela.
— Meu pai batia nela…
Hermione prendeu a respiração. Harry fitou-a e viu a verdade.
Uma vez, levara coice de um touro. A pata resvalara em seu queixo enquanto aterrissava na arena. O ar lhe fugira dos pul¬mões. Esforçava-se, mas não conseguia respirar. Sentia-se da mesma forma naquele instante.
Estavam ali ajoelhados, calados e atônitos, o horror da decla¬ração do menino pulsando entre eles. Harry sentiu uma combinação de raiva, dor e culpa. Tinha de saber o que acontecera… e por que ela permitira. Mas não com o menino ouvindo, assustado.
Harry equilibrou a criança trêmula no joelho.
— James. — Ergueu o queixo da criança, que o avaliava com seus grandes olhos castanhos. — Sua mãe e eu precisamos con¬versar sobre alguns assuntos. Por que não vai lá no vovô um pouco?
James parecia hesitar.
— Não vão mais gritar?
— Tem a minha palavra de honra de caubói. — Harry alisou os cabelos loiros. — Não vamos mais gritar.
— Não vai bater nela, vai?
Harry gemeu e beijou o menino na testa. A pergunta era como uma facada.
— Prometo que nunca vou bater na sua mãe.
A criança se acalmou.
Hermione entrou em ação.
— Muito bem, querido. Harry nunca, jamais machucaria ne¬nhum de nós. — Pálida e trêmula, abraçou e beijou o filho no mesmo lugar que Harry beijara antes. — Diga ao vovô que estamos conversando e que iremos pegá-lo mais tarde.
Hermione pegou o telefone ao lado da cama e ligou para Pete, avisando que James estava a caminho. Desligou, mas permaneceu onde estava, fitando a parede branca texturizada.
Engolindo em seco, Harry a tocou no braço e fez se voltar gen¬tilmente, como só ele sabia fazer.
— Seu marido batia em você?
Hermione arregalou os olhos, as lágrimas ameaçando brotar.
— James era tão pequeno… Pensei que fosse novo demais para se lembrar. — As lágrimas rolaram pelo rosto. — Eu não queria que ele se lembrasse.
— Oh, Hermione. Eu lamento. Lamento tanto… — Incapaz de conter a onda de emoções, Harry abraçou-a com força. Sentia culpa e remorso. — Se eu não tivesse sido tão idiota… Se não a tivesse deixado sozinha…
As lágrimas lhe umedeceram a pele, e sentiu que o coração ia explodir. A única mulher que já amara sofrera nas mãos de um cafajeste por sua causa. Como podia viver sabendo que fa¬lhara completamente com ela? Não admirava ela ter medo do amor. Ele fora tão egoísta e pouco confiável quanto o pai.
— Você o amava? Por isso suportou?
— Não. Não. — Hermione meneou a cabeça. — Nunca o amei. Nunca.
— Então, por quê?
— James — confessou ela, sofrida. — Eu me casei com ele por causa de James.
A declaração confirmava o medo de Harry… de que ela já estava grávida ao se casar com Josh Riddley. A verdade machucava tanto quanto ele imaginava. Ao ver-se sozinha, Hermione buscara conforto no primeiro homem que oferecera.
— Eu nunca a deixaria para um homem como ele. — Harry tomou-lhe o rosto e enxugou as lágrimas com beijos. — Por que não esperou por mim?
Ela empalideceu e tentou se desvencilhar, mas Harry a segurou pelos ombros.
— Por quê? — indagou ele.
— Shannon Sullivan — revelou Hermione.
— Shannon Sullivan? — Ele piscou, confuso. — O que ela tem a ver com você e eu?
— O que vocês dois fizeram… — Hermione mordiscou o lábio e ergueu o queixo. Tinha o nariz vermelho e os olhos úmidos, mas o orgulho dos Granger se impunha. — Menos de um mês após sua partida, deparei com ela. Shannon não podia esperar para me contar sobre a sua moradia… — As lágrimas aumentaram.
Harry franziu o cenho. Tinha a vaga lembrança de dançar com a loira chamativa que freqüentava todos os lugares favoritos do pes¬soal de rodeio e acompanhava qualquer caubói que a convidasse.
— Nunca houve nada entre mim e Shannon.
Hermione meneou a cabeça, incrédula. Mais lágrimas brotaram. Embora ela as enxugasse com as costas das mãos, continuavam rolando.
— Ela andava atrás de você quando estávamos na escola, odiando-me por me ver no caminho. Quando você partiu, ela se adiantou. Ela mesma me disse.
Hermione tentou se desvencilhar, mas Harry a prendia. Precisava fazê-la entender. Fitou-a com toda a sinceridade.
— Ela mentiu, Hermione. Shannon era uma coelhinha de rodeio, mas nunca se firmou com nenhum caubói.
— Ela queria você.
— Eu estava construindo uma carreira nos rodeios, não bus¬cando mulheres. Por que não acredita nisso? — Harry cerrou os dentes. — Não sou como o meu pai. Nunca traí você com Shan¬non Sullivan. Nunca!
Hermione ficou tensa. A expressão era de horror e arrependimento.
— Quer dizer… Eu não tinha de me casar com Josh?
Harry sentiu o resto do coração se desfazer. Ela sofrera tanto.
— Ah, meu bem… Como posso compensá-la? — Com ternura, beijou-a no rosto, nos olhos. — Deixe-me compensá-la.
Harry queria curar as mágoas do único modo que sabia. Beijou-a desesperadamente. Rendendo-se, Hermione apertou o corpo contra o dele, e Harry perdeu o controle que guardava para manter-se gentil. Cada célula de seu corpo clamava por aquela mulher que era seu coração e sua alma. Sentia o coração disparado. As semanas de contenção cobravam seu preço.
Hermione acariciou-lhe as costas e o tórax desnudos com suas mãos sedosas, até ele acreditar que derreteria. Entre gemidos, conduziu-a até a cama.
— Nunca deixei de desejá-la — sussurrou. — A você e mais ninguém.
Harry esperara tanto por aquele momento, em que Hermione o acei¬taria de volta. Ela se deitou na cama. Harry afastou-se e fitou o semblante enrubescido. Desejava-a naquele momento… Hermione tinha de entender… ele nunca teria ficado longe enquanto outro homem a magoava.
— Eu teria voltado se soubesse sobre o bebê.
A mudança em Hermione foi instantânea. Ela congelou. Embora seus corações batessem muito próximos, ela não respondia mais aos beijos. Hermione respirava entrecortadamente, os olhos arrega¬lados devido a outra emoção que não a paixão. Ela o empurrou e interrompeu o contato entre seus corpos.
— Hermione? — O que ele fizera de errado? O que dissera? Vas¬culhou a memória, mas não encontrou nada. Estava tão con¬tente por tê-la nos braços novamente que não imaginava por que ela se aborrecera. Tentou se aproximar de novo, mas ela se afastou.
— Eu não devia ter feito aquilo. — Ela ergueu o queixo. Harry se compadecia com as lágrimas que ameaçavam verter.
Antes que ele protestasse, ela saiu do quarto, deixando ape¬nas seu aroma impresso no corpo dele. Atônito, ele ouviu a porta dos fundos se fechar.
O que estava acontecendo? Num minuto, ela respondia como uma mulher apaixonada, a seguir, fugia dele. Seus beijos eram tão repulsivos? Fora bruto demais?
Harry deu um tapa na testa quando percebeu. Ela acabara de confessar como Riddley tomara seu amor e então abusara dela. E o que ele fizera em resposta? Agarrara-a como um maníaco sexual necessitado.
— Está ficando louco, Potter — resmungou, meneando a cabeça. — A mulher precisa de ternura e romantismo, mas você só pensa em pular em cima dela.
Chutou o pé da cama. Sentiu dor no pé e saltitou, contente com a punição. Decepcionara Hermione. De novo. Por mais que ten¬tasse, os genes de seu pai continuavam se manifestando a todo instante.
Comentários (0)
Não há comentários. Seja o primeiro!