Capítulo 4



Hermione aninhou-se mais no travesseiro e sorriu, saboreando o refrescante aroma matinal que invadia o quarto pela janela entreaberta. O ar estava frio, a cama, quente, e a manhã, perfumada e alegrada pelo canto dos pássaros. Não se lembrava de quando dormira tão bem, um feito e tanto, considerando a adrenalina que circulara em suas veias no dia anterior.
Imaginara que ficaria acordada parte da noite, pensando em Harry Potter, no beijo que ele lhe dera, em sua própria reação à intimidade, na capacidade daquele homem de deixá-la furiosa e delirante ao mesmo tempo. Em vez disso, após uma caneca de chocolate quente, abandonara-se na cama familiar e dormira sonoramente, sonhando com passagens maravilhosas e felizes de sua vida que pairavam nos limites da consciência, fora do alcance.
Bocejando e espreguiçando-se, Hermione sentou-se e contemplou carinhosa o quarto que definia a garota que fora um dia.
Permanecia na parede um velho pôster de Luke Perry como James Frost no filme Oito Segundos, as bordas amareladas e encurvadas. Ao lado, uma flâmula da universidade em que es¬tudara um ano antes da morte da mãe. Abaixo, fitas cassete, uma miscelânea de artistas da música country já esquecidos, empilhadas na cômoda. Junto delas, uma pequena fotografia sua, montada em Taffy, cercada pela mãe, pelo pai e por Harry, na final nacional de rodeios categoria juvenil, todos orgulhosos por ela ter vencido a prova dos três tambores. Eram as lem¬branças às quais se agarrara naqueles primeiros dias horríveis e solitários em Oklahoma CiHarry.
O quarto de sua infância era como um cobertor de segurança.
Gostaria de ficar ali, entre as paredes azul-claro desbotadas, escondida dos problemas que a aguardavam além da porta. Mas não podia. O futuro de James estava em jogo, e só isso a motivava a entrar debaixo do chuveiro.
Pouco depois, ao vestir calça jeans e camiseta branca com os dizeres: "Toda garota precisa de um caubói… alguém tem de limpar o estábulo", Hermione revia suas opções. Argumentar com Harry e Pete fora inútil. O único recurso sensato estava a quinze quilômetros ao sul na cidade de Bootlick. O advogado James Culpepper não era tão astuto quanto os colegas da cidade gran¬de, mas atendia às necessidades da região desde que Hermione se lembrava. Pelo menos, ele lhe diria se havia uma forma legal de recuperar a Tilted T.
Ao ouvir a porta de tela, Harry soube que Hermione acordara. Estava na caçamba da caminhonete segurando uma corda guia enquan¬to um dos empregados ajustava a placa no local adequado.
Harry carregava aquela placa na caminhonete desde sua pri¬meira grande vitória no circuito de rodeios, uma lembrança concreta de que um dia criaria raízes e se estabeleceria.
Ao ver Hermione caminhando determinada em sua direção, cha¬mou o ajudante.
— Temos problemas.
Matt Jacobs era um jovem caubói magro que trabalhava esporadicamente na Tilted T havia anos. Com um sorriso torto, ele olhou para a escada montada sobre a caçamba da cami¬nhonete.
— Eu esperava já estar longe antes que ela aparecesse.
Harry riu.
— Covarde.
— Pode acreditar. Mulheres pequenas com olhos de fogo são mais assustadoras do que um pasto cheio de touros. Olhe para ela.
Harry olhava, sim. Na verdade, não conseguia tirar os olhos dela. E sentia a mesma excitação de quando montava em tou¬ros. Hermione aproximava-se pela estradinha de acesso gingando os braços com os pulsos cerrados, o rabinho-de-cavalo balan¬çando. Sabia o que Harry estava fazendo, o que a deixava furiosa. Com alguma ansiedade, ele amarrou a corda na caçamba e pre¬parou-se para o segundo assalto.
Matt desceu da escada, de olho na mulher que se aproximava.
— Essa briga é sua, meu caro. Vou para o celeiro. Se ainda estiver vivo quando ela acabar, chame e eu volto para ajudar.
— E se ela me matar?
— Então, ela me chama e eu atiro sua carcaça numa cova rasa.
Matt pulou ao lado da caminhonete, deu mais uma olhada em Hermione e apressou-se para o celeiro. Harry sorriu com a fuga e então se voltou para enfrentar a mulher que vinha a passos largos.
Observou-a. Ainda delicada, Hermione apresentava mais curvas do que ele se lembrava, sem barriga, os quadris preenchendo a calça jeans com perfeição. Relutante, reconheceu que ela ain¬da era a mulher mais desejável que já conhecera. Mesmo após tanto tempo, Hermione provocava todo tipo de emoções estranhas em seu íntimo.
Ela parou atrás da caminhonete e lançou-lhe um olhar fu¬rioso, as maçãs do rosto coradas. Harry reprimiu a vontade repen¬tina de rir, sabendo que ela o mataria por isso.
— O que pensa que está fazendo? — rosnou ela, ofegante, os seios subindo e descendo de forma tentadora.
Ele tentou não olhar, mas, céus, ela era sexy. Duas vezes mais sexy do que se lembrava.
Na camiseta, a figura de uma garota montada em sela. A respiração de Hermione fazia a garota subir e descer, criando todo tipo de fantasias na mente de Harry. Ele tentou controlar os pen¬samentos errantes antes que ela notasse e o agredisse.
— Aquela placa velha tinha de sair, Hermione. — Ele empurrou o chapéu para trás com o polegar e a olhou de cima. — Nem era legível.
— Fazer uma placa nova é uma coisa… — Ela o fitou com olhar cortante, atentando em seguida à nova placa pendente das vigas do portal de madeira na entrada da Tilted T. — Mas você não vai mudar o nome desta fazenda!
— Já mudei. — Ele espanou a calça jeans e se ajoelhou na caçamba para seus olhos ficarem no mesmo nível. Hermione estava tão furiosa que as pupilas haviam desaparecido, sobrando ape¬nas o rancor verde. Céus, adorava quando ela ficava assim. ,Vê-Ia naquele estado lembrava-o de como ela vivia tudo de for¬ma passional, despertando nele a vontade totalmente irracional de beijar aquela boca atrevida.
— Novo proprietário. Novo nome.
Ela bateu na lataria da caminhonete. O som metálico rever¬berou na manhã calma. Um homem mais fraco teria se assus¬tado. A verdade era que Harry também teria levado um susto, se não tivesse previsto a ação.
— O que tem contra o nome antigo? — rosnou Hermione.
— Nada. Mas é hora de mudar. Como eu disse, novo pro¬prietário, novo nome.
— Meu pai concordou com isso?
— Eu sou o novo patrão agora, Hermione. É melhor se acostumar com a idéia.
Ela fervia ao apontar para a nova placa.
— Star M. Que tipo de nome é esse?
Harry ergueu o olhar, orgulhoso da enorme estrela prateada que compusera com um largo em azul.
— M de Potter.
— Oh, entendi. — Hermione expressou o dissabor e levou as mãos aos quadris. — É sua forma de lembrar ao mundo que Harry Potter é um campeão dos rodeios, com fivelas de prata suficientes para lotar um reboque. Não podia esperar para voltar e garantir que todos soubessem que grande sucesso você se tornou, não é?
Ele jurara que não permitiria que ela o perturbasse, mas as palavras cruéis magoaram. Pretendia lhe contar a verdade, mas pensou melhor, enquanto seu bom humor se dissipava. Se Hermione queria pensar o pior dele, que pensasse. Isso não mudaria o real significado do novo nome, nem o fato de que ele controlava a Tilted T agora. Se queria aquela fazenda, ela teria de se con¬formar com sua forma de pensar.
Deu de ombros.
— Sabe o que dizem… isso é para quem pode…
— Não continuará como proprietário, se eu puder evitar. Estou a caminho de Bootlick agora mesmo para conversar com um advogado.
— O velho Culpepper? — Harry relaxou um pouco, escondendo a mágoa num sorriso preguiçoso. — Ora, Hermione, ele não pode ajudar você. Devia poupar seu tempo e a gasolina.
— Não tente me fazer mudar de idéia, Potter. O único recurso que me resta para parar essa insanidade é através da justiça!
— Humm. Posso pensar em outra forma. — Apenas para efeito, ou talvez porque as fantasias que o assolavam não de¬sapareciam, Harry ergueu um dedo e acariciou o belo rosto enru¬bescido de Hermione. — Eu esperava conversar com você sobre isso ainda hoje. Por que não vamos a Bootlick a cavalo mais tarde, para conversarmos saboreando frango frito e um pedaço da torta ta de coco de Berta Renick?
Hermione não estava mais nervosa, estava fora de si… e afastou a mão dele. A garota na estampa da camiseta passou a cavalgar mais rápido.
— Não banque o sedutor comigo, Potter. Conheço todos os seus truques, e não vão funcionar. Independente do que diga ou faça, vou consultar James Culpepper.
— Como quiser. Se precisa falar com um advogado, ele é o homem, já que providenciou todos os documentos para mim e Pete.
— Como? — Ela arregalou os olhos surpresa. — Já trataram da papelada?
— O que esperava? Que furássemos nossos mindinhos e fizéssemos um pacto de sangue? Claro que formalizamos tudo.
Hermione expressou incredulidade e impotência. De repente, Harry sentiu pena dela, e experimentou um aperto no estômago. Se não precisasse encurralá-la, teria revelado tudo na hora. Em vez disso, cerrou os dentes e se levantou. Podia lidar com a fúria de Hermione… até se divertir com isso… mas vê-la vulnerável o deixava arrasado. Não confiando em si mesmo, subiu na escada pegou o alicate no bolso traseiro e passou a prender a nova placa. Quando ousou olhar por sobre o ombro, Hermione já se afastara.
Hermione empurrou a porta dos fundos abrindo-a com mais força do que o necessário.

— Ótimo. Maravilha. O que vou fazer agora? Se a escritura foi passada legalmente e os documentos já foram enviados ao cartório nada menos que assassinato e lesões corporais poderão mudar o fato. — Pois considerava as duas opções tentadoras naquele instante. Por que… por que deixava Harry Potter perturbá-la daquela forma?
O telefone antigo de parede tocou alto.
— Alô. — atendeu, meio rude. Ofegante e impaciente, apoiou uma nádega na banqueta junto ao balcão.
— Hermione, é você? — A voz familiar na outra ponta da linha parecia confusa.
— Marietta? Oi. — Ela respirou fundo e tentou se acalmar. Não adiantava descontar na colega de apartamento, quando Harry Potter era o alvo de sua ira. Vislumbrou-o pendurado naquela placa nova pelos… pés. — O que foi?
— Más notícias.
Como se já não tivesse problemas suficientes!
Hermione agarrou o telefone. Marietta, sua sócia, amiga e colega de apartamento, era mestre em dizer as coisas pela metade.
— James está bem?
— Bem… foi por isso que telefonei.
Hermione sentiu um arrepio de pânico. Marietta era uma das poucas pessoas na terra a quem confiava o filho.
— O que aconteceu? Ele se machucou? Está doente? Fale logo, Marietta. O que aconteceu com meu filho? — Hermione ima¬ginou hospitais e ambulâncias.
— Calma, Hermione. Ele pegou catapora.
— Oh, não!
— Eu disse catapora, não peste bubônica. Mas não pode ir para a escola, e não tenho com quem deixá-lo. Com você fora, não posso me afastar da loja, de modo que terá de voltar.
A vida de repente pareceu mais complicada. Seu filho era a pessoa mais importante do mundo, e precisava dela: Mas, se voltasse para Oklahoma CiHarry naquele momento, James nunca teria o que lhe pertencia de direito.
— O que vou fazer, Marietta? — lamentou Hermione, pressio¬nando a mão na testa. — Se eu partir agora, Potter pode pensar em dividir a fazenda em lotes e transformá-la num acam¬pamento para trailers. Ele já mudou o nome da propriedade e colocou meu pai morando numa lata velha no quintal.
Que importava que Pete estivesse tão feliz quanto um gara¬nhão num haras? Potter não podia tê-lo desalojado de sua própria casa.
— Se é realmente tão grave, é melhor você permanecer por aí até a situação se definir. Eu levo James.
Hermione sentiu o coração estacar.
— Não posso trazer meu filho para cá agora! — apavorou-se. Não queria James no mesmo Estado em que Harry Potter se encontrava.
— Então, volte para casa e esqueça essa fazenda. Não sei o que faria sem você, de qualquer forma. Desde que se tornou minha sócia e gerente de negócios na loja, nossas vendas au¬mentaram fabulosamente.
Hermione imaginou a amiga ruiva andando de um lado a outro enquanto lhe explicava a situação. Sem parar quieta um ins¬tante, Marietta estava sempre dobrando peças de roupas, pJamesjando uma nova vitrine e preparando o jantar, enquanto ana¬lisava a vida de Hermione, tudo ao mesmo tempo.
— Construiu uma vida decente aqui, Hermione. Por que desistir disso quando os riscos são tão grandes? Diga àquele peão sór¬dido que pode ficar com a fazenda. Volte para Oklahoma CiHarry, onde você e James jamais vão deparar com ele novamente.
— Não. Esta fazenda pertence a James. Que tipo de mãe eu seria se permitisse que ele a perdesse?
Marietta suspirou desanimada.
— Não pode ter as duas coisas. Se recuperar a fazenda, James um dia terá de morar aí, de qualquer forma. Essa é a idéia, não é? Então, se é isso o que realmente quer, vá em frente, garota. Terá de tomar uma decisão, mais cedo ou mais tarde, então, por que não acaba logo com isso?
Hermione sentiu uma pontada de medo. Era o que queria, o que sempre sonhara, mas…
— E se alguém descobrir?
— Pelo que me disse, James não se parece nada com o pai. — Exceto pelos olhos… E o nariz, e a boca. Mais o jeito de inclinar a cabeça antes de rir. Detalhes que nunca percebera, até Harry voltar à sua vida.
— Então, ninguém vai desconfiar de nada. O próprio avô de James não notou, então, por que seria diferente com Potter? Com a catapora, ainda por cima, nem você será capaz de reconhecê-lo.
Hermione contemplou a cozinha familiar, o som da linha telefô¬nica zunindo em seu ouvido. Mesmo com a mobília escassa de Harry preenchendo o interior, a casa da fazenda era seu lar, como nenhum outro lugar jamais seria. Dava-lhe a sensação de per¬tencer, de segurança, que também queria para o filho. Toda criança merecia fortes raízes familiares.
Conseguiria evitar que Pete e Harry descobrissem a verdade sobre James enquanto lutava para recuperar a fazenda? A idéia a assustava mais do que queria admitir… entretanto, o que mais poderia fazer?
Marietta fazia tudo parecer tão simples, e talvez tivesse ra¬zão. Ninguém desconfiava de que James era filho de outro que não seu ex-marido. As pessoas geralmente viam o que espera¬vam ver, e elas esperavam ver o filho de Josh Riddley, não de Harry Potter. Desde que ela mantivesse a charada, ninguém nunca saberia.
— Hermione… — Marietta interrompeu seus pensamentos. — Há outra coisa que preciso contar.
— Já tive surpresas demais para um dia, mas diga logo. Por favor.
— Josh apareceu na loja fazendo as ameaças costumeiras.
Hermione sentiu o coração se apertar de medo.
— O que ele disse?
— O mesmo de sempre. Que o mundo dos rodeios é pequeno. Que mais cedo ou mais tarde vai pegá-la sozinha e você vai desejar tê-lo tratado melhor. Aquele tipo de bobagem.
— Ele ainda quer me castigar por eu ter partido.
Embora não se vissem havia quase três anos, o ex-marido aparecia sempre para aborrecê-la. Um fanfarrão de rodeios, via¬java seguindo o circuito, ganhando apenas o suficiente para continuar no jogo, nunca chegando às finais. Perder era sua desculpa favorita para beber. Ele não a queria, ou a James, mas tinha alguma necessidade perversa de atormentá-los. Somente ao assinar um termo em que se comprometia a nunca pedir pensão para o filho, conseguiu que ele abrisse mão de todos os direitos sobre James.
Ter Josh Riddley de volta a Oklahoma CiHarry era pior do que ter o filho na mesma cidade que Harry.
Hermione respirou fundo.
— Por favor, comece a arrumar os pertences de James. Estou a caminho.

Harry passou a manga no rosto para retirar o pó que o carro de Hermione levantara ao passar pela caminhonete e a nova placa.
Ela nem o olhara.
— Aonde ela vai com tanta pressa? — indagou Matt, do alto da escada.
Harry sentiu um aperto no coração ao vê-la se afastar em seu automóvel compacto.
— Provavelmente, voltando para Oklahoma CiHarry.
— Ela não ficou muito, não é?
Harry disfarçou a decepção enquanto reunia as ferramentas es¬palhadas na caçamba da caminhonete. Estragara tudo. Se Hermione estava mesmo indo embora, ele acabara com a única chance que tinha para cancelar suas velhas dívidas e quebrar a praga de Sam Potter.
Sem perceber, chutou um rolo de arame farpado.

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