Capítulo 3



Harry parou diante do curral, cruzou os braços so¬bre a cerca, apoiou o pé na viga inferior e con¬templou a fazenda na escuridão. Três sapos iniciaram a canto¬ria do acasalamento, competindo com os gafanhotos, e em al¬gum lugar uma égua relinchou chamando o filhote. A lua cres¬cente derramava sua luz sobre as construções, animais e veí¬culos, mas tudo parecia sombrio. O céu parecia uma cortina de veludo negro bordado com diamantes.
Olhou para a casa e viu a luz da cozinha se acender. Hermione, sem dúvida. Seu estômago roncou, lembrando-o de que não jan¬tara ainda, e já estava na hora de se recolher. Mas, quando Hermione saíra furiosa do estábulo, achara melhor deixá-la se acal¬mar um pouco.
Não pretendera beijá-la, mas não podia voltar no tempo. Nem queria, para dizer a verdade. Algo lhe acontecera ao sentir as macias curvas femininas sob seu corpo. Desejo, imaginava. Qual¬quer caubói com um pingo de testosterona desejaria uma mu¬lher como Hermione. Mas houvera algo mais. Algo que não conseguia identificar. Franziu o cenho tentando definir a emoção indes¬critível que Hermione lhe causava. Nostalgia. Saudade. Ele e Hermione tinham uma história, à parte o distanciamento entre ambos agora… um distanciamento tão grande que precisariam viajar de avião para vencê-lo.
Uma porta bateu, e uma voz masculina se propagou no ar noturno. Pete Granger. Mas não era possível discernir as palavras.
Só quando ouviu passos, percebeu que Pete se aproximava. Iluminado apenas pelo luar, o velho fazendeiro parecia um es¬pectro a mancar uma perna.
— E o joelho de novo? — indagou Harry, atencioso.
Pete dispensou a pergunta.
— Ah, você sabe como é…
Sim, Harry sabia. Sabia que ser pisoteado e lançado da sela para longe durante anos a fio cobrava seu preço. A idade só fazia a dor aumentar.
— Hermione Jane o expulsou da sua própria casa? — indagou Pete, deixando claro que não estava preocupado com as dores. Harry apreciou o cavalo que passeava dentro do curral.
— Ela está muito zangada com tudo isso.
— Eu disse que ela ficaria. — Pete tirou uma latinha de fumo do bolso, pegou uma pitada e guardou-a atrás do lábio inferior.
Harry baixou o pé e voltou-se para encarar o velho amigo.
— O que aconteceu com ela, Pete? É a mesma, mas, ao mes¬mo tempo, não é, se entende o que quero dizer.
— Entendo, sim. Defensiva. As vezes, acho que foi por causa da morte tão prematura da mãe. Em outras, acho que foi por sua causa.
— Por minha causa? — Harry surpreendeu-se. — Não foi co¬migo que ela se casou. — Era engraçado como o fato ainda o perturbava.
— Foi com Josh — resmungou Pete.
Harry estreitou o olhar na escuridão, tentando ler a expressão do homem.
— Não gostava dele?
— Nunca o conheci muito bem, mas sempre senti algo errado entre os dois. Nunca achei que Hermione seria feliz com ele.
Harry ponderou. Se não amava Josh, por que Hermione o desposara? Por que tivera um filho com ele? A resposta óbvia magoava mais do que gostaria de admitir. Não era a primeira vez que imaginava se Hermione se casara e engravidara logo depois de ele partir para os rodeios.
— Acha que ela vai ficar? — Harry olhou para a casa. A luz da cozinha permanecia acesa, e via-se a silhueta de Hermione diante da janela. Estreitou o olhar para focalizar. — E lutar pela fa¬zenda, quero dizer?
— Não. — Pete apoiou o cotovelo na cerca, aliviando o peso do joelho ruim. — Ela adora o filho. Não agüenta ficar mais que um dia ou dois longe dele.
— Por que não o trouxe desta vez?
— O garoto está no jardim-de-infância. Mas Hermione não gosta de deixá-lo por muito tempo, nem com a colega de apartamento. Vai embora logo, pode apostar.
Harry afagou o focinho do cavalo que se aproximara do outro lado da cerca. Por sobre a cabeça do animal, lançou um olhar ao velho amigo. Os dedos de Pete, um dia tão hábeis com a corda, mostravam-se curvos e tortos junto aos nós. Seus cabelos, antes castanho-escuros, agora brilhavam como neve ao luar. Com algum pesar, Harry percebeu que o mentor envelhecia. Era compreensível que desejasse outra pessoa se responsabilizando pela Tilted T.
Imaginou se Hermione, em suas visitas apressadas, notara. Não. Caso contrário, já teria proporcionado ao pai aquilo que ele mais queria. Não percebia que o velho caubói sentia falta de uma família? Uma família permanente, não uma filha e um neto que apareciam só de vez em quando.
— Gostaria que ela morasse mais perto, não é, Pete?
— Admito que sim. — O fumo surgiu entre os lábios enquan¬to ele falava. — Há muito tempo, Hermione me prometeu um neto. Acha que me decepcionou ao nascer, sendo menina. Nem ima¬gina que eu não trocaria um fio dos cabelos dela por uma casa cheia de garotos, mas, agora que me deu um neto, vivem os dois em Oklahoma, enquanto eu continuo aqui no Texas. Me¬ninos precisam da influência de um homem, sabe…
— E esse Riddley? Ele não passa tempo com o garoto?
— Não. — Pete meneou a cabeça. — Não sei o que aconteceu entre Josh e Hermione, mas a verdade é que ela ficou muito amarga com relação a ele. Não o quer nem perto do menino.
— Já perguntou o que aconteceu?
— Achei que, se ela quisesse que eu soubesse, contaria.
Harry afagou o cavalo enquanto pensava nas revelações de Pete. Concordava em que meninos precisavam de influência mascu¬lina. Pete desempenhara tal papel em sua própria vida, um pai substituto nos conturbados anos de adolescência. Sem ele, po¬deria ter ficado ainda mais parecido com o verdadeiro pai.
Sam Potter enganara a esposa por muito tempo. Quando Harry tinha treze anos, partira para um rodeio em Odessa na com¬panhia da amiga mais recente e nunca mais dera notícia. Em Bootlick, esperava-se que Harry seguisse o mesmo caminho, va¬lendo-se da boa aparência e do charme natural.
— O sangue dirá — costumavam comentar, até para o pró¬prio Harry ouvir.
Cônscia de que o filho precisava da influência de um homem de verdade, sua mãe pedira a Pete Granger que o empregasse na Tilted T, onde Harry aprendera a concentrar sua energia de adolescente cavalgando e cuidando dos animais.
Apaixonara-se pela filha de Pete também, tomara sua ino¬cência e então a abandonara. Tamanha deslealdade, tanto com Pete quanto com Hermione, ainda o assombrava, aumentando seu temor de que o sangue Potter em suas veias acabaria falando mais alto.
Sim, Harry devia ao velho Pete mais do que um lugar para morar e um emprego de capataz.
A semente de uma idéia começou a se formar…
Pete queria a filha e o neto a seu lado. Hermione queria a fazenda para o filho. E ele queria descobrir se era homem suficiente para se estabelecer. Talvez houvesse uma maneira de atender a todas essas necessidades.
— Pete, e se pensássemos num jeito de você e Hermione terem o que querem? E talvez eu também?
O velho franziu o cenho.
— Não está pensando em contar a ela sobre as dívidas da fazenda, está? Fizemos um acordo…
— Não, nada disso. Gostaria de apostar para ver o quanto Hermione deseja esta fazenda para o filho.
— O que tem em mente?
— Uma proposta que a forçará a trazer James para morar aqui.
— Oh, Hermione Jane não gosta de ser forçada a nada. Vai dei¬xá-la zangada, posso adiantar.
Harry riu, de repente, ansioso pelo próximo encontro com a ner¬vosa Hermione.
— Vou correr o risco.
— Então, boa sorte, rapaz. Ela ainda está bem azeda com toda esta história. — Pete riu e bateu na cerca de ferro. O cavalo recuou ao som metálico, indo para o fundo do curral. — Bem, vou para casa. — Pete apertou o ombro de Harry. — Sally fez torta de cereja e acho que mais uma porção antes de dormir não vai me matar. Venha comer uma fatia.
— Adoraria, mas fica para outra vez, Pete. Obrigado, mesmo assim.
Pete desapareceu na escuridão e Harry retomou sua posição junto à cerca, agora contemplando o céu muito escuro. Localizou a Ursa Maior e então se concentrou na estrela Polar, mergu¬lhando em lembranças.
Observar as estrelas era seu passatempo favorito com Hermione. Entre outras coisas. Sorriu. Eram jovens tolos, apaixonados e lamentavelmente românticos. Lembrava-se de ficar deitado na manta junto ao riacho após fazerem amor. A poucos metros dali, os cavalos vagavam pela forração de trevos, e o coaxar dos sapos nunca parecera tão romântico. O luar iluminava o rosto de Hermione, cujos olhos verdes cintilavam enquanto ela sonhava em voz alta, pJamesjando o futuro.
— Veja, é a nossa estrela — anunciava ela, apontando para o céu.
— Faça um desejo.
— Você já sabe o que eu desejo. — Ela rolou para junto dele, as palavras uma carícia. — Quero que nos casemos e tenhamos um filhinho com os seus olhos castanhos e pele morena.
Ele a beijava na ponta do nariz.
— E vamos chamá-lo de James.
— Como nosso caubói favorito, James Frost.
E ela assim fizera. Batizara o filho com o nome que haviam escolhido anos antes, sob as estrelas e a lua exatamente como estavam agora. Por isso mesmo, a traição feria como uma cen¬tena de forcados.
O fato de Hermione ter-se casado logo após sua partida magoava mais do que tudo. Na época, convencera-se de que ela agira zangada, vulnerável, talvez desejando puni-lo pelo abandono. Mas ter um filho do camarada e batizá-lo com o nome que ha¬viam escolhido juntos… Ao saber disso, dentro dele morrera. Hermione lhe pertencia, e não podia ter tido um filho com outro homem.
Apreciou a Via Láctea, e uma estrela cadente cruzou o céu, oferecendo seu último espetáculo. Viu a rocha se extinguir e então esquadrinhou o céu até encontrar novamente a estrela deles. E fez um pedido.

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