Capítulo 4



Quando Dom Diablo lhe disse que teria que se ausentar por uma semana, Paula não disfarço, sua sensação de alívio! Finalmente poderia ficar livre de seu olhar vigilante, ainda que fosse por pouco tempo!
- Parece muito satisfeita com esta minha viagem - disse ele secamente. Contou-lhe então que iria para a Argentina, onde trataria de negócios relacionados com gado e cavalos. - Pode ir comigo, se quiser - sugeriu. - Vou comprar um garanhão e umas éguas, uma das quais poderá ser sua, se quiser montar. Por um breve instante se sentiu tentada com a perspectiva de uma viagem, porém desejava ainda mais ardentemente ficar livre uns dias, durante os quais talvez pudesse retomar contato com Gil Howard.
- Enquanto estiver fora, senhor, posso usar o seu carro? Juan Feliz poderá me levar à cidade para ver as lojas, isso me distrairia um pouco desta monotonia do campo. Por favor, deixa?
Dom Diablo arqueou as sobrancelhas ao ouvir a sua voz tão doce, quase suplicante, e disse:
- Está sendo muito convincente! Estou quase me arrependendo e me decidindo a levá-la comigo. Não me agrada deixá-la sozinha uma semana inteira...
- Sozinha? - Seu coração começou a bater descompassadamente como um aviso de que devia ser mais cautelosa, senão acabaria outra vez em seus braços possessivos. - Tenho a certeza de que daria ordens severas para que Juan Feliz não me perdesse de vista um segundo sequer...
- Quanto a isso não resta dúvida. Eu nunca lhe perguntei antes, Paula, mas você sabe dirigir? - Olhava para ela tentando adivinhar o que ela escondia sob aquela máscara de brancura. Apesar de nunca ter tirado a carteira de motorista, aprendera a dirigir com Marcus, que aliás fora bastante eficiente como professor. Marcus lhe ensinara tantas coisas, a única que não lhe ensinara fora jogar cartas, com todas as suas artes e trapaças. Sob alguns aspectos ele era muito conservador. Achava que a eficiência de uma mulher não devia comprometer sua feminilidade. Na verdade, Paula sempre dirigira o carro com Marcus ao seu lado.
- Sei. Mas Marcus nunca me deixou dirigir sozinha. Sempre estava a meu lado - respondeu Paula, tentando parecer normal. – Às vezes dizia que ia me comprar um carro, mas morreu antes de cumprir sua promessa. Meu aniversário estava próximo e o carro seria o meu presente. Foi o destino que decidiu assim... Pobre Marcus! – Um pouco agitada, Paula mordeu os lábios esperando que mencionando o nome de Marcus desviaria a atenção do assunto dela poder guiar ou não. Porém, Dom Diablo continuava com o cenho franzido. Levantou-se então abruptamente, o charuto seguro entre os dentes.
- Tenho que escrever algumas cartas - disse ele e dirigiu-se à porta da sala de estar, parando um instante para olhar para ela. - Muito bem, fique então na fazenda se preferir. Talvez não queira fingir que é uma esposa feliz diante de meus amigos. Darei ordens a Juan Feliz para que a leve à cidade quando quiser, mas nada de tapeações, ouviu?
- Sim, senhor - respondeu Paula. Porém ela só se sentiu mais tranqüila quando a porta se fechou atrás dele. Fez-se silêncio na sala, persistindo apenas o perfume de seu charuto e o eco de suas palavras... Paula deixou-se cair no sofá. Ele se tornava demoníaco quando provocavam a sua ira e Paula sabia que quando ele estivesse fora não resistiria à tentação de pegar o carro, escondida do chofer. Ele não poderia punir Juan Feliz por algo que ela fizesse. Seria uma injustiça, pois Juan tinha uma família grande para sustentar. Se conseguisse alguns momentos de liberdade, poderia até aceitar o castigo que viesse depois. O fato de ser constantemente vigiada fazia com que se tornasse mais intensa a sua sede de liberdade. Poderia bater um papo despreocupado com Gil Howard novamente sem ter que ficar na defensiva o tempo todo como quando conversava com Dom Diablo.
Ele partiu repentinamente numa manhã. Antes de sair, entrou no quarto de Paula para lhe dizer adeus. Inclinou-se sobre ela, recostada nos travesseiros, o cabelo brilhante espalhado sobre a seda branca da fronha, e abraçou-a fortemente.
- Posso esperar que sinta a minha falta? - perguntou, olhando-a fixamente. Apesar de ele ter passado parte da noite em claro, tentando salvar um potro que caíra no fosso, seu corpo emanava força e vitalidade. Paula o ajudara e até chorara quando conseguiram tirar o potrinho que correu imediatamente para junto da mãe. Sentia-se trêmula, os nervos à flor da pele...
- Por Deus, como você é bonita! - exclamou ele em voz baixa. - Não pode imaginar como está maravilhosa aí na cama, tão loira, tão frágil ! Eu poderia quebrá-la com as minhas mãos, e saiba que é o que farei se você me trair ou mesmo olhar para outro homem. Você é minha e eu não queria deixá-la sozinha. Venha comigo! Tenho certeza de que vai gostar!
- Não! - virou o rosto, apertando-o contra o travesseiro e comprimindo, involuntariamente, os seios com as mãos como se para se proteger. - Dê-me um pouco de tempo antes que eu possa encontrar os seus amigos. Não conseguirei fingir que estou loucamente apaixonada por você, bem sabe disso. - A estas palavras, seguiu-se um silêncio constrangedor. Forçou-a a olhar para ele, segurando-a pelos ombros, num gesto firme.
- Então, pelo menos, me dê um beijo de despedida, mas um beijo de verdade!
- Está bem! - concordou passivamente, enquanto os lábios dele comprimiam os seus. Então, como se a sua condescendência gelada tivesse desencadeado nele o demônio, seu beijo tornou-se cruel e exigente, queimando a sua boca. Os olhos dele se detiveram nela como se quisesse memorizar todos os detalhes de seu corpo e de seu rosto antes de deixá-la. Tomou entre os dedos uma mecha de seus cabelos, levando-a aos lábios. Foi então que Paula se lembrou da noite anterior quando ele salvou o potrinho. Os lábios dele pousaram em seus ombros nus. Ela puxou os lençóis para se cobrir, tornando-se então distante e fria como um bloco de gelo em seus braços. Ele então deixou-a e levantou-se da cama, ajeitando a gravata e os cabelos negros e lisos.
- Vim para lhe dizer adeus, Paula. Podia ao menos me desejar boa viagem! Será que está fazendo votos para que o avião caia? - perguntou. Antes que ela pudesse responder, ele se dirigiu à porta e acrescentou: - Diz o ditado: "O demônio cuida do que é seu". Por isso, eu, em seu lugar, não teria muita esperança de ficar viúva.
Com estas palavras deixou o quarto. Paula estava perplexa. Um arrepio percorreu seu corpo. Atirou as cobertas para o lado e correu para a porta. Não podia deixá-lo ir embora assim, pensando que ela era tão má, principalmente depois da noite anterior. Ele lutara tanto para salvar o potrinho que não podia ser duro e frio como queria demonstrar!
- Senhor! - gritou, mas o corredor estava vazio e sua voz ressoou em vão. Ouviu então o barulho do motor. O carro já saía pelos portões da fazenda, deixando-a como tanto desejara, sozinha e dona de seu nariz!
De volta ao quarto olhou ao seu redor. Sentiu uma sensação estranha. Pela primeira vez, após várias semanas, tomaria sozinha o café da manhã. Uma curiosa e desagradável sensação se apoderou dela enquanto se dirigia ao banheiro e se olhava no espelho imenso. Era por ter uma figura esguia e loira, ali refletida no espelho, que se encontrava agora naquela fazenda. Dom Diablo gostara de seu corpo jovem e ela, ingenuamente, por se encontrar em situação desesperadora, deixara-se enganar... Ao entrar no chuveiro, abriu tanto as torneiras que a água jorrou com força sobre seu corpo como que para apagar de sua pele as marcas das carícias do marido. Paula não queria sentir, queria se transformar em uma estátua de mármore...
Estava no quarto pronta para se vestir quando a porta se abriu e, como sempre, Carmenteira entrou sem bater... A velha carregava um vaso de camélias brancas para colocar sobre uma mesa de bambu. Paula sabia que as flores eram somente um pretexto que a velha usava para ter acesso à intimidade de seu quarto.
- Vai ficar sozinha por uns tempos, senhora? - perguntou Carmenteira enquanto arrumava as flores. - Mas, conhecendo bem Dom Diablo como conheço, imagino que ele deve tê-la deixado satisfeita por pelo menos duas semanas... Pensei que fosse com ele... Não tem medo, senhora, que ele encontre por lá uma mulher bonita que o console da solidão? Sabe como é, ele é um pedaço de homem, não é?
Paula olhou firme para ela que, por sua vez, olhava maliciosamente para a cama do casal.
- Às vezes umas férias fazem bem para um casal - explicou, irritada por ter que suportar a curiosidade daquela mulher que morava ali há tantos anos e que se dava ao luxo de se intrometer na sua vida! Os olhos penetrantes da velha se pousaram na roupa que Paula acabara de pôr: uma calça branca de pescador, amarrada logo abaixo do joelho, e uma blusa de mangas bufantes.
- Roupa de garoto! Por que usa esse tipo de roupa, senhora? Precisa usar trajes masculinos para ter mais confiança em si mesma? Não gosta de ser mulher? As mulheres latinas são diferentes, são mais femininas! Desde que nascem são educadas para ser fonte de prazer e alegria para o homem... Mas a senhora se rebela contra seu destino!
- Destino? - repetiu Paula com desdém. - Eu nunca teria vindo para cá se meu pai não tivesse estado aqui, se não tivesse abandonado minha mãe antes mesmo de eu nascer! Acho que o amor tem um significado diferente para o homem e para a mulher. Para a mulher significa apenas renúncia, enquanto para o homem apenas prazer! Mas fique sabendo que nenhum homem, nem mesmo o seu patrão, me transformará numa escrava idiota, que ronrona como uma gata quando ele está perto. Eu sou como sou, e me basto!
- Você é uma tola - disse Carmenteira. - Se pensa mesmo assim não merece ser dona desta fazenda, uma das mais luxuosas do México. É uma mulher frívola e ingrata. Dom Diablo vai perceber logo a bobagem que fez se casando com você. A sua figura loira e frágil conquistou-lhe os olhos e não o coração. Aliás, sabe disso, não é?
- Como se atreve a ser tão insolente? - Paula tremia de raiva por estar no meio desta gente que não a compreendia, nem lhe demonstrava a menor amizade. Conseguiu evitar um soluço. Não queria fazer papel de idiota diante daquela velha. - Saia! - ordenou. Sua voz era dura e seus olhos estavam embaçados. Apontava a porta. - Já ouvi demais suas insinuações malévolas! Você não passa de uma velha intrigueira! Mal esperou Dom Diablo virar as costas para vir aqui lançar seu veneno. Sei que não gosta de mim, nem você nem as outras pessoas desta casa. Ficam sempre me comparando com a outra mulher de Dom Diablo! Pois bem, ela morreu e eu estou viva! Não vou mais tolerar que entre no meu quarto sem ao menos ter a consideração de bater na porta. Sou muito inglesa e os ingleses fazem questão de sua intimidade, ouviu bem? Como já disse, Carmenteira, eu sou a dona da fazenda e, como tal, não vou mais permitir que você ou qualquer dos outros empregados sejam malcriados comigo. Está entendido?
Durante todo o tempo, Carmenteira olhou para Paula com seus olhos negros e brilhantes, mas estranhamente sem o menor sinal de raiva.
- Então, apesar de tudo, a inglesa tem alguma coisa dentro dela! - exclamou. - Não é a criatura feita só de leite e mel como parecia! Apesar de tudo, senhora, não tem o direito de impedir uma pobre velha, que trabalhou a vida inteira para essa família, de dizer o que pensa. Será que tem medo de ouvir verdades?
- Não tenho medo, mas sou humana. Ressinto-me porém com as comparações que vocês fazem entre mim e aquela que vocês gostariam que estivesse aqui, viva, no meu lugar. Provavelmente ela a chamava todos os dias aqui no quarto para fazer confidências; contar-lhe tudo sobre suas esperanças a respeito dos futuros herdeiros desta casa. Sinto muito não entrar nesse esquema, mas sou inglesa e nada neste mundo fará com que eu me torne como as mulheres latinas, nem mesmo as suas bruxarias!
Carmenteira já na porta, olhava para Paula cujos olhos, cheios de lágrimas, brilhavam de raiva.
- Isso é verdade! Nunca será como uma de nós, pois você não quer dar uma porção de filhos a Dom Diablo! Mas seja como for, ele vai querer pelo menos um filho seu, já que se deu ao trabalho de ir até a Inglaterra só para buscá-la! Parece-me que ele soube da sua existência por aquele funileiro que morou aqui há uns tempos atrás.
- Ele era meu pai - respondeu Paula com dignidade serena. - Diga-me Carmenteira, ele está sepultado aqui nesta propriedade? Já pensei tanto sobre isto! Não o conheci, mas parece que ele amava minha mãe. A sua maneira, bem entendido...
- Há um pequeno cemitério atrás da capela - disse Carmenteira. - É lá que serei sepultada. Sabe, eu já sou muito velha. Conheci a avó de Dom Diablo quando era menina, assisti seus últimos dias, segurando sua mão na hora da morte. Mas a senhora não segurará a minha, quando eu estiver morrendo, não é verdade?
Ao ouvir essas palavras patéticas, Paula mordeu os lábios, pois não era má. Não gostava de fazer os outros sofrerem.
- Tenho certeza de que vai viver pelo menos até cem anos. Diga-me, Carmenteira, Dom Diablo não tem irmãos?
- Tinha um irmão mais moço, mas morreu de poliomielite, há alguns anos. Um belo jovem chamado Alvarado, alguns anos mais moço do que Dom Diablo.
Ao ouvir isto, Paula prendeu a respiração e se lembrou do que o marido dissera a respeito da limpeza da praia, onde haviam estado.
- Que pena! Ele nunca me contou que tinha um irmão!
- Talvez a senhora nunca tivesse perguntado. Dê um pouco de atenção ao lado humano de seu marido, caso contrário ele poderá se transformar no demônio que você crê que ele seja. Corre nas veias dos homens Ezreldo Ruy o sangue cruel dos colonizadores, mas uma mulher inteligente pode transformar esta crueldade em bondade...

Mais tarde, com uma aparência fresca e perfumada, Paula atravessou o jardim até chegar à capelinha, circundada por enormes árvores antigas. Suas paredes eram cobertas de trepadeiras floridas. Paula achou a capela fria e sombria. O piso era de mármore polido e a virgem vestida de azul, estava num pedestal, cercada de velas acesas. Sentiu uma grande paz em seu coração. Quando Carmenteira a deixara, sentira-se muito triste e confusa. Aqueles momentos na capela pareceram aliviá-la. Foi depois até o pequeno cemitério, carregando as camélias brancas que Carmenteira pusera em seu quarto. Caminhou silenciosa entre os túmulos até que finalmente encontrou um, muito simples e com uma inscrição que a chocou terrivelmente:
"Charles Lennox Paget partiu deste mundo para o outro, aos quarenta e quatro anos."
Ajoelhou-se no gramado verde e colocou as flores no túmulo. Os pássaros cantavam alegremente. Ali, longe da Inglaterra, jaziam os restos do homem que ela mal conhecera e no qual poucas vezes pensara. Para ela Paget já estava morto há muito tempo. Devotara a Marcus toda a sua afeição. Como era estranho, após todos esses anos estar ali, junto ao túmulo de seu pai! Lágrimas traiçoeiras encheram-lhe os olhos e Paula enxugou-as rapidamente com a mão. Separou então uma camélia e começou a procurar o outro túmulo, o do jovem cunhado que não conhecera.
Quando saiu do cemitério; resolveu dar um passeio pelo pomar. Entre figueiras e amoreiras havia milhares de abelhas zumbindo e trabalhando, pois existia uma grande quantidade de mel nas árvores floridas. Respirou o ar perfumado. Era uma sensação maravilhosa, quase de embriaguez.

Nos dias que se seguiram Paula se preocupou em se familiarizar com a casa. Foi só no meio da semana que resolveu pedir a Juan Feliz para levá-la à cidade. Preferiu não arriscar indo sozinha. Durante esses poucos dias, refletiu melhor sobre suas responsabilidades. Deu-se conta de que havia muitas pessoas que dependiam de seu marido e que durante a sua ausência, iam depender dela. Uma manhã, ouviu gritos estridentes vindos da cozinha. Correu para lá. Duas empregadas se engalfinhavam, agarrando-se pelos cabelos, os rostos desfigurados pela raiva e fazendo mil imprecações! Uma outra criada informou Paula que as duas estavam brigando por causa de Lothario, um rapaz que, segundo a informante, estaria enganando as duas. Após observar a cena por alguns instantes, Paula foi até a pia, encheu uma jarra de água e jogou-a sobre as duas. No mesmo instante se separaram, olhando muito chocadas para Paula. A água lhes escorria pelo rosto e pelo pescoço. Os cabelos estavam ensopados!
- Não adianta se comportar desta maneira aqui nesta casa! - disse Paula em espanhol, calma e disposta a ser obedecida. - Se pensam que vão fazer o que bem entendem só porque estou sozinha se enganam muito! Se isto acontecer outra vez dispensarei as duas! Esta cozinha não é um cortiço! - Uma das jovens começou a chorar e a outra ameaçou usar uma faca, se ela olhasse para seu namorado outra vez.
- Não seja idiota, Pilar. Se o rapaz é tão mulherengo e namorador não vale a pena, é melhor que você ache outro namorado. É ridículo lutar assim por um homem!
- A senhora não lutaria se seu homem fosse roubado por outra mulher? - replicou Pilar.
- Acho que teria um pouco de orgulho e dignidade.
- Orgulho! O que significa orgulho quando se ama alguém? - zombou Pilar.
- Se uma mulher não tem um mínimo de amor-próprio, ela não tem nada...
- Prefiro ter o amor, a paixão... senhora - a jovem mexicana começou a sorrir, seus dentes muito brancos brilhavam. - Não tem o nosso sangue, por isso não consegue entender. Nós conquistamos, lutamos por ele e depois tratamos de conservá-lo. Se Loreta olhar mais uma vez para meu namorado, vou lhe arrancar os olhos e farei churrasco com eles! - Ao ouvir isto, Loreta soluçou alto e saiu correndo da cozinha. Pilar, com um ar de triunfo, continuou ali, muito empertigada.
- Não quero mais saber de briga - advertiu Paula. - Não permitirei que isso aconteça outra vez...
Ao sair da cozinha, percebeu que as outras criadas a olhavam com respeito!
Ao enfrentar essas pequenas crises, deu-se conta do peso de sua responsabilidade. Sentiu-se então com o direito de algumas horas de distração na companhia de Gil Howard. Após ter dito a Juan Feliz para tirar o carro da garagem foi até o quarto e escolheu um vestido azul e bege que lhe caía muito bem. Resolveu usar o colar e os brincos de pérolas que tinham sido de sua mãe. Quando terminou de se vestir, achou-se elegante demais para um mero passeio pelas lojas. Se a velha Carmenteira a visse, ficaria desconfiada. Paula espiou do alto da escada. Estava decidida a ir até a cidade, não desistiria só por medo dos mexericos da velha! Carmenteira estava no saguão, espanando os vasos de cerâmica. Vendo-a passar, não resistiu:
- Então não usa mais calças compridas? Está tão elegante, parece pronta para ir a uma festa com um amigo...
- Como esposa de Dom Diablo, tenho que me vestir bem - replicou, tentando desarmar Carmenteira. - Não posso comprometer o nome de meu mestre e senhor, não é verdade?
- Bem, uma coisa é elegância, outra é exagero... Às vezes as culpas e os pecados de uma mulher podem estar ocultos sob um traje bonito...
- Culpas, pecados? - Paula não queria dar satisfação de seus atos, mas não conseguia evitar. - De que eu deveria me sentir culpada?
- Sabe melhor do que eu. Estive estudando as folhas de seu chá, hoje de manhã, e vi um dedo acusador e um espetáculo de fogos de artifício. É bem significativo, não acha?
- Isto é idiotice! - Percebeu que Carmenteira estava tentando adivinhar para onde ia, provocando-a. Deu um sorriso e dirigiu-se ao pátio onde Juan Feliz esperava. Entrou no carro e disse ao chofer que a levasse à cidade para fazer compras. Juan Feliz parecia também achar estranho o comportamento de sua patroa.
Enquanto o carro deslizava pela estrada, Paula chegou à conclusão que todos eles a observavam, como que à espreita de qualquer erro de sua parte. Deveria ter posto um vestido mais simples, teria sido mais prudente! Afinal não pretendia fazer nada de mais, queria apenas bater um papo alegre e despreocupado com Gil Howard, isto é, se o encontrasse... Poderia então lhe falar de sua intenção de sair do México, talvez ele a pudesse ajudar.
Uma hora depois o carro entrou na pequena vila, Paula retocou a maquilagem. Logo chegaram à praça principal. A perspectiva de encontrar novamente aquele americano simpático a deixara de muito bom humor, embora um pouco ansiosa!
- Quanto tempo vai demorar, senhora? - perguntou Juan, ajudando-a a descer do carro.
- Quer que eu a acompanhe para carregar os pacotes?
- Mais ou menos uma hora - disse ela, dirigindo-lhe um sorriso e tentando parecer despreocupada. - Não pretendo comprar muita coisa. Se você quiser pode ir a um bar tomar alguma coisa. Mais ou menos às quatro estarei de volta. Não se preocupe comigo... Não vou fugir nem deixar que Dom Diablo se zangue com você.
- Fugir! - exclamou ele, subitamente alarmado. - A senhora nunca poderia fazer uma coisa dessas!
- Está certo, Juan, eu não o deixaria em maus lençóis, conheço bem o temperamento de meu marido. Até logo!
Caminhou rapidamente em direção às lojas, sabia porém que Juan a acompanhava com os olhos. Rezou para que ele não a seguisse. Quando se viu longe do alcance de suas vistas, dirigiu-se à joalheria. Subitamente sentiu uma timidez absurda. Ficou olhando a vitrine, como se estivesse procurando algo para comprar, sem coragem de entrar. Olhava um relógio de jade, que poderia servir para seu criado-mudo, quando sentiu uma sensação estranha como se alguém a estivesse observando. Voltou-se um pouco irritada, talvez Juan tivesse resolvido vigiá-la...
- Olhe, não preciso de um cão de guarda! - disse ela e parou subitamente. À sua frente estava Gil Howard, muito bem vestido: o blazer creme, combinando com a calça marrom, realçava seu bronzeado.
- Pensei que uma aparição tivesse chegado à cidade - disse ele. - Vi você passando ali da loja de artigos esportivos. Estava procurando um maiô e uma raquete de tênis. Não pude acreditar e saí correndo para me certificar que era você mesmo!
- Eu... eu vim à cidade para comprar um relógio - disse ela, feliz por tê-lo encontrado, porém ainda um pouco constrangida. - Este aqui de jade, gostaria de vê-lo melhor...
- Olhe aqui, não gostaria que fizesse um mau negócio. Seu marido deve ter relógios mais bonitos e mais valiosos que este, na fazenda. A propósito, onde está seu dono?
- Você não deveria falar desse jeito - protestou.
- Será que ele me tiraria a pele por isso? Como é que ele pode cuidar de negócios, deixando uma mulher bonita como você sozinha andando por esse mercado...
Quando Gil mencionou sua beleza, Paula percebeu que mudara de expressão. Sentiu então que só dependia dela o rumo que tomaria aquela amizade... Ou permitiria que aquilo continuasse ou teria que parar por ali, antes que se tornasse um namoro. Sabia que se encontrava na posição vulnerável de mulher dominada mas não amada, portanto era normal que desejasse alguém que a amasse um pouquinho!
- Meu marido foi resolver uns negócios na Argentina.
- Puxa, foi bem longe, desta vez! E então você resolveu aproveitar a sua ausência para comprar um relógio...
- Se acha que não vale a pena, não falemos mais nisso, sr. Howard!
- Acho bom, mas por favor, doçura, não seja tão formal, chame-me de Gil, afinal falamos a mesma língua, e é óbvio que gostamos um do outro!
- Não seja tão pretensioso! Não nego que estou contente por vê-lo, mas faço questão de esclarecer que não sou uma esposa à procura de distração! O que eu quero é uma pessoa com quem possa conversar amigavelmente...
- Entendo perfeitamente, Paula; não precisa ficar assim preocupada - sorria mais amigável, quase indulgente. - Eu não gostaria de estragar esse nosso encontro; sei muito bem que não está à procura de aventuras. Basta olhar para você para ver que é uma moça distinta, uma verdadeira senhora. Escute, conheço um lugar simpático onde poderíamos tomar uma xícara de chá com pãezinhos de minuto, você não gostaria?
- Claro que sim! - apertou o estômago como se estivesse com fome. - E onde fica este lugar maravilhoso?
Ele hesitou um instante e, aproximando-se um pouco mais dela, disse:
- Meu apartamento, doçura. Fica só a alguns passos daqui. Eu lhe prometo que comigo estará segura como um gatinho recém-nascido junto da mãe. Não vou engolir você, fique tranqüila.
Foi Paula então quem hesitou. Sentia novamente aquele sinal de perigo, como se o chão se movimentasse sob os seus pés. A sensação era tão forte que segurou o braço de Gil.
- Eu gostaria de tomar uma xícara de chá e creio que posso confiar em você!
- Isso é importante - disse ele e sorriu. - Então, vamos!
- Está bem - concordou ela e o acompanhou. Estava um pouco atordoada, sentindo-se uma meninazinha ingênua e tola. Dom Diablo estava a milhares de quilômetros de distância e jamais saberia que ela passara uma hora com outro homem.
O apartamento de Gil era no andar térreo de uma casa em estilo espanhol, com um pátio interno para onde convergiam todos os cômodos. Salas altas, venezianas coloridas, um violão com fitas vermelhas e muitos vasos com plantas. Convidou Paula para se sentar no sofá, despretensiosamente coberto com um xale de franjas. Em frente ao sofá, havia uma mesa baixa com cigarros americanos e um isqueiro de prata em forma de coruja. No chão, um tapete tipicamente mexicano, de cores vivas.
- Que sala bonita! - exclamou Paula, olhando ao seu redor. Sorria tranqüila. Seu nervosismo desaparecera talvez pelo fato da casa ser tão pertinho e por ter a certeza de que Juan Feliz não a vira. Recostou-se no sofá. Agora podia descansar. Percebeu então que Gil a observava atentamente. O vestido bem justo delineava seu corpo tomando-o ainda mais atraente.
- Deve estar nervosa - disse ele baixinho. - Se eu tivesse uma mulher como você, eu me zangaria muito se fosse tomar chá com outro homem!
- Agora não estrague as coisas com seus elogios.
- Quer o chá com leite ou limão?
- Com limão. Quer que eu o ajude?
- Não, limite-se a enfeitar a minha casa, além disso só eu sei onde estão guardadas as coisas. O apartamento é um pouco pequeno, mas a sua localização é boa e a locatária não se intromete com as minhas visitas. - Quando Gil se dirigiu à cozinha, Paula sorriu. Ao mencionar visitas ele se referia certamente a garotas. Era charmoso e bonito, portanto devia gostar da companhia de mulheres. Ao ouvi-lo cantarolando e se mexendo de um lado para outro, Paula se admirava dele ser divorciado. Achava que qualquer mulher deveria se sentir feliz a seu lado, sem precisar pensar em outro homem.
- Costuma receber muitas visitas? - perguntou Paula, olhando para o violão de fitas vermelhas. Lembrou-se então da música nostálgica tocada pelas jovens mexicanas, na fazenda.
- Às vezes, para almoçar ou jantar - respondeu, entrando na sala com a bandeja completa para o chá, os pãezinhos de minuto e a geléia de amoras. Colocou a bandeja na mesinha ao lado do sofá e trouxe o resto depois.
- Quer servir o chá? - perguntou Gil, sentando-se num dos almofadões.
Paula sentiu-se nervosa. Tentou disfarçar e só então serviu o chá.
- Isto é tão bom! Parece que estou de volta à Inglaterra! Sua sala é tão acolhedora!
- As salas da fazenda devem ser muito maiores e luxuosas, cheias de objetos raros...
- Saiba que eu não me casei com Dom Diablo por causa de dinheiro. A fazenda é muito bonita, mas para mim não passa de uma prisão.
- Conte-me então, por que se casou, Paula. Se não o amava deve ter tido um motivo muito forte para que o fizesse!
- Ele apareceu em minha vida no momento em que eu havia perdido um ente muito querido. Eu não tinha mais para onde ir e deixei-me convencer que o casamento seria a única saída, pois não me sentia preparada para enfrentar a vida sozinha. Quando eu soube que o último desejo de Marcus era que eu me casasse com Dom Diablo, então concordei, como uma sonâmbula que não quisesse acordar para a realidade!
- Mas ele como marido fez com que você voltasse logo para a realidade, não é verdade?
- Inclinou-se para a frente com uma expressão muito séria. - Ele a quis assim como se quer uma pedra rara, só que não a colocou onde devia... Foi um casamento no real sentido da palavra, ele tomou posse da esposa...
- Foi realmente o que aconteceu. - Sorriu um pouco sem jeito. - Nós nos casamos numa igreja católica e tenho a certeza de que ele jamais permitiria que eu fosse embora...
- Então quer dizer que você está pensando em fugir? - perguntou Gil seriamente. - Tem que procurar refúgio nos Estados Unidos. Não pode continuar a levar esta vida infernal com um homem que não a ama, tendo que se entregar a ele, segundo os seus caprichos! Isso chega a ser quase amoral!
Paula não tinha pensado ainda na situação em termos tão drásticos e ficou surpreendida com a veemência de Gil Howard. Achou-o puritano demais ao se mostrar chocado com a idéia de uma jovem como ela viver com um homem contra a sua própria vontade. Mas não queria que ele se envolvesse pessoalmente no problema e bastava que a ajudasse a sair do México, quando chegasse a hora...
- É o fim do mondo um sujeito viver como ele vive, num esplendor feudal! Ele a deixou porque sabia que seus subordinados não arriscariam o pescoço ajudando-a a fugir. Mas ele não contava comigo. O sujeito me olhou o outro dia na praia como se fosse um verme!
Não quero aborrecê-la nem assustá-la doçura, só quero ajudá-la a livrar-se de Dom Diablo. Você não pode continuar a viver assim. Aposto que nunca havia tido um namorado antes, pois Marcus deve ter sido bem severo! Talvez mais severo que um pai de verdade!
- Marcus não era velho, nem tinha idéias antiquadas! A companhia dele me bastava. Não sentia necessidade de flertar com rapazinhos idiotas da minha idade. Mas o que Marcus planejava para mim era o que ele chamava de um bom casamento!
- Um super casamento! - ironizou Gil. - O dinheiro é muito cômodo, mas não quando com uma mão se segura a bolsa e com a outra o chicote! Você já pensou em fugir, não é verdade?
- Sim, mas há alguns problemas! - confessou Paula.
- Não serão insolúveis se você realmente quiser resolvê-los. Você não sente nenhum amor por Dom Diablo e nem poderia, pois ele pertence a outra raça e religião, além de ser muito mais velho! Ele considera você aquilo que se chama capricho de um homem rico! Pudera, você é tão bonita! - Gil inclinou-se para a frente, segurando-lhe as mãos. - Estes anéis têm um valor enorme, você sabe? Tem idéia por quanto poderia vendê-los?
- Eu não poderia vender os anéis! - respondeu nervosamente. São jóias da família Ezreldo Ruy. Tenho outra jóia, um broche que ele me deu. Não é antiga, mas creio que vale bastante. Pensei em vendê-la.
- Seria aquela libélula que usava no primeiro dia em que nos encontramos? - Gil encarou-a. - Foi por isso que veio à joalheria? Para saber se nós a compraríamos?
- Queria que a avaliassem no caso de eu precisar de dinheiro. - Paula tremia mas suas mãos continuavam presas nas de Gil. – Pensei em abandonar Dom Diablo, mas ele está com todos os meus documentos, inclusive o passaporte. Não posso ir muito longe sem isto e dentro das fronteiras do México, ele logo me encontraria e depois seria pior.
- Pior? - Apertou-lhe com força-a mão. - Espero que ele nunca tenha lhe batido!...
- Não, ele é muito sutil. Não precisa usar da força para dominar!
- Quer dizer que a domina só com o olhar?
- Mais ou menos isso - Paula procurou evitar o olhar de Gil. As tapeçarias coloridas chamaram-lhe a atenção. Além disso a decoração descontraída fazia com que sentisse inveja da liberdade de Gil e de seu modo de vida descompromissado.
- Você sabe onde ele guardou seus documentos? Certamente poderá pegá-los se quiser.
- Estão trancados numa escrivaninha em seu escritório.
- Quer dizer que ele não tem nenhuma ilusão sobre os seus sentimentos já que desconfia de você... Sabe que o detesta mas não a deixa ir embora. Bem, isso é bem típico dos homens de sua raça. Acham que as mulheres não têm nenhum direito e só as têm para... bem prefiro não dizer o que penso... Não quero que fique encabulada, mas entendeu bem o que eu quero dizer?
Ela sabia mas não queria discutir o assunto com Gil Howard. Era muito doloroso, muito pessoal! Desvencilhou-se de suas mãos e foi até a porta que dava pata o pátio interno. No jardim havia uma profusão de cravos plantados ao redor de uma velha fonte. Paula pensou novamente como devia ser agradável a vida nesta casa alegre e despretensiosa.
- Este lugar me agrada muito! - exclamou. - E você, Gil, gosta de viver no México?
- Bem, há certas vantagens. Vive-se melhor aqui e com menos dinheiro do que nos Estados Unidos. A comida é ótima, a roupa não é cara, além do que há mar e solo ano inteiro!
- E belas mulheres! - Paula sorriu. - Algumas incrivelmente charmosas, os cabelos negros lisos, os olhos tão escuros...
- É verdade, mas já reparou como ficam quando passam dos trinta? - Uma mulher como você, doçura, continua bonita até depois dos sessenta!
- Por favor Gil, não fique sentimental - pediu-lhe. Estremecera porém quando ele a tocara. Ele tinha todo o direito de pensar que ela gostasse das atenções de um homem menos autoritário do que seu marido! Tinha, pois, que mantê-lo a distância. - Tem alguma... algumas... namoradas aqui no México?
- Às vezes uma garota ou outra - admitiu. - Desde que me separei de Louise evito envolver-me seriamente com alguém, pois eu amava realmente minha mulher. Ela era cantora num clube noturno em Santa Mônica e não quis deixar sua profissão para me acompanhar em minhas viagens. É quase uma ironia, agora que minha vida está mais organizada, eu não ter uma esposa que a compartilha comigo.
- Pobre Gil! - exclamou Paula e ao tentar pegar um cacho de uvas deixou-o cair no chão.
- Pobre Paula! - As mãos de Gil envolveram seus ombros frágeis. - Será que chegará algum dia, para consolá-la, algum homem diferente de seu marido prepotente?
- Eu... eu não sei... - Paula sorriu, libertando-se suavemente de seu abraço e dirigindo-se ao pátio. O ar estava morno.
- Será que vamos ter uma tempestade? - perguntou um pouco alarmada. - Tenho que ir embora. Não gostaria de voltar para casa com chuva forte, pois parte da estrada é quase deserta. Seria uma experiência desagradável.
Gil observou o céu, as sobrancelhas franzidas, um ar carrancudo.
- Bolas! Como o ar ficou carregado! Lembro-me de ter ouvido um sujeito dizer lá no mercado que a terra estava rachando. É uma forma deles dizerem que a terra necessita de muita chuva. Aqui no México, quando a seca se prolonga muito tempo, a terra começa a rachar.
Paula lembrou-se do potrinho e sentiu um arrepio gelado por dentro, pois seu corpo estava quente como se estivesse perto de uma fogueira.
- Gil, creio que é melhor eu ir andando, tenho que estar no carro às quatro horas. Juan Feliz vai ficar mais nervoso se tiver que dirigir com chuva.
- Quer dizer que Dom Diablo faria o diabo com ele se acontecesse alguma coisa com você? - Gil segurou-lhe os ombros novamente, fazendo com que olhasse para ele. Parecia angustiado. – Tem certeza de que Dom Diablo não a ama loucamente? Afinal, você é suficientemente atraente para amolecer qualquer coração, por mais duro que seja...
- Não, ele não me ama assim como você pensa. - Paula falava com uma convicção inabalável. Seu marido nunca lhe falara em amor, pois só a via como um objeto de sua propriedade. - Dom Diablo é apenas dono e senhor. É de natureza possessiva e ficaria furioso ao se ver lesado em qualquer das suas propriedades. Vou indo agora. Obrigada pelo chá e por ter tido a paciência de me ouvir. Gil, por favor, deixe-me ir! Preciso ir embora!
- Eu deixo você ir, doçura, porém só se me prometer que voltará novamente - puxou-a novamente para perto dele. - Você é macia como um gatinho e precisa ser acariciada. Sou especialista em fazer as gatinhas enlouquecerem de prazer... - Ao dizer isto Gil acariciou seus quadris. - Não seria uma boa forma de se vingar, especialmente com alguém que a faz feliz? Alguém assim como eu?
- Sabe o que ele faria se soubesse que o estou traindo com outro homem?
- Mas não vejo por que ele teria que saber - um largo sorriso se espalhou pelo rosto de Gil. - Você é um tanto ingênua, sabe? Veja agora, por exemplo, por acaso alguém sabe que estamos juntos aqui? Quando os mexicanos fazem a sesta nem um terremoto é capaz de acordá-los. Poderíamos combinar neste horário...
- Não, não me importo com Dom Diablo nem com sua bendita honra mas sim com a minha. Você mesmo diz, Gil, que eu não sou do tipo que gosta de aventuras. Eu me sentiria descarada e ordinária se agisse como uma mulher que Dom Diablo e eu vimos outro dia. Deve estar tão acostumada a entregar seu corpo que por pouco não o fazia ali mesmo, na frente de todo mundo. Não, eu preferiria morrer!...
- Muito obrigado, nunca pensei que a minha companhia pudesse ser tão ruim assim.
- Ora, Gil, você sabe que é atraente, e eu gosto de você. Mas não quero um caso, tudo o que eu quero é ser livre. Deu um suspiro e depois, com um soluço assustado, atirou-se nos braços de Gil. Não era porém um abraço de amantes. De repente, um barulho estranho e apavorante começou. O chão tremia e os dois caíram no piso de madeira.
- É um terremoto - gritou Gil.
Paula ouvia estas palavras alguns segundos antes de bater com a cabeça, perdendo depois a consciência.

Quando voltou a si, estava deitada numa cama macia e sentia algo gelado na testa; eram compressas de gelo para lhe aliviar a dor. Gemeu baixinho, e ao tentar abrir os olhos viu que tudo girava ao seu redor. Não conseguia distinguir nada claramente. Pouco a pouco, começou a perceber sombras na parede e no teto. Uma das sombras, era a de um homem debruçado sobre ela e quando ela começou a balbuciar, tentando chamá-lo pelo nome, ele se inclinou ainda mais, tirando a bolsa de gelo de sua testa.
- Paula, você está bem? Meu Deus, que susto você me pregou, tanto tempo inconsciente...
- Gil? Onde... onde estou? O que foi que houve?
- Um maldito terremoto - respondeu ele. - Você bateu a cabeça e desmaiou. Como se sente agora, doçura? Deve ter sido uma pancada bastante forte, pois você já está desacordada há mais de duas horas. Já estava até pensando em procurar um médico. Está doendo muito?
- Bastante - respondeu com voz fraca. - Tentou sentar-se mas o quarto começou a girar e Paula se viu obrigada a deitar novamente.
- Minha cabeça dói muito, está tudo rodando e já está escuro...
- Doçura, a luz está acesa - Gil parecia preocupado. – Você está me vendo, não está? Não está me enxergando?
- Sim! - O olhar dela correu pelo quarto, pelas paredes claras, as sombras se moviam conforme os movimentos de Gil. - Mas já é noite, Gil, eu não poderia estar aqui! - Tentou se levantar novamente mas Gil fez com que se deitasse.
- Não pode se mexer por enquanto, doçura. Você ainda está em estado de choque, pode estar com uma contusão interna... Relaxe agora, o terremoto já passou, escute a chuva como cai sem parar...
Paula, relutante, deitou-se novamente.
- As chuvas chegaram e o calor diminuiu - disse Gil. – Graças a Deus refrescou bastante senão podiam acontecer outros tremores de terra, causando novos danos. Depois de algumas horas de chuva os jardins ficarão floridos, transbordantes de cores! Uma maravilha!
- Ah, sim, é mesmo uma maravilha eu estar aqui com você, sem nenhuma esperança de poder sair nas próximas horas. Ai, minha cabeça! Dói como se tivesse levado um coice de mula!
- Minha querida, é melhor a dor do que continuar inconsciente - disse Gil, passando o braço pelos seus ombros como que para ampará-la e colocando a bolsa de gelo em sua nuca. - Assim não melhora a sua dor?
- Acho que sim - respondeu Paula. Realmente a dor se acalmara, mas gostaria também que seus nervos pudessem se acalmar com a mesma facilidade. - Sei que não tem culpa Gil, mas estou preocupada com Juan Feliz e com os outros empregados da fazenda. O que estarão pensando neste momento?
- Pensarão que você foi pega de surpresa pela chuva forte e se abrigou em algum lugar. Não se preocupe tanto com isso. Vamos, relaxe! Seu marido não poderá dizer que os elementos da natureza conspiraram para que você pudesse passar a noite comigo, não é verdade?
- A noite?... olhou para Gil tão apavorada que ele deu uma risada sonora.
- Aí está você olhando para mim como se eu fosse um libertino. Os dois homens de sua vida fizeram com que você se tornasse hostil aos homens jovens e isso não é justo! Aposto que sou melhor que ambos, ou você tem dúvidas a esse respeito? - Sorriu abertamente. Sentia um certo alívio ao ver que Paula estava melhor, pois chegara a pensar que ela tivesse tido alguma lesão mais séria. A chuva continuava a cair pesadamente. O pátio estava todo alagado, pois a água transbordava pelas calhas. Um perfume de terra molhada invadira a sala.
- Não gostaria de vir a ter dúvidas a este respeito, pois parece que vou ter mesmo que aceitar a sua hospitalidade. Com a cabeça doendo do jeito que está sabe lá quando poderei sair daqui! Não sei com que cara vou chegar em casa...
- Diga a verdade - disse Gil. - Você se abrigou da chuva e do terremoto com as pessoas que lhe ofereceram abrigo.
- Não posso dizer que passei a noite sozinha com você! E certamente teria que dar o nome e endereço das pessoas que me abrigaram...
- Até seu marido chegar, seu sentimento de culpa já terá passado mesmo porque ele não vai poder agir como inquisidor quando você chegar em casa, uma vez que se encontra tão longe... Diga que as pessoas que a ajudaram eram muito amáveis, mas como você estava atordoada com a pancada da cabeça, não se lembrou de perguntar os nomes. Tudo o que se lembra é que moravam numa casa com um pátio interno. Há dezenas de casas assim... Faça-se de vítima e use a pancada na cabeça como desculpa! Quer um pouco de conhaque? Acho que vai fazer bem para você.
- Prefiro uma xícara de café. Paula parecia evitar os seus olhos.
Gil então interveio com certa rispidez:
- Não pense que quero embriagá-la antes de seduzi-la. Não acho a menor graça se a garota não estiver interessada. Parece estar morrendo de medo que seu marido descubra algo a meu respeito...
O cabelo ondeado de Gil caía-lhe sobre a testa. Parecia zangado; mas comparada com a de Dom Diablo, a zanga de Gil era ridícula!
Um sorriso aflorou nos lábios de Paula. Gil era um pouco vaidoso. Queria que as mulheres gostassem dele, mas não gostava de lutar por elas.
- Por que você está rindo?
- Por você ser tão bonzinho. Se alguma garota tiver que passar a noite com alguém que não seja o próprio marido, vou aconselhar que seja com você! Realmente não o considero nenhum libertino, simplesmente gosto mais de café do que de conhaque...
- Tudo bem! - Gil estava com um ar estranho quando se sentou à beira da cama. Paula estava muito pálida, o cabelo louro desfeito, uma mancha roxa na têmpora e um arranhão no pescoço.
- Você continua maravilhosa, apesar do terremoto... – disse ele. - Por acaso está querendo me dizer que comparado com Dom Diablo, sou uma espécie de bobo alegre?
Paula sorriu e respondeu:
- Você supera meu marido em gentileza e cortesia. Ele conserva a mesma índole de seus antepassados espanhóis, que faz com que este povo, ainda hoje, se divirta numa arena de touros. Deus permita que ele nunca descubra que passei a noite com um americano atraente!
- Ainda bem que você me acha atraente, pelo menos descobriu uma qualidade em mim
- afagou seu rosto. - Pobre garota! Tem que encontrar um meio de fugir antes que Dom Diablo volte da viagem!
- Não sei como conseguir meus documentos, só se quebrar a fechadura da escrivaninha. O braço de Dom Diablo é, porém, muito longo. Tenho a impressão que para onde quer que eu vá, ele conseguirá me alcançar! Ele não me ama, mas uma vez que me escolheu para esposa não permitirá que o abandone. Já não sou mais dona de mim mesma...
Paula passou a mão pela testa, pensando o quanto Dom Diablo ficaria também preocupado se soubesse que ela tinha se acidentado. Teria chamado o médico para se certificar de que as perspectivas de uma gravidez futura não seriam prejudicadas. Fechou então os olhos e se sentiu tomada por uma vertigem... Parecia estar voando do quarto de Gil para a fazenda... Sentia os braços de Dom Diablo que a apertavam cada vez mais contra seu peito. E eIa, muito quieta, sentia a respiração e as batidas do coração dele sobre seu rosto e seu seio.
- Paula, doçura, você está bem? - perguntou Gil.
- Estou bem sim, só me sinto um pouco cansada.
- Vou fazer um cafezinho...
Mas ela adormeceu antes que Gil chegasse. Quando acordou novamente a luz do dia já invadira o quarto e a chuva cessara. Despontava o dia! Paula tinha que voltar para a fazenda com o vestido todo amarrotado e num carro de aluguel. Iria ter que enfrentar olhares acusadores de todos os empregados e, certamente, Dom Diablo iria saber de tudo assim que chegasse da América do Sul!

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