Capítulo 5 - fim
Paula estava no terraço quando avistou o carro prateado que trazia Dom Diablo de volta para a fazenda. Tinha certeza de que ele já fizera uma série de perguntas a Juan Feliz, que as respondera prontamente. Devia ter-lhe falado do terremoto e Dom Diablo, com certeza, se preocupara com os danos causados na fazenda. Talvez também já lhe tivesse contado tudo sobre o que tinha acontecido com ela. Os enormes portões de ferro, com o escudo da família Ezreldo Ruy, estavam bem abertos para ele passar. Quando desceu do carro, Paula notou que ele estava elegantíssimo, com um temo escuro. Inclinou-se então para observá-lo melhor. Dom Diablo olhou a seu redor como que saboreando a sua volta ao ambiente que lhe era tão caro! De repente, ao perceber a presença de Paula, olhou firme para ela, o rosto impassível. Parecia estar olhando para uma estranha e não para a sua mulher! Paula virou uma estátua de gelo. Não se sentia à vontade, pois ainda não sabia até onde ele estava a par do que lhe acontecera... Percebeu, porém, uma certa ironia no olhar dele.
Esperou pelo marido no terraço, embora soubesse que seu dever de esposa seria esperá-lo embaixo para dar-lhe as boas-vindas. Mas Carmenteira certamente estaria lá, esperando que ela mentisse sobre a noite do terremoto.
- Velha feiticeira! - resmungou Paula, mas não havia muita convicção em sua voz. Na realidade não detestava a velha empregada. Sabia que seu amor por Dom Diablo era possessivo, maternal. Era natural! Além de ser latina, praticamente criara seu marido. Aceitara Paula porque ele a escolhera, mas não a aprovava. Estava pois sempre à espreita, como um abutre, esperando que acontecesse algo que os separasse, que fizesse com que ele a rejeitasse! Ele então procuraria uma amante latina, e ela seria simplesmente posta de lado.
Carmenteira a achava orgulhosa e, a seu ver, só os homens tinham o direito de sê-lo. Ela era velha e antiquada! Achava que a mulher devia ser submissa e sentir-se gratificada com as atenções de um homem. Queria que ela se humilhasse de qualquer forma, por isso ela resolvera não descer ao encontro dele. Preparara-se para recebê-lo, talvez para ter coragem de enfrentá-lo. Pôs um vestido leve e prendeu o cabelo num coque que lhe descobria o pescoço fino, ressaltando seu porte altivo. Passara um pouco de batom nos lábios, mas não usava nenhuma maquilagem. Apenas perfume.
Dom Diablo ficara ausente dez dias e Paula esperava que ele estivesse com saudade e não apenas curioso com o que acontecera em sua ausência... Levou a mão à fronte. A marca desaparecera, felizmente! Dom Diablo não gostaria que um dos seus pertences apresentasse qualquer defeito! Detestaria uma mulher com cicatrizes como detestaria um cálice quebrado, já que era amante da perfeição!... Costumava acariciá-la como já o vira acariciar uma garrafa de bom vinho ou um objeto valioso de sua coleção que ocupava a sala principal da fazenda. Corria os dedos sobre a superfície do objeto apalpando suas formas, e sentia nisso um certo prazer...
Bem, não ficaria ali parada como uma criança que espera o castigo. Foi até uma das poltronas de vime e se sentou, cruzando as pernas. Tentou parecer natural, olhando distraída para suas sandálias de salto. Na verdade estava muito nervosa! Enfrentar Dom Diablo novamente, tê-lo tão perto outra vez... Lembrou-se do momento em que ele partira, e o que ela lhe havia dito! Ele a olhara muito como que para compensar o tempo que ficara longe, sem tocá-la...
Encostou a cabeça na almofada e fechou os olhos, pois o sol estava muito forte. Fingiria que estava cochilando quando ele se aproximasse.
Paula começou então a pensar como teria sido bom se tivesse conseguido partir antes da chegada do marido! Mas não fora possível conseguir seu passaporte; ele trancara até a porta do escritório. Paula ficara desapontada, tivera até vontade de arrombar a porta! Mas é verdade! Ele não pode confiar em mim!, admitiu. Ele sabe que irei embora assim que tiver meus documentos na mão! Começou a desfolhar um jasmim, quando de repente, pressentiu a presença de Dom Diablo. Ele passara pela porta sem que ela o visse chegar. Manteve os olhos fechados até que aos poucos foi percebendo uma sombra diante dela. Ele estava ali, à sua frente, o corpo entre ela e o sol. Ele nada disse e Paula sabia que, com sua paciência diabólica, ele esperava que ela perdesse o controle. O silêncio se prolongou até que os nervos de Paula não resistiram ao seu magnetismo que parecia penetrar em seu cérebro, em seu sangue...
Sem tocá-la, fez com que Pau}a abrisse os olhos e o encarasse. Ao olhar para ele, percebeu que teria que falar primeiro... A única frase que conseguiu dizer, foi:
- Alô, senhor! Está com muita boa aparência!
Ele estava mais bronzeado e magro. Paula voltou a registrar urna certa malícia em seus olhos negros. - Espero que seus negócios tenham corrido bem - acrescentou. - Será que vai ganhar mais dinheiro ainda? - Ficou satisfeita com sua ousadia, mas recuou assustada quando ele, de repente, agarrou seus pulsos, fazendo-a se levantar bruscamente. Ele a observava firme e minuciosamente, parecia querer controlar até as batidas de seu coração. Paula sentiu-se como um objeto de arte que estivesse sendo examinado por um comprador com o propósito de detectar algum defeito... Levantou então o pescoço e lançou-lhe um olhar de desafio. Afinal nada fizera de que devesse se envergonhar... Não deixaria absolutamente que ele a forçasse a se defender de um pecado que não cometera!
O que acontecera com ela na casa de Gil fora uma conseqüência do terremoto.
- Bem, Paula, está desapontada porque o avião não caiu? - Após lhe fazer essa pergunta, beijou-lhe as mãos e sentiu o perfume de jasmim. Isso pareceu excitá-lo! Encostou a palma da mão de Paula contra seu rosto e perguntou: - Será que você sentiu um pouco a minha falta?
- Antes que ela dissesse alguma coisa, começou a roçar os lábios em sua mão e a sensação que Paula sentia era tão perturbadora que se viu obrigada a retirar a mão antes que aquela onda de sensualidade tomasse conta dela. Tarde demais! Cingindo-lhe a cintura apertou-a de encontro a seu corpo musculoso. Nem mesmo uma sombra passaria entre eles! Dom Diablo transpirava masculinidade e total autocontrole, mas naquele momento Paula sentiu que ele estremeceu dos pés à cabeça. Ele a moldava contra a sua vontade, como se ela fosse de gesso, até que ela perdesse por completo sua identidade e se tomasse parte dele.
- Não! - respondeu Paula e desviou o rosto. Não iria sucumbir àquele poder que ele parecia exercer sobre todos. No seu caso o exercia, submetendo-a a suas violentas e selvagens fantasias sexuais que, de qualquer forma, eram agora para Paula, e ela não podia negar, uma fonte inesgotável de prazer.
- E por que não pode me beijar, Paula? - Segurou seu queixo e forçou-a a olhar para ele.
- Por acaso lhe pesa algo na consciência, minha querida? Por que não me conta, vamos, abra-se comigo... Por acaso quebrou um dos meus cristais? Ou espirrou tinta no tapete persa da sala de jantar? - ele a estava torturando! Disfarçava sua crueldade com perguntas ingênuas, levando Paula até onde ele queria chegar: uma confissão completa do que realmente acontecera. Ela o odiava por ser assim. As unhas dela se cravaram em seu casaco e só não alcançaram o rosto de Dom Diablo por ela estar muito colada ao corpo dele.
- Você esteve interrogando Juan Feliz, não esteve? Descobriu que passei a noite na cidade? Nem parece um homem civilizado! Está furioso só porque eu não pude controlar um terremoto!
- Ah, então foi assim tão violento que não pôde controlar o que ocorreu aquela noite? - Seu rosto se tomou diabólico. Paula ficou apavorada ao pensar em Gil. Como é que ele descobriu? Tivera tanto cuidado ao tomar o táxi... Gil telefonara e o motorista a apanhara na praça principal. Sua pressa em sair da cidade não a impediu de notar um homem na praça, que a olhava muito. Era um daqueles mexicanos extremamente magros, os bigodes negros como carvão. Como ainda estivesse um pouco nervosa ao entrar no carro, levantara inconscientemente a voz, ao dar o endereço da fazenda... Seu instinto lhe dizia que Dom Diablo sabia de tudo! Aquele seu olhar parecia avisá-la que corria risco de vida!
- Juan Feliz lhe contou que me levou à cidade aquele dia e que não voltei com ele mas só na manhã seguinte? E você acredita que eu tenha feito algo de que devesse me envergonhar? Pois saiba que nada fiz, senhor, esta é a pura verdade. Eu estava andando pelas lojas e depois fui até aquelas casas brancas e graciosas com pátios de lajotas decoradas. De repente, tropecei e caí, batendo a cabeça numa pedra. Desmaiei, senhor, e as pessoas de uma das casas foram muito amáveis em me ajudar. Como, logo depois, começou a chover muito, só pude sair ao amanhecer. Aliás, fiquei muito assustada, quando soube que eu caíra em conseqüência de um tremor da terra.
- Bem, todos os criados viram que você estava com o rosto machucado, porém o que eles não sabiam é que você tinha passado a noite com um jovem americano! Aliás, querida, vejo pela expressão de seus olhos, que sabe bem do que estou falando! Se não me engano nós o encontramos uma vez na praia e você mentiu daquela vez também. Fingiu que não o conhecia! Foi aí que combinou se encontrar com ele assim que eu virasse as costas! Não é verdade? Foi mais agradável nos braços dele que nos meus?
- Eu sabia - gritou ela, tentando se livrar daqueles braços que pareciam garras de ferro.
- Eu sabia que iria imaginar o que está imaginando! Como sabe a respeito de Gil? Tem espiões espalhados por toda a cidade? Eu percebi que havia um sujeito rondando na praça, na manhã seguinte.
- Na manhã seguinte à noite em que foi consolada por Gil Howard?
- Ora, vá para o inferno! - Paula fechou os olhos para não ver a expressão cruel no rosto de seu marido. Repentinamente sentiu que nada mais lhe importava. Sabia que Gil Howard aproximara-se dela apenas para ter um caso, pois não havia a menor profundidade em seus sentimentos. Era atração física e nada mais. Atirou a cabeça para trás. Dom Diablo continuava a olhar para ela.
- Sabe como fiquei sabendo a respeito do americano? Bem, quando cheguei em casa e não a encontrei esperando por mim, fui até o escritório para buscar a correspondência que se acumulara durante a minha ausência. Encontrei uma carta de um homem que já tinha trabalhado aqui, contando que minha mulher estava dormindo, era assim que estava escrito, com um americano chamado Gilberto Howard, que trabalhava numa joalheria, na cidade. Ele viu vocês conversando perto da loja e os seguiu até o apartamento dele. Você entrou, escreveu ele, e ele pensou que talvez tivesse ido ver algumas pedras preciosas. Mas quando ele a viu na cidade na manhã seguinte, compreendeu tudo. Juntou os fatos e tirou suas conclusões. Agora exige uma boa soma de dinheiro para não desmoralizá-la diante de todo mundo! Que tal uma notícia dessas para um marido que acaba de chegar de viagem? É uma acolhida agradável, não é verdade?
Ao ouvir essas palavras Paula emudeceu.
- Chantagem? Eu não dormi com Gil! Estava saindo da casa dele quando começou o terremoto e me atirou contra uma pedra. Gil cuidou de mim e, com toda aquela chuva, não me restava outra alternativa senão ficar lá! Ele... ele nem me tocou! Eu não deixaria! Não sou esse tipo de mulher! Devia saber melhor do que ninguém que eu... que eu...
- Sim, eu sei - disse baixinho. As mãos dele deslizaram pelo corpo de Paula e inclinando a cabeça pousou os lábios nos dela, as palavras ainda por dizer... Depois se afastou devagar e começou a examiná-la com os olhos semicerrados.
- Por que você foi até a casa dele, Paula? Ele é jovem e bem apessoado, por isso tinha todo o direito de pensar que uma jovem bonita como você podia se interessar por ele. Não me diga também que ele nem sequer tentou flertar com você e que não se sentiu lisonjeada com suas atenções... Por acaso estava tentando fugir dele quando tropeçou e caiu?
- Não - respondeu, com veemência e enrubesceu, pois era evidente a ironia nas palavras de Dom Diablo. - Ele foi amável e bom comigo. Lavou a minha testa e se comportou como um perfeito cavalheiro.
- Percebo! - A expressão dele continuava irônica. – Howard deve ter ficado resfriado só de olhar para a virgenzinha gelada, retirando-se antes que apanhasse uma pneumonia! É um homem corajoso, querida, tenho que admiti-lo!
Paula não pôde deixar de sorrir diante daquele humor sardônico.
- E o que pretende fazer com essa carta? Espero que não seja o empregado que você despediu! Será que ele está tentando voltar para cá, forçando-o assim a readmiti-lo?
- Exatamente - disse ele retirando as mãos dos ombros de Paula quando o copeiro chegou trazendo a bandeja com as bebidas e Paula percebeu que suas pernas estavam tremendo... Estava chocada com a chantagem do antigo cocheiro. Sabia que não podia provar que as acusações eram falsas, pois tudo conspirava contra ela.
- Quer um pouco de refresco? - perguntou ele, interrompendo seus pensamentos. Olhou para a jarra alongada e respondeu:
- Quero sim. - Só então Paula se deu conta de como estava seca sua garganta! Era com se estivesse perto de uma fogueira, parecia queimar por dentro. Ele tinha razão por estar indignado com a carta que recebera, mas apesar disso continuava impassível. Estendeu-lhe o copo com o refresco e serviu-se depois de uma tequila. Paula tinha a certeza de que ele não acreditara um instante sequer que ela o tivesse traído, mas bancava o marido ultrajado apenas para assustá-la.
- Obrigada - disse ela, tomando um gole com certa sofreguidão. - O que vai fazer agora? Não vai poder simplesmente ignorar a carta!
- Vou procurar este homem e ameaçá-lo com cadeia! Sei algumas coisas sobre ele e conheço bem o inspetor local. Ele não vai conseguir nada com suas acusações!
- Mas algumas pessoas poderão acreditar nos mexericos...
- Não lhe darei um tostão! Pagar é admitir a culpa – respondeu bruscamente. - Além disso você me assegurou que não houve nada entre você e Gil Howard! Eu detestaria não confiar mais em você, minha querida. É uma mulher virtuosa, sei disso, mesmo quando faz amor comigo. Você sempre me dá a impressão de que a estou violentando! Por quê?
- Eu... eu não sei o que fazer... mas eu não consigo...
- Já sei, você me odeia e eu tenho que me contentar em possuí-la contra a sua vontade. Você sabia que isso acaba com a paciência até de um santo? E não é o meu caso.
- E como foi a sua viagem? - perguntou ela, tentando mudar de assunto.
- Andei muito a cavalo. Os cavalos de lá são fantásticos! Comprei uma égua com um potrinho para você. Devem chegar dentro de poucas semanas.
Semanas! O coração de Paula pareceu explodir dentro do peito. Ele falava como se o relacionamento entre eles dois fosse o mais normal do mundo e que continuaria assim.
- O que foi que houve? - perguntou ele. - Você gosta de montar e poderá cuidar dos dois. São negros e brilhantes como seda, e posso assegurar-lhe que farão um belo contraste com o seu tipo loiro! Aliás devo dizer-lhe que está encantadora com esse traje tipicamente mexicano! - Ao dizer isso sua voz se tornou mais profunda e seus olhos negros a envolveram dos pés à cabeça. Paula teve vontade de sair correndo! Não acreditava que ele tivesse procurado outra mulher e seu instinto lhe dizia que ainda a desejava com paixão! Teria pois que se submeter a ele, embora sua vontade fosse fugir dali. Era tanto o medo que começou a se sentir mal!... Estava ainda muito chocada com aquela história da carta e além do mais muito fraca. Não tinha mais força moral para reagir, como fazia antes! Temia que ele, a levasse para o seu quarto e mais uma vez a possuísse à força.
- Não se preocupe, querida, por enquanto me contento em olhar para você, quero vê-la mais tranqüila. Sua aversão por mim faz com que meu sangue ferva ou congele, depende do meu humor no momento. - Acendeu um charuto e soltou a fumaça pelas narinas, encostando a cabeça escura na almofada da cadeira. Desapertou então o nó da gravata e Paula ficou pensando por que os gestos dele tinham tamanha sensualidade! Bastava que ele entrasse no quarto para que o ambiente ficasse carregado, tenso, como se emanasse de seu corpo uma força magnética muito intensa. Ocorreu a ela que ele devia ter sido um menino levado e imprevisível! Teria dado muito trabalho aos pais? Aliás nunca falara deles para Paula. Como teria sido ele quando garoto? Só sabia que o apelido de Diablo fora sua mãe quem lhe dera. Seria como as outras mulheres mexicanas que se orgulhavam de serem dominadas?
De repente interrompeu seus devaneios. Sentiu que estava sendo observada por ele que, em seguida, começou a acariciá-la. Era como um domador agradando sua presa, embora essas carícias pudessem se transformar em algo perigoso, traiçoeiro... Dom Diablo tinha trinta e seis anos e conhecera muitas mulheres apesar de ter tido um único amor. Interessara-se por ela por ser um pouco diferente das outras. Excitava-o com a sua indiferença, mas nada disso podia durar se não houvesse amor. Paula teria que aceitar um futuro ou então arrumar um jeito de conseguir seus documentos e fugir dali.
- Seus olhos refletem um conflito interior - disse ele, inclinando-se para frente. - Sei que a fazenda não passa de uma prisão para você. Será que nunca poderá ser feliz aqui, querida?
- Nunca! - retrucou Paula com veemência. - Sou muito inglesa para conseguir criar raízes neste solo castigado pelo sol! Às vezes me pergunto por que tenta se apegar a uma estrangeira que não o ama! Será que não seria melhor uma latina que se deleitaria com o seu domínio e com a sua... sua...
- Será que não consegue sequer pronunciar a palavra? É uma palavra simples!
- Sensualidade! - exclamou Paula, nervosa, enquanto ele apoiava a palma da mão em sua coxa.
Dom Diablo sorriu, mostrando os dentes muito alvos.
- Tenho uma surpresa para lhe mostrar depois do almoço, querida. É uma pequena lembrança, chamemos assim, que eu trouxe para. você da América do Sul. Comprei em Lima, onde passei dois dias - parou de acariciá-la, deixando-a com uma sensação de vertigem.
- Creio que eu gostaria de almoçar aqui - disse ele. - Será que você poderia encomendar o almoço enquanto eu tomo uma ducha? Viajei durante muito tempo e estou ansioso por trocar de roupa. Diga a Orazio que eu gostaria de uma bisteca como entrada, uma garrafa de Cadiz e queijo com azeitonas.
- Sim, mestre - respondeu ela. Mas quando Dom Diablo olhou para ela com sensualidade, Paula levantou precipitadamente, consciente de sua excitação! Sentia que a paixão estava prestes a explodir como uma labareda naquele corpo másculo e viril! Chegando à escada externa em forma de caracol, que levava até o pátio, Paula se sentiu suficientemente segura para lhe perguntar:
- Como quer as bistecas? Com cebolas, senhor?
- Sim, com cebolas - respondeu como se a estivesse provocando.
O coração de Paula batia descompassadamente enquanto descia a escada apoiada no corrimão de ferro batido... A lua prateada aparecendo através das janelas enormes formava sombras assustadoras. Paula lembrou-se então da lua batendo em seu corpo, na cama de Dom Diablo. Começou a correr, perseguida pela risada dele.
Ele desceu para o almoço com uma camisa bege de seda e calças pretas, muito estreitas, o cabelo brilhante ainda molhado. Paula trocara o vestido por uma calça azul e uma camiseta branca. Prendera o cabelo com uma fita e não usava pintura. Supôs que caso se apresentasse vestida como uma colegial, arrefeceria o entusiasmo dele. Olhando intrigado para ela, comentou:
- Se pensa que consegue assim desviar minha atenção de você, está enganada, querida. A única coisa que poderia diminuir o encanto desse corpinho esguio seria a armadura de um guerreiro espanhol! Já viu a coleção que temos na ala velha da fazenda? Nem um rato consegue penetrar naqueles trajes...
- É muito engraçado, senhor - tentava parecer natural. - Imagina que eu gritaria só por causa de um rato?
- Não; acho que você só grita por causa do marido, por incrível que pareça... - Pôs um pouco de açúcar no melão e começou a comê-lo com prazer. Paula notou uma expressão maliciosa em seu rosto. Parecia que estava planejando alguma coisa. Pensou que talvez fosse a surpresa que prometera para depois do almoço...
- A bisteca está boa - disse ele. - Por melhor que seja a comida dos restaurantes, não há nada melhor do que a comida de casa! Um pouco mais de vinho, meu amor?
- Só um pouquinho, por favor...
- O vinho é excelente, não é verdade? Sabe, eu tenho uma vinha na Espanha. Qualquer dia temos que ir à Europa para visitarmos juntos esse velho país.
- Eu já estive na Espanha - disse ela. - Marcus me levou há uns dois anos.
- Bem, ir com Marcus e ir comigo são duas coisas completamente diferentes - respondeu, observando-a enquanto tomava um gole de vinho. - Comigo irá conhecer a verdadeira Espanha, aquela que o turista não vê... Tenho alguns parentes na Costa Brava. Você não pode imaginar quanta magia e recuerdos existem nos pátios andaluzes...
- Recuerdos? - perguntou Paula, percebendo que Dom Diablo considerara sua viagem com Marcus uma coisa muito superficial. - O que quer dizer exatamente recuerdo? Muitas palavras espanholas parecem ter vários significados...
- A palavra só pode ser traduzida como nostalgia, sonhos, lembranças nebulosas de anseios que parecem existir mais na imaginação do que na vida real. A realidade é o sol quente; saudade é a luz fria da lua. O luar pode causar desilusões assim como as lembranças do passado, por isso temos que ter cuidado para não vivermos só do passado. Para o espanhol, assim como para certas pessoas, há no recuerdo uma espécie de agonia e êxtase sublimes. Se não existisse esta sensação o amor perderia sua força, sua fascinação...
- Romance! - exclamou Pauta. Parecia perplexa. - Nunca imaginei que acreditasse em algo tão efêmero, tão distante da realidade, das necessidades da vida. Na verdade não consigo concebê-lo como uma pessoa romântica!
- O que significa, querida, que nunca procurou realmente me conhecer.
- Não! - Paula sacudiu a cabeça violentamente. Pensava em lhe dizer o que realmente imaginava dele quando se lembrou da fotografia que encontrara em seu quarto. Ao falar em recuerdo, ele provavelmente se lembrava daquela mulher... Dom Diablo tinha razão, ela pouco conhecia sobre os seus sentimentos. Ele lhe dava somente o amor físico. Quem sabe o amor que ele estaria reservando para o filho que ela talvez lhe desse... Tinha a certeza de que Dom Diablo o amaria de verdade, pois brincava sempre com os filhos de Juan Feliz e com outras crianças da fazenda. Embora agressivo, havia nele um grande potencial de afetividade.
- O que você ia dizer? - perguntou ele. Mas sabia perfeitamente o que era, por isso mesmo verbalizou: - Que eu sou duro como aço, que não enxergo o luar e não sei o que é nostalgia? Bem, talvez você tenha razão. Quando eu olho para você, aí sentada, o sol batendo nos seus cabelos loiros, é o lado físico da minha pessoa que reage, que sente o prazer... Por que estremece, Paula? Não é possível que você se sinta encabulada após dois meses de casada!
- Creio que muitos anos se passarão antes que eu me sinta de outra forma. Você tem um jeito de olhar, um jeito de falar muito diferente do que eu estava habituada...
- Ainda bem que acha diferente! - Franziu ligeiramente a testa. - Morar na Inglaterra com um tutor e viver no México com um marido mexicano, são duas coisas realmente diferentes...
- Marcus cuidava de mim, ao passo que você me domina... Ele conversava e divagava comigo, discutíamos pensamentos e pontos de vista ao passo que você não está absolutamente interessado nisso, não é verdade?
- Não aponto de me abstrair de seu corpo delicioso, querida... Eu me consideraria um idiota se tivesse me casado com você somente para discutir boas leituras ou quadros célebres! Será que esperava realmente isto? Em vez do relacionamento normal de um matrimônio, preferiria a aberração de um marido que não tivesse livre acesso ao seu quarto? Quando nos conhecemos, na Inglaterra, pensou que por eu ser apenas dezesseis anos mais velho do que você, iria me comportar como se tivesse cem anos?
- Eu... eu nem pensei nisso - baixou os olhos pois esse assunto fazia com que se sentisse pouco à vontade... - Eu estava em estado de choque e sabia disso, senhor. Aproveitou-se então das circunstâncias... - Eu jamais teria me casado com você se tivesse tido tempo para considerar a proposta! Disse mesmo a verdade quando mencionou que Marcus o aprovara como meu... meu marido?
- Tenho meus vícios e também minhas virtudes... Uma delas é que não minto! Posso distorcer um pouco os fatos... Eu a vi em Stonehill e... desejei-a. Pedi sua mão a Marcus e ele me respondeu que lhe transmitiria o pedido quando voltassem para casa depois da festa. Ele possuía muitas terras e uma boa casa, sabia que quando morresse tudo iria para as mãos de um sobrinho. Contou-me isto e pode estar certa de que você era a sua maior preocupação. Queria que ficasse garantida no caso dele vir a faltar. - Curvou-se e brincou com a faca.
- Marcus me pediu que eu fosse bom para você.
- E você preferiu ignorar esse pedido...
- É mesmo? - pousou a faca na mesa, a lâmina cintilando ao sol como os olhos dele.
- Porém seu tutor esqueceu de me dizer que você tem uma língua afiada e que gosta de discutir, para o que, aliás, eu não estava preparado. Você não é o anjinho que eu esperava e eu a tratei da mesma forma.
- Imagino que Carmenteira lhe contou... A velha costuma entrar no meu quarto sob o pretexto de arrumar as flores e me provoca com suas conversas, indo depois contar tudo a você! Ninguém gosta de mim aqui, detestam meus hábitos e minha roupas, teriam preferido uma patroa latina. Por que você não se casou com uma mexicana?
- Porque me casei com você - respondeu bruscamente.
- E pelo jeito está tão arrependido quanto eu!
- É mesmo? - perguntou uma voz que parecia vir lá de fora. - É assim que vocês se comportam quando estão sozinhos?
Surpresos, se voltaram para saber quem dissera aquelas palavras.
- Madrecita! - exclamou ele, levantando-se rapidamente. - Então acabou descobrindo?
- Deu uma risada. Parecia desconcertado. - Descobriu que quando estamos a sós não arrulhamos como dois pombinhos?
- Bem, Diablo, ponha dois pombinhos numa gaiola e eles acabarão se bicando até morrer
- respondeu aquela senhora bonita e morena, que aparecera no terraço em meio à discussão deles. Vestia uma roupa escura e estava cuidadosamente penteada.
Paula olhava intrigada para ela, pois Dom Diablo a chamara de mãezinha. Pensava que ele não tinha mais parentes próximos vivos. Será que era esta a surpresa que mencionara antes? Teria ela chegado com ele? Como se afastara da balaustrada, quando ele desceu do carro, Paula não poderia tê-la visto.
- Madrecita, quero lhe apresentar minha mulher, sobre a qual fez restrições por ser inglesa! Lembra-se de me ter dito que seria como sal e pimenta no mesmo pote?
- Sim, Diablo, eu disse isto - a velha senhora estava com os olhos fixos em Paula. - Você é bonita mesmo! Agora que a conheço posso compreender por que Diablo perdeu a cabeça! Sal e pimenta não misturam bem mas podem dar um sabor interessante. Venha, venha dar um beijo em sua avó. Sim, querida, Diablo me chama de madrecita, mas sou avó dele.
Paula deu a volta na mesa e, aproximando-se da velha, inclinou a cabeça e deu-lhe um beijo.
- Estou muito feliz por conhecê-la, senhora - disse timidamente. - Eu não sabia que a senhora viria à fazenda...
- Imagino que meu neto quisesse lhe fazer uma surpresa... Ele me disse que você era jovem, loira e inexperiente. Esqueceu-se porém, de mencionar sua beleza! Sente-se, por favor. Parece estar tremendo!
- Eu... estou sim - confessou Paula, olhando então para o marido que continuava impassível. Não dava o braço a torcer...
- Sente-se, Paula - Dom Diablo segurou-a pelo braço e obrigou-a a sentar-se. Mas, diante da avó, não apertou seu braço nem tampouco o acariciou. Ela sentiu então uma vontade estranha e louca de lhe agarrar a mão e apertá-la contra seu corpo!
Aquele dia fora bastante estranho. Após ter sido apresentada à sra. Joaquina Calhariz e mantido com ela um diálogo polido mas artificial, Paula ficara sozinha. Dom Diablo e a avó saíram de braços dados para dar um passeio pela estância, que ela não via há muitos anos. Era sua avó pelo lado materno e quando Carmenteira falava da antiga patroa referia-se a ela.
Naquela noite, os três jantaram juntos. Depois do jantar ele levou a avó até seus aposentos, onde sua criada particular a esperava. Paula ficou na sala e, estranhamente, Dom Diablo não voltou para lá. Ela foi então para seu quarto desapontada, pois esperava pelo marido e ele não aparecera.
Paula acordou muito cedo e agora passeava pelo jardim. Havia orvalho nas flores, pois era muito cedo. Não dormira bem, acordara várias vezes, inquieta. Adormecera, afinal, acordando de madrugada com o canto dos pássaros. Vestiu-se e foi dar seu passeio pelo jardim. Começou de novo a pensar como poderia sair daquele lugar onde nunca se sentiria bem... Seu olhar vagava pelas parreiras cobertas de orvalho e as flores multicoloridas.
Uma borboleta pousou sobre uma delas, movimentando as asas, como que intoxicada pelo néctar que sugava. Paula ficou imóvel para não perturbar o inseto. De repente, ouviu os sinos da capela tocando. Assustou-se e a borboleta voou para longe em direção à capela. Paula inconscientemente a acompanhou, chegando até a entrada. Sentiu então, um aperto no coração. Diante do altar, no meio de uma profusão de velas e rosas brancas, estava Dom Diablo. A cabeça escura estava inclinada. Ele rezava. Sabendo que ele ignorava sua presença, Paula observou-o durante alguns minutos. Sentia-se como que pregada ao solo, não conseguia se mexer. Finalmente se afastou e dirigiu-se até o pátio onde tomava o café da manhã quando Dom Diablo não estava. Sentou-se e esperou que a jovem criada lhe trouxesse o desjejum. Costumava servi-lo em seu quarto e, com certeza, a bandeja devia estar lá ao lado da cama. Imaginou o que a criada pensaria quando visse a cama tão desarrumada.
Paula mordeu os lábios ao apanhar um botão de rosa. Ao segurar a flor, feriu-se com um espinho. O sangue escorreu de seu dedo... Levou-o aos lábios, pensando novamente na criada. Iria certamente bisbilhotar na cozinha que o patrão estava encantado por voltar para casa, ao lado de sua esposa!
Por que razão ele deixara trancada a porta de seu quarto? Seu instinto lhe dizia que ele não havia estado com outra mulher. Será que a presença da avó o constrangia? Talvez fosse isso, mas Paula não achou pretexto muito convincente... Lembrou-se da figura alta na capela, pareceu sentir novamente o perfume forte das rosas brancas, como a pele de uma mulher... Conteve a respiração, pois lhe pareceu mais plausível que a presença da avó lhe tivesse trazido recordações daquela mulher cuja morte ele tanto chorara... Talvez por isso não a procurara na noite anterior. Será que ele e a avó conversaram sobre sua primeira esposa, relembrando sua presença na fazenda, sua beleza, sua alegria de viver? Provavelmente, como todos os outros, a madrecita não aprovara a escolha de uma esposa inglesa. Imaginou então os dias que teria pela frente com a avó do marido vigiando todos os seus passos. Observaria suas roupas, suas atitudes em relação a ele, criticaria sua falta de afeição e carinho, o que certamente não aconteceria com uma esposa latina!
- Não agüento mais! - resmungou Paula para si mesma. - Tenho que ir embora! - Sentiu então a presença de alguém no pátio. Tentando se controlar, levantou-se e virou com naturalidade para ver quem se aproximava. Esperava que fosse Dom Diablo. Mas era sua avó.
- Bom-dia, minha menina! - A voz era suave, mas fria. Vendo-a se aproximar, Paula teve que se controlar para não sair correndo e fugir para longe daquela mulher que a ouvira dizer ao marido que se arrependera amargamente de ter se casado com ele. Devia estar chocada. A velha a media de alto a baixo. A calça comprida realçava o corpo bem feito de Paula.
- Bom-dia, senhora - respondeu, polidamente.
- Eu contava poder conversar com você a sós. Quando a criada me disse que você estava aqui esperando o café, decidi vir ao seu encontro. Em geral eu não costumo me levantar tão cedo, portanto fique certa que só por estar muito interessada em você é que uma velha cansada como eu, habituada a ler os jornais na cama, mudou os seus hábitos.
- É muita gentileza de sua parte - Paula não conseguia ficar à vontade. Com toda a certeza ela não conseguia aceitá-la como esposa do neto que adorava!
- Sinto o corpo dolorido após a viagem de ontem, mas eu simplesmente tinha que vir, pois precisava conhecê-la, minha querida! Sente-se, não quero ter que olhar para cima. Você é bem alta, apesar de não parecer quando está perto de meu neto. O que você acha dele?
- Bem... eu o acho bem diferente dos ingleses – respondeu Paula, sentando-se do lado oposto da mesa. Sentia-se observada pelos olhos vivos e terrivelmente penetrantes da velha.
- Se o acha tão diferente, por que se casou com ele? - A pergunta foi tão direta que Paula percebeu que Dom Diablo não lhe contara a verdade sobre o relacionamento deles. Ela devia pensar que haviam se encontrado e namorado normalmente. Por um instante sentiu-se tentada a contar a verdade... Depois desistiu, pois não valia a pena causar-lhe aborrecimentos. Era natural que amasse o neto, pois tinham o mesmo sangue! Os laços entre os dois eram muito fortes e ninguém seria capaz de rompê-los. Paula, aliás, não tinha a menor intenção de fazê-lo.
- Simplesmente aconteceu... - respondeu, hesitante. – Nós nos encontramos e nos casamos um pouco precipitadamente.
- E agora está arrependida? - perguntou secamente. – Eu seria uma velha idiota se achasse que esse casamento foi o ideal para meu neto. Mas ele sempre gostou de desafios.
- Sorriu então, e estendeu a mão para segurar o dedo de Paula, onde estava a aliança de ouro. - Foi o dinheiro dele que a atraiu para o México? As européias são às vezes tão mercenárias como as americanas. Eu pessoalmente acho que as mulheres do norte estão perdendo a capacidade de se entregar totalmente a um homem, contrariamente ao que fazem as latinas. Vocês entregam o corpo, mas conservam a alma numa câmara frigorífica!
- Mas eu não sou assim! Mas... é que eu sei...
- O que é que você sabe?
- Carmenteira me contou certas coisas, pois conhece todos os segredos desta casa... Como todos, ela se ressente do fato de eu não ser latina, e... me contou tudo a respeito do desgosto de Dom Diablo, há seis anos. Ele está tão arrependido quanto eu com o nosso casamento, a senhora ouviu bem a nossa conversa ontem à noite...
- Na verdade não me surpreendi muito. Logo que ele me contou que você é inglesa, soube que só muita tolerância e muito esforço fariam com que esse casamento desse certo...
- E agora viu que não está dando... - Paula baixou os olhos. - Bem, aí vem a criada com o café - disse a velha. – Sinto mais fome hoje. Em geral não como nada de manhã. O que foi que trouxe para nós, garota?
A jovem sorriu graciosamente para ela e, levantando o guardanapo imaculadamente alvo, mostrou uma "tortilla", ovos, presunto e ervas aromáticas. O presunto picado foi servido com pão caseiro, feito naquela mesma manhã. Um perfume saboroso de café saía do bule de prata, junto do qual estava um pote com creme de leite. Os olhos da velha brilharam.
- Tudo me parece delicioso! - esfregou as mãos num gesto de satisfação. - Agora compreendo, Paula, por que você toma o café no pátio. Adoro tudo isso! - Abriu então a compoteira com morangos frescos. Maravilha! Quem poderia querer um desjejum melhor do que este?
- Em geral trazem abricós, roscas e às vezes figos também. - disse Paula e sorriu. - Isto tudo foi feito em sua honra, senhora!
- O patrão virá também tomar café? - perguntou a criada após servir a mesa.
- Creio que não, deve ter saído a cavalo - respondeu Paula e sentiu a garganta seca. - Eu o vi esta manhã bem cedo e já estava vestido com os trajes de montaria. - Ao dizer isso, levantou a tampa do bule sentindo uma necessidade quase desesperadora de café quente com creme. Pensou novamente em Dom Diablo de pé na capela, um raio de luz batendo em suas botas reluzentes. Nunca usava esporas apesar de seus cavalos serem impetuosos e bravos. No dia em que sua mulher morreu, segundo lhe contara Carmenteira, ele cavalgara em Satanás horas a fio, até que o animal caísse de exaustão! Paula tinha certeza de que agora ele estava galopando loucamente pelos campos, montado em seu cavalo favorito! - Deixe o café preparado para ele, creio que estará de volta dentro de meia hora.
- Sim, senhora - disse a moça e se retirou.
- Você já fala bem espanhol - comentou a velha enquanto salpicava a sua "tortilla" com pimenta. - Foi Diablo quem ensinou você?
- Aprendi espanhol quase mesmo sem querer. Fui aprendendo aos poucos; aliás eu já sabia um pouco antes de vir para cá. Deseja um pouco de creme, senhora?
- Obrigada. Como é que Diablo chama você? Nós latinos temos mania de apelidos. Mas seu nome é muito bonito.
- Foi meu tutor quem o escolheu. Ele pretendia ser escritor, mas depois achou que sua vocação era outra. Foi um famoso jogador! Dom Diablo não lhe contou?
- Provavelmente iria me contar - a velha provou quase tudo com um sorriso de aprovação.
- Está saboroso como eu imaginava...
- Ele jamais me chamou por outro nome! Só agora se dera conta disso. Creio que também gosta dele...
- Percebi que o casamento de vocês não vai bem - o sorriso desaparecera do rosto da velha senhora. - E espero que você não esteja pensando em abandonar meu neto!... Ele simplesmente a traria de volta!
- Como uma escrava!
- Como uma esposa e não como uma criança tolinha. Você tem toda a liberdade de passear pela fazenda! Há muitos maridos nesta região que tratam muito mais duramente as mulheres do que ele! Reconheço que tem defeitos mas tem também qualidades raras, no que se refere a mulheres. Ele respeita os sentimentos da mulher não vendo nela somente uma máquina de fazer filhos, como tantos por aí! Você está consciente disso ou é tão ingênua aponto de não perceber que encontrou um homem muito especial?... - Repentinamente sua voz se tornou áspera, agressiva. - Ele me havia dito que você era jovem, mas nunca pensei que fosse tão infantil...
- Não é verdade, acho que enfrentei com coragem a minha vinda para uma país totalmente estranho, como mulher de um estranho, que na verdade só deseja de mim uma coisa...
- Orgulhe-se disso, se é que é uma verdadeira mulher...
- Disse que ele não considera as mulheres máquinas criadeiras, mas é só isso que quer de mim, um filho! - desabou Paula com lágrimas nos olhos. - Um filho para herdar suas propriedades, seus rebanhos, seus estábulos, suas fazendas. Não lhe importa o fato de eu amá-lo, pois não é preciso amor para gerar um filho... Basta que eu provoque seus instintos animalescos...
- Basta! - A velha largou os talheres bruscamente, como Dom Diablo quando se zangava.
- Afinal, onde foi que meu neto a encontrou? No cais de algum porto inglês onde as mulheres usam a mesma linguagem dos homens?
Paula enrubesceu violentamente. Não pretendia porém perder o controle nem a dignidade, mas não podia continuar a bancar a noiva apaixonada só para agradar aquela mulher que, como as outras pessoas daquela casa, a tolerava apenas por ter sido escolhida por seu neto. Não a considerava realmente a patroa, era a Dom Diablo que se dirigiam quando alguma decisão importante devia ser tomada. Paula empurrou a cadeira para trás e se levantou bruscamente. Seu rosto estava pálido, seus olhos arregalados!
- Saiba que eu não quero um filho dele! - gritou ela. – Eu preferiria me atirar num desfiladeiro do que dar à luz a um filho dele! - Suas palavras ainda ecoavam no pátio quando Dom Diablo, de culote e botas, surgiu na frente delas. Pela expressão de seu rosto era evidente que ouvira suas palavras desagradáveis e agressivas. Pareciam tê-lo atingido como uma chicotada. Sua boca se contraiu num esgar estranho.
Paula, quando o viu, saiu correndo, apavorada. Fugia dele e de tudo que fosse ligado a ele. Dirigiu-se à escada que levava à galeria superior, pois de lá podia chegar até o quarto. Queria ir embora, insistiria para ir. Ele não poderia prendê-la, obrigando-a a ficar contra a sua vontade. Não poderia ser tão pouco civilizado, tão cruel... Subiu correndo os degraus, tinha medo que ele a seguisse.
- Paula, vai acabar quebrando o pescoço!
Ela não parou de correr, mas ao ouvir suas palavras, sentiu como se seu coração fosse parar. Se ele conseguisse alcançá-la...
- Não! - gritou ela, continuando a correr. Ao chegar à porta do quarto, o suor correndo pelo seu rosto, a blusa colada ao corpo, o cabelo em desalinho, caindo pelas costas, virou-se um instante para olhar para ele. Parecia furioso, com uma expressão terrível no rosto. O olhar alucinado parecia querer vingar do insulto que ouvira... Um soluço subiu-lhe à garganta e Paula atirou-se para dentro do quarto, trancando a porta a chave. Sabia, porém, que nem assim estaria a salvo, pois ele poderia passar pela outra porta que ligava o seu quarto ao dele. Estava presa em uma armadilha! Agora teria que enfrentar a sua justa ira!
Oh, Deus! Dizer aquilo à avó dele! Ele jamais a perdoaria. Aquilo teria sido um golpe para a velha senhora, cujas únicas esperanças neste mundo se concentrava nos netos e bisnetos, em sua descendência na fazenda Ruy, uma testemunha para o seu orgulho espanhol, de que a família continuaria a controlar a propriedade.
Aterrorizada, Paula olhou ao seu redor... Para onde poderia fugir? De repente viu a porta do terraço que dava sobre o desfiladeiro. Ficaria mais protegida ali, pois ele não iria gritar nem ameaçá-la estando à beira de um precipício... Talvez se assustasse e a deixasse ir embora... Já estava diante da porta de vidro, prestes a sair ao terraço, quando ele apareceu. Sua figura alta, séria, ameaçadora era a verdadeira imagem do juiz universal!
Paula não pôde suportar o seu olhar! Correu então para o parapeito do terraço. Sentia-se como um animal perseguido que não sabia mais para onde fugir! Segurou-se na balaustrada, agarrando-se ao parapeito e chorando convulsivamente, quando sentiu as mãos fortes de Dom Diablo em seus ombros. Gritou então, chamando-o pela primeira vez pelo nome. Foi um grito desesperado, lancinante. Paula só via seu rosto enquanto ele a envolvia fortemente em seus braços musculosos.
- Você não vai fazer isso! -sua voz estava tensa carregada de paixão e súplica. - Jamais permitirei que uma mulher faça isso novamente nesta casa! - Carregou-a então nos braços e levou-a para dentro do quarto. De repente, Paula desatou num pranto dolorido, as lágrimas correndo pelo rosto, enquanto, ele a pousava suavemente sobre a cama, deitando-se sobre ela.
- Então você prefere se matar a viver comigo? - Paula o ouvia, mas estava perturbada demais para compreender o que ele dizia. Continuava ali, deitada, presa à cama pelo peso de seu corpo forte e de seus braços firmes. Sentia aqueles olhos negros fixos em seu rosto. A expectativa e o silêncio fizeram com que, finalmente, ela parasse de chorar. Começou então a compreender o que ele quisera dizer...
- Não... não era isso, eu jamais me atiraria de lá! Eu não pretendia fazer isso, só estava com medo de você e não sabia mais para onde fugir!
- Medo? - Seu rosto agora estava mais calmo, mas seus olhos muito abertos refletiam perplexidade... incredulidade... Era incrível que ele tivesse acreditado que ela pretendia se atirar de lá de cima, pensou Paula.
- Sim, você parecia furioso com o que eu disse! Oh, por que não me deixa ir embora e acaba logo com isso?... Que prazer pode ter em me prender aqui sabendo que... bem, acho que o senso de posse e de domínio é muito forte em seu sangue... Você se interessa por mim só porque quer que eu lhe dê um herdeiro...
- Tem certeza que é só por isso? - uma certa ironia sublinhou o seu sorriso. - Minha querida, se tudo o que eu desejasse de uma mulher fosse um filho, eu poderia ter escolhido uma mulher mexicana afetuosa e fecunda, que se sentiria radiante de poder me dar um filho por ano! Deus sabe por que eu quis me casar com você, mas não a quero infeliz a ponto de querer se suicidar... - Ao dizer isso uma expressão atormentada se estampou em seu rosto. Subitamente ele começou a acariciá-la. Primeiro o pescoço, depois seus ombros onde apoiou o rosto. - Já vi uma vez uma mulher se esvair em sangue sobre-aquelas pedras do pátio! Quero que saiba de uma coisa, Paula, se está tão desesperada para sair daqui, então é melhor que o faça!
Paula, ao ouvir estas palavras, não se sentiu contente nem aliviada... Foram as palavras que ele dissera antes que ficaram martelando em sua cabeça.
- Então foi assim que ela morreu? - perguntou, num sussurro, como se tivesse medo de falar sobre isso.
- Sim! - Ele deu um profundo suspiro e então, como se só então percebesse que a estava quase esmagando com seu peso, levantou-se. Paula experimentou então uma sensação de frio, de abandono. Precisava segurá-lo, apertá-lo contra seu corpo, de tal modo que nem uma sombra pudesse se interpor entre os dois. A sensação era tão forte, que seus dedos agarraram a colcha de renda... Ela desejava, queria Dom Diablo, mesmo que ele não a amasse!
- Como ela pôde fazer isto? - perguntou suavemente. – Como pôde ela fazê-lo sofrer, sabendo o quanto era amada?
- Ela sabia que eu gostava dela, mas me culpava pela morte de Alvarado. - As palavras saíam entrecortadas e hesitantes como se ele nunca tivesse pensado em dizê-las, muito menos a ela.
- Quer dizer que ela amava Alvarado? - perguntou Paula.
- Mas é claro! - Franziu as sobrancelhas. Parecia intrigado. - Ele era o filho predileto, apesar de eu amá-la muito. Ela era encantadora e muito bonita! Via em Alvarado a própria imagem: magro, com olhos enormes iguais aos dela e a mesma maneira despreocupada de encarar a vida. Para ela, meu irmão era o santo e eu o diabo; para ela eu encarnava o diabo desde o dia em que Alvarado e eu fomos até um rochedo onde um cação tinha seu esconderijo. O cação havia chegado até a praia e arrancado as pernas de um pescador. Alvarado desafiou-me a ir com ele até lá para matá-lo. Mamãe me disse que eu deveria ter me recusado e não ter deixado Alvarado ir. Mas ele teria ido de qualquer forma e, como temesse que o cação o tocasse como fizera com o pescador, achei mais prudente ir junto. Conseguimos matar o monstro usando uma espécie de arpão usado pelos índios. Após o feito houve uma festa na cidade para festejar o acontecimento.
Dom Diablo fez uma pausa, seus olhos tristes pousaram em Pauta, que continuava imóvel, ouvindo atentamente suas palavras. Ele chamara a mulher de mãe e Paula dera um suspiro de alívio. Praticamente, sem dizer nenhuma mentira, Carmenteira insinuara que a mulher da fotografia era sua amada quando na realidade era sua mãe!
- Naquela época, o mar era muito poluído e a praia estava cheia de abutres. Provavelmente foi nessa ocasião que Alvarado apanhou a poliomelite, pois havíamos ficado por mais de duas horas ali na arrebentação das ondas. Alguns dias depois surgiram os primeiros sintomas graves. Um pulmão de aço veio da Cidade do México, mas foi em vão. Meu irmão entrou em agonia, pois seus pulmões pararam de funcionar. Mamãe não o deixou um instante sozinho, desde o início da doença, e ficou a seu lado até o fim... Depois me disse umas palavras que jamais poderei esquecer: que teria preferido que eu tivesse morrido, em vez de Alvarado; que era a reencarnação do demônio, pois havia levado Alvarado ao mar e deixado que se contaminasse com aquela água poluída; que eu era muito forte e resistente como meu pai, mas como Alvarado era alegre, despreocupado e bonito, uma alegria para os olhos, fora ele a vítima!
Paula fez de novo uma pausa longa e dolorosa. Nesse momento, já estava louca para afagá-lo, confortá-lo, mostrar que não acreditava mais que ele fosse diabólico! Foram as circunstâncias que o tomaram assim tão duro! Afinal se considerava responsável pela morte da própria mãe!
- O fato aconteceu no mesmo dia do funeral, ao cair da tarde. Escutei um grito, saí correndo e fui o primeiro a encontrá-la. Isto aconteceu há seis anos, desde então a fazenda se tomou um lugar sombrio... Um dia então encontrei um homem chamado Charles Paget que me mostrou uma miniatura, pedindo que se algum dia eu fosse à Inglaterra me certificasse de que sua filha não estava passando por dificuldades, nem em má situação. Você apareceu então em minha vida, como um raio de sol! - Olhava para o cabelo de Paula contra o travesseiro de renda branca. Seu rosto espelhava um conflito: a vontade de acariciá-la e o medo de ser repelido. Ela reagia sempre ao seu desejo, comportando-se como uma vítima, jamais retribuindo sua paixão nem participando do seu ato de amor. Mas mesmo que fosse só paixão o que ele tinha para lhe dar, percebera que agora o amava bastante para aceitá-lo. Espontaneamente, inclinou-se e pousou seus lábios na fronte dele, dando-lhe um beijo prolongado. Dom Diablo continuou muito quieto, parado, aceitando essa primeira carícia voluntária. De repente começou a falar com uma voz dura, fazendo com que ela recuasse.
- Não quero sua piedade. Seria a, última coisa que eu desejaria de você! Será que ainda não entendeu? Não é suficientemente mulher para saber o que eu quero de você?
- Eu sempre soube - disse ela tentando não chorar de pena dele e dela mesma. - É uma palavra de quatro letras, mas eu não consigo pronunciá-la!
- Tem que conseguir - disse ele, carrancudo. - Você sempre consegue pronunciar a palavra ódio, por isso eu não tinha esperança de que pudesse pronunciar outra palavra mais suave...
Perplexa, Paula olhou para ele.
- Como esperava que eu dissesse, é uma palavra tão pesada!
- Pesada! - Correu os olhos pelo seu corpo com uma expressão curiosa em seu rosto. Um sorriso então aflorou em seus lábios. Há apenas duas palavras que significam realmente alguma coisa entre um homem e uma mulher; podem existir tudo ou nada. Então, minha querida, acha que é luxúria o que sinto por você, como algum cretino incapaz de outros sentimentos, outras reações que não sejam aquelas de um animal? Eu ansiava por lhe dar o paraíso, mas parece que não consegui, ao contrário, fiz de sua vida um inferno! Antes de eu viajar para a América do Sul pensei que tivesse conseguido fazê-la compreender o que eu sentia e sinto por você, mas vejo que me enganei totalmente - suspirou profundamente e passou a mão pelo rosto. - Eu fiz a barba um pouco rapidamente esta manhã, mas como era o aniversário de minha mãe, queria levar-lhe algumas flores na capela. O que foi? Por que está me olhando assim?
- Eu o vi. Eu o vi, Diablo - respondeu suavemente. Eu o vi na capela hoje de manhã, entre as rosas e as velas. Você me pareceu tão solitário! Eu... eu não irei embora, você vai ficar muito só. Por favor, não se exalte nem grite mais comigo. - Aproximou-se então e passou os braços ao redor de seu pescoço, puxando-a contra seu corpo. - Eu não estou sentindo compaixão, o que eu lamento é ter sido tão cega e idiota!
Abraçou-a com força e Paula se sentiu quase sufocar.
- Espero fazer com que me ame, pois ter você, abraçar você é o máximo da felicidade para mim! Eu não queria deixá-la nem um minuto, porém pensei que se eu me ausentasse uns dias talvez sentisse saudades. Não sentiu, querida? Sentiu minha falta, ao menos por alguns minutos? Eu pensei tanto em você! Ao sol batendo em seu cabelo dourado, nas chamas das velas refletidas em seus olhos quando jantamos no pátio... Eu gostaria de poder exigir que me amasse, mas também sabia que eu precisaria ter um pouco de paciência e não é nada fácil para alguém com meu temperamento ter paciência...
Paula continuava imóvel em seus braços, muito atenta a cada uma de suas palavras... Então de repente, um tremor súbito percorreu seu corpo, e suas mãos enlaçaram-no com mais força.
- Você me possuía, mas nunca me disse realmente que me amava - disse ela.
- Eu fui um idiota! Não me dei conta de que você era um pouco mais do que uma menina e a tratei como se já fosse uma mulher. Pensei poder lhe dizer com o meu corpo o quanto eu a adorava, mas em vez disso eu a assustei. Eu a assustei, não foi? Diga-me, eu quero saber!
- Sim e não, Diablo. Você fez com que meu coração vivesse aos trancos e barrancos mas se posso ter a certeza que me ama de verdade, então será diferente...
- Assim? - ele inclinou a cabeça e beijou-a suavemente na boca. - É assim?... - O fascínio e o encanto de seus beijos eram perturbadores e quando ela passou os braços ao redor do pescoço de Dom Diablo, estreitando-o fortemente, ouviu uma voz:
- Ah! Parece que cheguei novamente num momento inoportuno!
Marido e mulher se voltaram, suas cabeças muito unidas e então sorriram ambos para a senhora esguia e elegante, parada na soleira da porta do quarto.
- Madrecita! - disse Dom Diablo afetuosamente. - Entre...
- Meu caro Diablo, acho que sei bem quando devo entrar ou sair... - Sorriu para os dois; seus olhos refletiam muita ternura. - Até daqui a pouco...
FIM
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