Capítulo 3
A fazenda parecia tão isolada lá no alto, tão distante do resto da civilização à qual estava habituada, que Paula se admirou quando uma manhã, após o café, Dom Diablo sugeriu que fossem juntos até a cidade. A mesa fora posta no pátio e dali se via a torre da capela. O zumbido das abelhas e o canto dos pássaros conferiam um certo mistério ao ambiente. Nunca a luz do sol fora tão dourada, nem as sombras tão escuras.
As pétalas das flores de laranja jaziam esparsas nas lajotas do pátio. O calor fazia com que os eucaliptos e as flores dos pés de maracujá exalassem um aroma forte. Paula, parada sob um arco, observava Dom Diablo. Gostaria de saber por que ele vestira aquele terno cinza-claro que lhe assentava como uma luva e lhe conferia uma certa dignidade, tomando-o ainda mais charmoso. Triste engano! Pensou Paula. Atrás de todo esse charme, ocultava-se um homem sem piedade, com quem se casara há cinco longas semanas.
- Estamos há muitos quilômetros da cidade? - perguntou Paula
- Só se for em lombo de jumento. Um carro rápido cobre esta distância em pouco tempo. Imaginei que talvez você gostasse de dar uma espiada nas lojas, comprar alguma coisa como doces, discos, perfumes ou quem sabe livros ou revistas, enfim essas futilidades que as mulheres adoram.
- Quanta generosidade, senhor! - Mesmo depois de estar casa há cinco semanas, Paula não conseguia se dirigir a ele normalmente como seu marido. Via nele apenas o tirano a quem sucumbira durante uma crise de depressão após a morte de Marcus. Ele era seu dono, isso era tudo.
- Só por isso, minha querida? - disse ele, levantando as sobrancelhas negras e fitando-a com seus olhos penetrantes e possessivos. Paula usava um vestido turquesa sem mangas com a libélula presa ao lado esquerdo. O sol fazia as pedras cintilarem. Usava sempre o broche, pois era como se fosse o símbolo de seu desejo de voar em liberdade. Tinha esperanças de algum dia fugir para bem longe dali e daquele homem a quem as leis da igreja a obrigavam a obedecer. Afinal poderia vender a jóia por um bom preço e com o dinheiro partir para onde quer que fosse. O broche nada representava para ela, já que não lhe fora dado como prova de amor...
- Preciso ir à cidade ver meu advogado. Se quiser pode vir comigo - disse ele. - Vou confiar em você, minha querida, e espero que se divirta nas lojas e não me desaponte. Espero que não lhe passe pela cabeça nenhuma idéia absurda, como por exemplo, fugir. Devo preveni-la que isso seria quase impossível, pois ninguém daqui lhe alugaria um carro e além do mais a estação ferroviária mais próxima fica além das montanhas. - Apontou então para os picos azulados e distantes guardiões de seu reinado. Quando se aproximou mais, Paula sentiu-se tensa, apoiando-se na coluna da arcada. Seus nervos ficavam sempre à flor da pele cada vez que pressentia que Dom Diablo ia tocá-la. Já devia ter se acostumado ao contato de suas mãos, mas cada vez que isto acontecia ela ficava em pânico e com um desejo violento de esmurrá-lo.
- Ser muito cordata chega a ser monótono, querida. Quando eu a toco parece que estou acariciando uma leoa, pronta para me atacar e me arrancar os olhos. Olhe, tive uma idéia: Há uma praia perto da cidade, onde poderíamos nadar depois. O que é que você acha?
Só em pensar na água azul e gelada do mar, nas ondas relaxantes, Paula se entusiasmou. Sentia-se como uma criança a quem se dá um presente, após um castigo injusto.
- Está falando sério?
- Será que precisa olhar para mim como se eu acabasse de lhe conceder um momento de liberdade, fora das grades de uma prisão? - perguntou ele. - Claro que estou falando sério. Você tem um maiô?
- Acho que sim. Não se se lembrava mais o que pusera dentro das malas, nos últimos três dias em Stonehill. Raramente olhava para as roupas que ele lhe comprara. Vestia-se simplesmente, sem se enfeitar muito nem se preocupar com os acessórios. Procurava não parecer muito atraente. Aprendera a duras penas que sua beleza despertava o animal que se escondia no corpo e na alma de seu marido. Vestindo-se simplesmente, procurava evitar que ele a importunasse.
- Então vá e pegue o maiô e, por favor, traga também o meu calção. Está na última gaveta da cômoda do meu quarto. Traga também toalhas de banho, querida. Estou esperando por você no carro.
Paula apressou-se em buscar as roupas de banho, no caminho cruzou com Carmenteira que estava arrumando flores nos magníficos jarrões de cerâmica do saguão.
No quarto, abriu o armário e puxou a mala que ainda não tinha sido desfeita, desde a noite em que Dom Diablo lhe ordenara que usasse apenas as roupas compradas por ele. Abriu a mala e ao remexer em suas coisas não pôde evitar as recordações que elas traziam de Stonehill. Pegou as blusas, os vestidos dobrados e, no meio deles, encontrou fotografias dela e de Marcus tiradas durante as viagens maravilhosas que haviam feito juntos pela Europa. Um álbum de fantasmas, pensou ela. Dias de sonho, de conversas íntimas, tudo isso se passara tão longe do México...
Encontrou o maiô no fundo da mala. Era lilás e de corpo inteiro, pois Marcus não gostava de biquínis. Colocou-o diante do corpo e, olhando-se no espelho, concluiu que Dom Diablo certamente não aprovaria também os biquínis. De repente desejou que seu maiô fosse uma daquelas tangas minúsculas que cobriam o mínimo indispensável, para espicaçá-lo, escandalizá-lo. Gostaria de vê-lo chocado quando, na praia, ela se exibisse diante dos outros homens. Era típico do homem latino desejar que sua mulher fosse exclusivamente sua, não permitindo sequer que atraísse o olhar de outros homens. De qualquer forma, já que lhe havia sido proposto um passeio pela cidade, estava disposta a aproveitá-lo ao máximo. Deveria apressar-se antes que ele mudasse de idéia, pois talvez não gostasse que o fizessem esperar. Será que teria coragem de ir embora e deixá-la ali decepcionada?
Foi então até o banheiro e pegou as toalhas. Entretanto, hesito antes de entrar no quarto dele. Já estivera ali antes, várias vezes, mas nunca voluntariamente e sim carregada por ele.
Quando Paula entrou no quarto olhou primeiro para a cama, procurando depois a cômoda de madeira entalhada, onde ele guardava sua roupa. Sobre ela havia escovas de tartaruga, num estojo de toalete em couro e alguns outros objetos de uso diário. O aroma forte e inconfundível de seu charuto persistia no ar, misturado com o perfume de lavanda. Ao pé da cama estava o robe de seda escura e pesada, um chicote de couro com cabo de prata displicentemente jogado ao chão. Certamente o deixara cair, ao voltar de seu passeio matutino. Todos os dias pela manhã supervisionava os trabalhos da fazenda a cavalo.
Abriu a gaveta da cômoda, procurando o calção e encontrando o que não esperava encontrar: a fotografia de uma bela mulher de cabelos negros, sorrindo e segurando um leque, num porta-retratos de prata. Seus olhos, também negros, eram expressivos e seu corpo gracioso. Estava apoiada a uma coluna de um pátio, sob um arco cheio de flores.
Paula contemplava absorta a foto. Quem seria ela? Devia ser alguém muito especial, pois Paula ainda não percebera naquela casa nenhum sinal de outra mulher...
- O que foi que encontrou, senhora, que a intrigou tanto?
Paula teve um sobressalto, sentindo todo seu corpo estremecer. Lá estava Carmenteira, parada na porta do quarto. Seus olhos astutos notaram logo a fotografia nas mãos de Paula que, sentindo-se pega em flagrante, engoliu em seco.
- Vim pegar o calção de Dom Diablo... Pode me dizer quem é mulher, Carmenteira? É tão bonita que não pude resistir à tentação de observá-la melhor...
- A senhora é curiosa - observou Carmenteira, caminhando em direção a ela. Olhou então para a mulher da fotografia. - É uma beleza tipicamente espanhola, dos pés à cabeça! Veja os olhos, como refletem alegria de viver, de amar. A senhora não estaria com inveja de tanta alegria? Talvez ache que Dom Diablo tenha amado essa mulher e está certa, ele realmente foi apaixonado por ela.
- Onde está ela agora, você sabe? - perguntou Paula.
- Morreu há seis anos, senhora, levando consigo toda a sua alegria e todo o seu amor. Dom Diablo ficou inconsolável. Depois do que aconteceu, ele cavalgou durante horas a fio, até o cavalo não agüentar mais, Ficou vários dias sem pronunciar uma só palavra e durante o funeral pensaram que ele fosse se tirar sobre o túmulo, tal seu desespero... - Carmenteira lançou um olhar malicioso para Paula. - Como ele poderia amá-la, senhora, tendo amado tanto esta mulher? Por que lhe daria tanta importância, se no fundo a senhora é apenas um instrumento para lhe dar um filho? Talvez seja por isso que goste tanto de seu corpo. Sua primeira mulher era vinho e mel, mas a senhora é insossa como o leite, e azedo ainda por cima. Sabe que estou falando a verdade, não é? Estou muito velha, conheço muita coisa sobre os homens e sei exatamente o que Dom Diablo espera de sua mulher. - De repente, Carmenteira tocou o ventre de Paula. - A senhora é jovem, bonita e saudável. Mulheres bonitas e jovens costumam gerar filhos bonitos e Dom Diablo sabe que chegou o momento de ter um herdeiro.
Quando a velha parou de falar, Paula concluiu que ela dissera a verdade. Voltou à cômoda e colocou a fotografia no lugar em que a encontrara, bem escondida entre as roupas do marido. Pegou o calção e foi correndo ao encontro de Dom Diablo que, a esta altura, já devia estar impaciente com sua demora. Decidiu não pensar por enquanto nas palavras de Carmenteira. Agora, estava apenas interessada em ir à cidade ver gente, conhecer lojas e depois nadar até ficar exausta.
- Sinto muito! - disse logo que o viu. - Carmenteira queria me contar umas coisas e me atrasei. Como o sol está quente!
- Não devia correr assim, principalmente com esse calor escaldante. Aliás, onde está seu chapéu? Vai precisar dele!
- Eu me esqueci. Não faz mal, podemos comprar outro numa das lojas - disse ela um pouco ofegante.
Dom Diablo segurou-a então pelos ombros e olhou fixamente para ela.
- Você está uma pilha de nervos, parece um filhote de passarinho tentando sair da gaiola. Será que está assim agitada só porque vai à cidade?
- Claro que sim - respondeu ela, afastando o cabelo do rosto molhado de suor. - Se eu não tiver, de vez em quando, um dia de férias, acho que acabarei ficando louca. Você pensa que é fácil para mim a vida aqui? Sempre presa dentro desta propriedade, vigiada dia e noite, tendo que obedecer ordens suas o tempo todo, o que devo vestir, o que devo fazer! Sou para você um objeto de prazer! Tudo o que quer de mim é sexo. - Falava muito alto, numa espécie de desabafo. Fora terrível para ela ter que ouvir a opinião de Carmenteira sobre seu papel na vida de Dom Diablo. Sentia-se humilhada por estar sendo usada apenas para gerar um herdeiro que continuasse o nome da família e cuidasse das propriedades e de toda sua imensa fortuna. Uma mulher não precisava ser amada para ter um filho, para isso bastava o desejo animalesco e rude do homem pelo corpo dela.
- É uma forma como qualquer outra de encarar os fatos. Vamos, entre no carro e trate de relaxar um pouco.
- Vai dirigindo? - perguntou ela ingenuamente.
- Sim - respondeu. - Pode sentar atrás se quiser, longe de mim. Eu corro um pouco e talvez isso a deixa nervosa. Aliás, parece que você ficou assim a partir do momento em que a convidei para vir comigo.
Com uma sensação de alívio, Paula aproveitou a sugestão e sentou-se sozinha. Entrando no carro, viu que havia capas de linho nos bancos, para evitar que o couro se tomasse muito quente. O ar refrigerado começou a funcionar e Paula, recostando-se no banco, sentiu-se melhor. Em seguida, certificou-se de que trouxera os trajes de banho e as toalhas; estavam no banco ao seu lado. Lembrou-se, então, do rosto daquela mulher espanhola cujos olhos negros refletiam a alegria de viver.
Enquanto o carro deslizava velozmente pela estrada, Paula observava a cabeça bem feita e os ombros largos de Dom Diablo. Até agora pensara nele como um homem duro, indiferente aos sentimentos e melindres femininos, incapaz de amar uma mulher. E no entanto, soubera agora que ele havia amado, mas provavelmente era do tipo que ama apenas uma vez na vida. Isto fazia com que ele parecesse mais humano, mas ao mesmo tempo confirmava a posição que Paula acreditava ocupar em sua vida. Não era amada e no entanto tinha que aceitar todas as atenções dele, submeter-se a quase todas as suas exigências, querendo ou não viver a seu lado até descobrir uma maneira de sair dali.
Agora, mais do que nunca, desejava ir embora. Tocou o broche que pregara no vestido, acompanhando com os dedos o desenho das asas. Se encontrasse alguém que comprasse a jóia, teria só que pegar seus documentos e seu passaporte do escritório do marido. Estavam numa escrivaninha antiga cheia de gavetas. Tinha esperanças de encontrar alguém dentro da propriedade que pudesse ser subornado e que a levasse à estação mais próxima. Se conseguisse tomar um trem que a levasse a um dos muitos locais turísticos existentes no México, estaria a salvo.
A grande extensão de terra salpicada aqui e ali de cactos, finalmente ficou para trás e o carro aproximou-se da cidadezinha, com casas muito brancas, de telhados planos e um pequeno pomar atrás. A roupa lavada era estendida em varais nos fundos das casas. Crianças e animais corriam juntos numa alegria festiva que fez Paula sorrir, enquanto o carro passava rapidamente pelas ruas. Dom Diablo pareceu pressentir seu sorriso, pois, virando-se um pouco para trás, perguntou-lhe se estava gostando do passeio.
- Olhe só essas crianças! - disse ela. - Será que as mães conseguem que elas fiquem limpas alguma hora?
- No fim da tarde costumam mergulhar todas elas juntas numa grande tina d'água, lavá-las e depois estendê-las ao sol para secar!... Você viu como são bonitas as crianças? - havia um tom brincalhão em sua voz.
- São mesmo! - admitiu. - A pele delas é acetinada e os olhos enormes. Imagino que, quando limpas, devem ser belíssimas.
- As crianças mexicanas têm realmente uma beleza pura e natural - concordou ele e desta vez Paula percebeu uma alusão velada em suas palavras. Isso a fez estremecer. Era a primeira vez, depois de seu casamento, que ele mencionava crianças. Olhando para sua nuca, para seu cabelo negro e espesso. Paula começou então a compreender o que Dom Diablo pretendia realmente dela. A velha Carmenteira era esperta! Talvez tivesse razão mesmo. Devia saber muita coisa sobre os homens e as mulheres, e especialmente sobre a fazenda. Vivia ali desde moça. Vira Dom Diablo nascer, crescer, e depois quando começou a se interessar pelas mocinhas, até que se apaixonou por aquela belíssima mulher da fotografia.
- Gosta de crianças? - perguntou com curiosidade.
- Acho-as divertidas - respondeu. - E você, querida? Gostaria de ter um filho meu?
Ao ouvir essas palavras, o coração de Paula começou a bater descompassado e, com os dedos crispados, apertou a bolsa que tinha no colo.
- Não gostaria de dar à luz a um filho do demônio - respondeu friamente.
- Obrigado, minha querida. Às vezes é encantadora quando fala comigo! - Em seguida dirigiu o carro para o centro da cidade e parou em uma praça pitoresca, onde havia outros carros estacionados. Ao centro da praça, via-se uma estátua de pedra. Era um homem de capacete montado num cavalo cujas patas dianteiras se erguiam no ar.
Saíram do carro, atravessando a praça em direção às arcadas, onde se encontravam as lojas. Havia um burburinho de gente, pois entre uma compra e outra, as pessoas paravam para conversar. Paula sentiu-se um pouco encabulada ao constatar o flagrante contraste entre sua pele clara e a daquelas pessoas morenas. Perto delas, Paula, apesar de bonita, parecia desbotada, um pouco frágil perto dessas mulheres sensuais, cor de cobre, e com olhos negros e brilhantes, que encaravam ostensivamente Dom Diablo ao passar por ele.
Ele segurava Paula possessivamente. Por que não escolhera para esposa uma mulher de sua própria raça, de seu próprio país? , pensou ela. Será que não conseguiria encontrar uma mulher que se comparasse à primeira e, por isso mesmo, procurara por alguém que não tivesse absolutamente nada a ver com ela?
Ao chegar sob a arcada, Dom Diablo parou. As lojas eram alegres, com suas vitrinas decoradas com arranjos coloridos e exóticos. Havia de tudo: roupas, objetos para casa, pulseiras, colares, brincos, especiarias e frutas tropicais.
- Vai precisar de dinheiro - disse ele, tirando da carteira um punhado de notas. - Compre o que quiser, só não esqueça o chapéu. Provavelmente ficarei ocupado as próximas duas horas, mas à uma hora me encontre no carro. Almoçamos no Café Valentino e depois vamos à praia.
- Sim, mestre - respondeu Paula, aceitando o dinheiro que ele lhe estendia. Percebeu então que ele fora bastante generoso, porém não havia o suficiente para subornar alguém que a pudesse levar para longe dali.
- Que tipo de chapéu quer que eu compre? Estes de copa alta com um ramo de cerejas do lado?
- Tenho a certeza de que qualquer tipo de chapéu lhe ficará bem - segurou-a pelo queixo, fazendo com que Paula olhasse para ele. - Não tente fugir de mim, querida. Meu braço é comprido e eu não costumo abrir mão do que me pertence. Você é minha e é bom que se convença disso. Você inteirinha, da cabeça aos pés, sua carne, seus ossos, seu sangue, tudo enfim. Você é minha mulher, a sra. Ezreldo Ruy. Por isso deve se comportar com dignidade e estar sempre de ótimo humor. Todos aqui me conhecem, portanto sabem quem você é. Não será importunada, anão ser que se preste a isto e eu a advirto a não fazê-lo! Será que me expliquei bem?
- Entendi perfeitamente, senhor. Tenho que ficar boazinha e me distrair com frivolidades enquanto meu senhor e mestre se ocupa de negócios importantes.
Entreolharam-se em silêncio; o desafio estava estampado nos olhos de Paula que brilhavam de raiva. Depois as pálpebras dele se abaixaram e um sorriso irônico apareceu em seu rosto moreno.
- Você parece ter ficado muito mais corajosa no meio dessa gente. Será que continuará assim quando estivermos novamente a sós?
Ela estremeceu ao ouvir estas palavras. Não se conformou com sua covardia diante de Dom Diablo. Mas ele era tão forte, tão rude! Ao olhar para seu corpo musculoso, seus ombros largos, lembrou-se de como era morna sua pele, de como era excitante a sua nudez...
- Fique tranqüilo, saberei me comportar. Aliás, detestaria ver alguém ser surrado por você, pois conheço bem sua força e sua crueldade.
- Então, tudo bem - respondeu um pouco irritado. - Até mais tarde, e não se esqueça de estar no carro a uma hora.
- Sem falta - prometeu ela. Dom Diablo afastou-se com passos rápidos, impecável no seu terno cinza. Paula suspirou e dirigiu-se então às lojas, cujas vitrinas coloridas e variadas diferiam muito das da Inglaterra. Expunham roupas que ela jamais usaria se ainda morasse em Stonehill. Mas ali no México, onde a luz era tão intensa desde o amanhecer até o crepúsculo, as roupas coloridas pareciam mais adequadas. Paula gostava dos blusões informais, especialmente de algodão. Comprou dois com estamparia bem alegre. Depois foi até o mercado e, logo ao chegar, encontrou exatamente o que queria o chapéu de copa alta com duas frutas pregadas na fita, sobre a aba.
Não pôde resistir e comprou-o, lembrando-se do que dissera a Dom Diablo com a intenção de provocá-lo. O difícil seria usá-lo, pois na verdade se envergonhava de usar coisas tão vistosas...
Caminhando sob a sombra das arcadas e segurando o chapéu pela aba, sorriu ao pensar na cara do marido quando a visse com ele. Era quase um desafio ser mulher daquele homem. Apesar das brigas entre eles, sabia que Dom Diablo era cônscio demais de sua posição, fazendo sempre questão de ser tratado, sobretudo publicamente, como mestre e senhor. O chapéu era apenas uma brincadeira para provocá-lo. Poderia usá-lo na praia, pois afinal era inglesa e não latina como a bela morena da fotografia. Novamente voltou a lembrar-se dela...
Já fazia mais de uma hora que Paula passeava de um lado para outro, observando as vitrinas. Havia tanta coisa curiosa nas lojas! De repente, viu uma joalheria. Ficou ali parada, sua mão tocando o broche que tinha preso no ombro. Não haveria nada de estranho se entrasse e pedisse que lhe avaliasse o broche. Saberia assim por quanto poderia vendê-lo. Entrou resoluta e aproximou-se do balcão.
Durante a última hora só cruzara com mexicanos, por isso ficou surpresa quando viu, atrás do balcão, um jovem loiro e bonitão, que olhava para ela com o mesmo espanto.
- É americana? - perguntou.
- É inglês? - perguntou ela, quase ao mesmo tempo. Ambos riram.
- Oh! É inglesa! - exclamou. - Como não percebi logo? - A voz, a pele clara... Inglesa como uma xícara de chá!
- Bem, eu não estou certa de como devo interpretar essa comparação - respondeu, sorrindo. - Eu não preciso absolutamente que me diga que é americano. Seu sotaque, seu jeito, lembram-me uma xícara de café! - riram novamente, como que satisfeitos por falarem a mesma língua.
- Esta é a maior surpresa que tive nos últimos tempos - disse ele intrigado e observando afigura esbelta de Paula, cujo vestido valorizava seu tipo claro, acentuando a linha perfeita de seu corpo. Os olhos dele se detiveram nos braços muito alvos e esguios, como se quisesse premiar seus olhos com tanta beleza.
- Nunca imaginei que uma jovem inglesa pudesse aparecer por aqui, como se fosse uma visão, trazendo o vento fresco do mar do Norte! Será mesmo real ou é uma miragem?
Ao dizer a palavra real, sua voz tornou-se mais profunda. Paula pensou que ele fosse pegar em sua mão. Se o fizesse ela se afastaria bruscamente. Tentou se convencer de que não sentiria o menor medo se, de repente, aparecesse Dom Diablo com aquele seu jeito de felino, e a surpreendesse conversando com outro homem que lhe segurava mão.
- Acho que sou real - respondeu ela. - Jamais pensei também em encontrar um americano atrás do balcão de uma joalheria mexicana.
- É uma maneira como outra qualquer de sobreviver - respondeu. - Acabei caindo neste negócio após um acidente. Eu era mergulhador e trabalhava numa companhia petrolífera de prospecção marinha. Um dia mergulhei muito fundo, enrosquei-me nas cordas e quase morri. Um amigo, dono dessa loja, me ofereceu este emprego até que eu me sinta novamente em forma para recomeçar meu antigo trabalho. Um mergulhador não desiste facilmente. Vai em frente até que entrem bolhas de ar no sangue...
- Compreendo - disse ela. - Mas deve ter sido uma experiência violenta, não foi?
- Bem, na hora eu fiquei inconsciente, depois é que foi terrível - Ficou sério por um momento. Seus traços eram muito bem feitos. Relaxou logo depois e sorriu novamente. -E o que faz no México?
- Moro aqui - respondeu Paula um pouco tensa, seu sorriso desapareceu ao pensar nas circunstâncias que a haviam trazido para o México. - Minha casa fica a alguns quilômetros daqui. Vim até a cidade, para fazer compras.
- Está sozinha? Se estiver, gostaria de almoçar comigo?
- Não, não estou. - Paula sentiu uma certa tristeza por não poder almoçar com ele. - Vim à cidade com meu marido. Ele veio a negócios e me deixou livre para fazer compras e passear um pouco. Comprei um chapéu, veja!
O rapaz examinou detidamente seu rosto e, em seguida, suas mãos. Numa delas usava o anel de ouro trabalhado e na outra a aliança e um magnífico rubi.
- Parece muito jovem para ser casada - disse ele. – Pensei que só no México os homens tirassem as noivas das salas de aulas...
- É muito lisonjeiro de sua parte - respondeu ela. – Deixei a escola há muito tempo e estou casada há várias semanas!
- Semanas? Então, para todos os efeitos, é ainda uma noiva... Como é que seu marido a deixa sozinha em plena praça do mercado? É quase uma ousadia a dele, sabendo como são os mexicanos... Se fosse minha mulher, eu teria medo que alguém a raptasse, ainda mais sendo bonita como você!
Paula enrubesceu. Desde que saíra do colégio fora sempre muito cortejada, mas depois de casada essa era a primeira vez. Teve um pressentimento de perigo ao ouvi-lo elogiar seus dotes físicos.
- Meu marido é muito conhecido aqui, ninguém ousaria me importunar.
- Ah, entendo - disse ele. - Por acaso é algum diplomata britânico muito respeitado ou algo parecido?
- Não - Paula sabia instintivamente que sua resposta causaria uma grande surpresa ao americano. - Meu marido é mexicano, e um dos maiores proprietários desta região. Creio que não o conhece, mas provavelmente já ouviu falar nele. E Dom Diablo Ezreldo Ruy. Moramos numa fazenda a alguns quilômetros daqui.
O rapaz olhou para ela com uma expressão estranha. Não era surpresa. Talvez fosse descrença.
- Mas ele é déspota! - exclamou ele. - Todos aqui já ouviram falar dele. Correu o boato de que se casara, mas nunca ninguém imaginou que fosse com uma garota como você! Você parece uma rosa que nasceu e cresceu na estufa! Como é que se conheceram? Dizem que esses tipos aqui no México costumavam ir buscar suas noivas diretamente nos conventos. Foi isso que aconteceu com você?
- Quase - respondeu Paula. Ao dizer isso percebeu que estava prestes a confessar que fora coagida a se casar com Dom Diablo, que não fora um casamento por amor. Arrependeu-se a tempo e acrescentou: - De qualquer forma, não vim aqui para falar sobre minha vida privada com um estranho...
- Meu nome é Gil Howard - apresentou-se prontamente. - Nasci em Los Angeles, por isso sei falar espanhol razoavelmente, pelo menos o suficiente para poder trabalhar numa joalheria mexicana. Eu também me casei uma vez, mas não deu certo. Estava sempre longe de casa, sabe como são essas coisas, e Louise, minha mulher, acabou se ligando a outro homem. Apesar disso, sou um homem decente e respeitável. Não quero que agora você me considere mais um estranho. Gostaria de poder ser seu amigo. Você tem um nome, naturalmente... Será que devo ser formal e chamá-la de senhora? Senhora me faz pensar em gente mais velha e você me parece ainda tão menina...
Paula sabia que logo que ele começara a falar, devia ter-lhe dado as costas e saído da loja. Mas era tão bom encontrar alguém que falava sua língua e com um jeito tão diferente de Dom Diablo! Sua voz era agradável e suas palavras não continham insinuações veladas. Era direto e franco.
- Na verdade eu deveria insistir para que me chamasse de senhora - disse Paula com certa afetação.
- Mas não vai insistir, vai? - deu um sorriso largo.
- Bem, que significa o primeiro nome, afinal? O meu é Paula.
- Repita-o novamente! Será que ouvi bem?
- Ouviu sim, sr. Howard.
- Mas é um nome lindo, doçura. - Gil Howard sacudiu a cabeça. - Eu nunca poderia imaginar, ao me levantar hoje de manhã, que iria encontrar uma garota tão linda chamada Paula!
Isto já ultrapassava os limites. Paula sabia que não devia ter consentido que a conversa fosse tão longe. Agora não poderia mais se informar sobre o valor do broche, pois esse americano parecia muito esperto. Poderia desconfiar que ela quisesse vendê-lo para poder sair do México.
Consultou rapidamente o relógio de pulso, de ouro, também presente de Dom Diablo.
- Agora preciso ir embora, sr. Howard. Meu marido não é muito paciente e já deve estar esperando por mim. Até logo...
- Até breve, Paula! - havia certa malícia em sua voz. – Estou certo de que nos encontraremos de novo. Já que somos dois estranhos nesta terra, vamos precisar um do outro, pelo menos para conversar...
- Até breve! - respondeu Paula e saiu correndo.
Paula estava sem fôlego quando se aproximou do carro. Olhou logo para dentro, suspirando aliviada ao ver que Dom Diablo ainda não havia chegado. De repente sentiu suas mãos fortes nos ombros e girando sobre si mesma viu-se cara a cara com ele. Observou-a demoradamente e quando seus olhos se contraíram, sentiu o coração palpitar de apreensão. Ele tinha um jeito diabólico de saber tudo o que se passava e ela realmente preferia que ele não soubesse que havia se encontrado e falado com Gil Howard. Iria pensar que ela estivera flertando. Embora o tivesse feito, queria apenas um amigo, pois se sentia como uma exilada nessa terra estranha!
- Parece que andou fazendo compras numa feira de quinta categoria! Meu Deus, o que é isto? - perguntou, apontando o chapéu.
- Disse-me para comprar um chapéu e eu comprei. Não gosta dele, senhor? - Sentia-se menos medrosa.
EIe nunca a censurara por tratá-lo formalmente de senhor. Levantou ligeiramente as sobrancelhas, tocou nas duas laranjas coloridas que enfeitavam o chapéu e disse:
- Este enfeite parece um símbolo fálico! Mas imagino que você nem percebeu, não é?
O rubor de Paula aumentou depois de ouvir suas palavras. Seu tom era seco e havia malícia em seu olhar.
- Claro que não!. Eu simplesmente achei que era um chapéu divertido. Não vai me deixar usá-lo, não é verdade?
- Será que me acha assim tão tirânico, ou sem o menor senso de humor? Se quiser usar esse negócio absurdo, use... Mas só na praia...
Ajudou-a a subir no carro e dirigiram-se ao café Valentino, um restaurante alegre e colorido, à beira-mar. As mesas era protegidas por guarda-sóis. Na frente se estendia uma praia larga de areia muito branca que contrastava com o azul forte do oceano.
Era o tipo de lugar que Paula gostava. Ficou imaginando por que Dom Diablo se propusera a lhe proporcionar um dia tão agradável. Observou-o curiosamente enquanto se sentavam e quando seus olhos se encontraram com os dela, desviou o olhar. Será que após cinco semanas juntos esperava que ela já estivesse disposta a lhe dar o que realmente pretendia dela? Vestido com aquele elegante terno cinza-claro que contrastava com sua pele morena, deixava transparecer uma elegante satisfação. Ele lhe havia dito que admirava o espírito combativo dos britânicos e Paula supunha que ele gostaria de ter um filho que herdasse estas qualidades: produto do cruzamento do sangue de dois povos completamente diferentes. Paula teve que admitir que seria uma combinação ideal. Mas, e o amor, que papel tinha nisso tudo? Espera-se que um filho seja fruto do amor e não dos planos ambiciosos de uma das partes! Uma criança devia ser gerada pela união absoluta de duas pessoas apaixonadamente ligadas. Apertando o copo de suco, ela pediu a Deus que a ouvisse, nesta terra tão profundamente religiosa, e que nunca gerasse um filho de Dom Diablo.
Há muito tempo, ou pelo menos assim lhe parecia, pensara que se um dia se casasse e tivesse um filho, gostaria de lhe dar o nome de Marcus. Mas naquela época não imaginava este tipo de casamento... Naqueles momentos tranqüilos, na poltrona de seu quarto em Stonehill, imaginava ingenuamente que quem quer que se casasse com ela a amaria como Marcus a amara.
- E o que mais comprou? - A voz profunda de Dom Diablo interrompeu seus pensamentos. Teve um sobressalto, mas encarou-o sem disfarçar que estivera sonhando.
- Duas blusas muito simples - respondeu. - Os desenhos são bem vistosos.
- Ah, é? Então você está querendo ficar bonita para mim? Tomou um gole de pisco.
- Não, o que quero dizer é que são bem informais, para serem usadas a qualquer hora, simplesmente isto. - Inclinou a cabeça e começou a tomar o suco. Era bem doce e gelado e refrescava-lhe a garganta. - As lojas aqui estão cheias de coisas bonitas. O povo é muito habilidoso! O artesanato é realmente magnífico!
- É habilidoso sim, e agora você também pertence à nossa raça, querida. Você e eu somos uma pessoa só, ou ainda pensa em se libertar de mim? - Apesar de negligente, havia em seu tom uma certa malicia. - Somos uma pessoa só, querida, entendeu bem?
- Entendi, senhor - respondeu ela muito tensa. - Não duvido um instante sequer que só pensa em uma coisa, só pensa em meu corpo, que gosta de ver envolto em sedas e coberto de jóias valiosas ; excita-o ver a mulher que considera sua propriedade, adornada pelo mestre e senhor. Deve haver sangue mouro em suas veias, Dom Diablo. Seria capaz de me matar, se eu o traísse?
- Eu a aconselharia a não provocar a minha ira, com este tipo de comportamento, Paula. Como você mesma disse, uma das maiores alegrias da minha vida foi quando me certifiquei de que você era virgem. Para mim, a virtude ainda é a maior qualidade numa mulher!
Ao ouvir estas palavras,- Paula sentiu-se transportada para os aposentos da fazenda. Em vez do restaurante via seu quarto, ouvia o roçar de sedas sob seu corpo frágil enquanto Dom Diablo, com suas mãos esguias, que não admitiam qualquer resistência, a subjugava, possuindo-a completamente.
- Foi um dos piores momentos de minha vida - retrucou violentamente, a voz ligeiramente trêmula, os olhos refletindo o ódio que sentia por tê-la feito lembrar-se daquela cena. - Descobri que havia me casado com um monstro!
- Minha querida, será que todos os dias você se empenha em descobrir novos objetivos para me insultar? Não, não me responda. Vejo que não lhe custa nada encontrá-los, pois parecem brotar naturalmente dos seus lábios... Bem, pelo menos são sinceros, não são as costumeiras palavras adocicadas de uma mulher que finge estar apaixonada. Com você, minha querida, sei onde estou pisando.
- Sabe mesmo? - perguntou ela, dirigindo-lhe um olhar deliberadamente provocante. - Eu, em seu lugar, não estaria tão certo disso Águas paradas são geralmente mais profundas...
- E os britânicos são profundos, não são? Porém parcialmente submersos como os icebergs. - Ao dizer isso, preparou-se para comer a deliciosa truta que o garçom, silenciosamente, colocara diante dele. Espremeu limão, serviu-se de pimenta e sorriu.
- Sim, e os icebergs podem ser perigosos, senhor. Já ouviu falar do naufrágio do Titanic?
- Vejam só! - Está adquirindo o hábito dos latinos, de enrolar um punhal num pedaço de seda? Tenha cuidado, senão logo estará impregnada de nossos costumes!
- Deus me livre! - replicou ela. - Eu detestaria tornar-me cruel e egoísta, sem pensar noutra coisa que não fosse a ambição...
- Como pode saber o que existe realmente no meu coração? - perguntou, enquanto passava manteiga numa fatia de pão preto. - Aliás, se preocupou realmente em saber? Pensa que em lugar do coração tenho um bloco de cimento, não é verdade?
Paula levantou os olhos do prato, olhando-o friamente.
- O que sei é que não abriga em seu coração nenhum sentimento de afeto em relação a mim. Para você nada mais sou que uma jovem atraente, a quem você trata como trataria uma jovem potranca que não quisesse aceitar o cabresto! Pensa que pode exercer o poder sobre todo mundo, mas se pensa que posso amá-lo desse jeito, engana-se muito.
- Estou esperando, querida... Aliás, eu não me lembro de ter-lhe pedido uma só vez que me amasse. Veja, eu gosto desta truta e eu a como inteirinha, fora os espinhos, mas nunca me passaria pela cabeça compartilhar a minha vida com uma truta!
Paula teve que reconhecer, apesar da hostilidade que sentia, que ele tinha um fino senso de humor com o qual ela não podia competir. Teve vontade de rir alto ao ouvir a piada, mas mordeu os lábios para não dar o braço a torcer. Não lhe daria jamais, pensou consigo mesmo, o prazer de vê-la achando graça.
Dom Diablo levantou a cabeça. Seus olhos faiscavam. Pegou então o copo de vinho e disse:
- É melhor você rir, senão vai engasgar. Você acha, Paula, que não fiquei sabendo muita coisa a seu respeito depois desta semana juntos? Você gosta de uma piada, gosta de ser natural. Sabe o que significa isto?
- Não. Diga-me, senhor, já que sabe tanto a respeito das mulheres...
- Quer dizer, querida, que você tem todas as qualidades para se tornar uma mulher, uma verdadeira mulher... Porém como as mulheres de seu país, que fazem questão de manter isto escondido sob uma capa de altivez e reserva. Mas você tem uma chama interior que quando se acende afasta toda essa discrição, derretendo a capa de gelo que a protege. Esta chama de amor é muito curiosa, especialmente na mulher que aparenta frieza.
- Amor! - Paula sorriu com desdém. - Se tivesse falado ódio estaria mais perto da verdade. Alguma vez alguma mulher já lhe disse: eu o odeio, Dom Diablo?
Seguiu-se um silêncio profundo, contrastando com o barulho de talheres e vozes vindo das outras mesas. E este som chegava até Paula, muito tensa, como se fossem choques sonoros. Amedrontada, começou a observar com certa fascinação, os dedos de Dom Diablo apertando o cálice de vinho. Estava certa de que acabaria estraçalhando o copo. Mas os copos do restaurante não era tão finos como os cálices de cristal da fazenda. Ele continuava a apertá-lo com tanta força, que os nós de seus dedos ficaram brancos.
- Quando estamos no meio de outras pessoas você demonstra muita coragem, já percebi... - observou ele com um certo tom de ameaça. Paula temia outra discussão inútil, ela reagindo com todas as suas forças e ele vencendo-a inexoravelmente. Seria inútil mordê-lo, arranhá-lo, insultá-lo com palavrões. Já o chamara de demônio, e agora ia fazê-lo novamente. Inclinou-se para a frente e fulminou-o com o olhar.
Dom Diablo inclinou a cabeça, enfrentando ironicamente o seu olhar, sabendo o que ela pensava...
- E o que vai querer como sobremesa? Algum doce? - perguntou sarcástico. Chamou o garçom, enquanto Paula brincava com as pétalas da rosa da lavanda, à sua frente. De repente, percebeu que na mesa do lado três mulheres olhavam fixamente seu marido.
Eram mulheres latinas, sem dúvida, elegantemente vestidas, provavelmente esposas de funcionários, que viviam naquela cidade. O olhar delas expressava a admiração por aquele macho atraente. Paula não podia ignorar que as mulheres gostavam muito dele, exceto ela mesma. Aquela pele lustrosa contrastando com a seda branca da camisa e o cinza-claro do temo, o olhar quente sob os cílios espessos, os ombros fortes, tudo prometia um vigor másculo que fascinava as mulheres.
Gil Howard dissera que os mexicanos têm o sangue quente, mas Dom Diablo não era assim. Seu sangue jamais ferveria, a não ser de raiva... Oh, seria uma tal megera que ele se arrependeria do dia que a escolhera! Jamais olharia para ele como aquelas mulheres descaradas o faziam!
O desdém transformou o rosto de Paula numa máscara de gelo. De repente, uma das mulheres, vestida de roxo, conseguiu chamar a atenção dele. Encarava-o, seus olhos negros e brilhantes eram como dois poços profundos que o convidavam para o amor. Com uma certa curiosidade, Paula olhou para o marido, tentando adivinhar como ele reagiria àquele convite aberto e descarado de uma mulher que, provavelmente, farta do próprio marido, procurava uma aventura que a distraísse...
Dom Diablo também olhava para ela, porém seu rosto parecia de bronze, uma daquelas máscaras astecas que faziam Paula estremecer. Parecia um poderoso chefe asteca prestes a levantar o chicote para açoitar um de seus escravos.
Seus olhos frios trespassaram a mulher vestida de roxo, fazendo com que ela desse uma risadinha nervosa e sem jeito, voltando-se depois para dizer qualquer coisa às companheiras. Mas Paula notou que a mulher enrubescera. O olhar de Dom Diablo tinha tanto desprezo que certamente se sentira humilhada, como uma prostituta se oferecendo no mercado. Só com um olhar ele lhe dera uma lição e como que para reforçar seu modo de pensar estendeu a mão vagarosamente e apertou a mão de Paula, onde reluzia a aliança de ouro... É minha, parecia indicar o seu gesto. Esta mulher que nunca olhará para outro homem e que se emociona com o simples toque da minha mão...
- Nunca faça o que fez aquela mulher. Se algum dia você o fizer, eu acabo com sua vida.
- Não a acha incrivelmente atraente? Tão latina, os olhos tão negros, seu corpo tão curvilíneo e langoroso? Surpreende-me, senhor. Poderia jurar que ela faz exatamente seu gênero...
Ao ouvir estas palavras ele apertou-lhe os dedos com tal força que a machucou, mas Paula não quis se dar por vencida. Ele soltou-lhe a mão só quando o garçom chegou com a sobremesa, uma saborosa salada de frutas com maracujá, uvas e banana cortada em rodelas, acompanhada de um creme rico e espesso, como só uma cozinha mexicana conseguia obter.
A sobremesa estava realmente deliciosa, Paula não podia negar embora estivesse sempre pronta a pôr defeitos em tudo que Dom Diablo programava. Percebeu que ele a observava atentamente enquanto ela saboreava a salada de frutas.
- Parece estar com muito apetite, querida! - comentou. – Será o ar do mar ou haverá alguma outra razão?
Certamente estava insinuando que poderia ser uma gravidez, e sentiu-se tentada a responder que preferia morrer a ter um filho dele, mas se conteve a tempo. Olhou para ele inexpressivamente como se não tivesse entendido sua insinuação, como se não soubesse que ele desejava ansiosamente um filho e um herdeiro.
- Gosto muito de doces, especialmente de creme - respondeu. - Este meu cabelo loiro não é um halo de santidade. Sou humana, tenho minhas gulas e vícios como também os tem, senhor.
- Encantador, querida! - exclamou ele. - Você tem uma língua bem afiada!
- Estar naquela fazenda a seu lado é como se estivesse no inferno.
- Não há nada ali que a agrade? - perguntou secamente, como se já soubesse da animosidade que ela sentia pela casa. - Nem a beleza dos jardins, dos caminhos floridos, das fontes antigas? Não aprecia o encanto de seus pátios, de seus quartos? Eu diria que há muito mais coisas bonitas e agradáveis na fazenda do que eu pude ver em Stonehill. Pareceu-me muito cinza e muito triste...
- Stonehill era a minha casa, o meu lar - respondeu Paula, lançando-lhe um olhar de ressentimento. - Eu simplesmente gostava de lá, o que não acontece em relação à fazenda, que para mim não passa de uma prisão.
- E eu sou o seu algoz, não é? - completou, fazendo um gesto para o garçom que passava. Pediu-lhe café e uma determinada marca de charutos. Quase que imediatamente o rapaz trouxe-lhe uma caixa. Ele escolheu um, girou-o entre os dedos, como que testando sua textura. O garçom, muito solícito, adiantou-lhe um isqueiro aceso. Após alguns instantes, trouxe, junto com o café, um prato de bombons colocando-o sobre a mesa. Os sabores eram exóticos. Alguns de nugá, outros de chocolates puros, outros de frutas tropicais cristalizadas. O garçom sorriu ao olhar para Paula, em cujo rosto se alternavam a luz e a sombra projetada pelo guarda-sol. Parecia muito jovem com o vestido decotado e sem mangas, sua pele alva contrastando com a figura morena e poderosa de Dom Diablo.
- Doces para um doce - disse ele, colocando o prato de bombons diante de Paula, assim que o garçom se retirou. - Vamos, você disse que era gulosa e gostava de doces, sirva-se...
- Está querendo que eu engorde? - perguntou com ar displicente, evitando olhar para ele enquanto se servia. - Em geral os mexicanos gostam de mulheres gordas e eu não me enquadro nesse padrão... Na verdade, senhor, eu me pergunto sempre por que escolheu para esposa uma mulher que evidentemente não o ama e não lhe tem respeito...
- Respeito? - estranhou ele, sacudindo a cinza do charuto com um gesto impaciente.
- Certamente não pretendo aquele afeto infantil de uma colegial como o que tinha por seu tutor, mas exijo que respeite sua posição como minha mulher. O que se passa entre nós dois, enfim nossa vida privada, não diz respeito a ninguém, mas exijo que, quando estiver em público, se comporte como uma verdadeira senhora, recolhendo suas garras afiadas e moderando sua língua ferina. Às vezes me pergunto se Marcus Stonehill teria sido a pessoa mais indicada para tomar conta de uma garota tão sensível como você. A casa de Marcus era freqüentada só por homens. Disseram-me que às vezes parecia um verdadeiro cassino. Foi uma sorte ele não ter transformado você num pseudo-garoto...
- Antes o tivesse feito - respondeu mexendo o café com tanta violência que derramou metade no pires. - Antes tivesse me ensinado a ganhar a vida jogando cartas, pelo menos eu não dependeria completamente de você! Sim, Marcus gostava de jogar, mas me mantinha completamente afastada disso.
- Como você é inocente em acreditar numa coisa destas - observou ele. - Eu acho, querida, que ele a usava como isca para atrair os jogadores e os ricaços. Se me atirar este bombom em público, prepare-se para uma desforra quando estivermos a sós!
- Você é realmente um demônio! - Paula empalideceu, olhando para ele com uma, expressão assustada e magoada. - Se pensa que pode sujar a memória de Marcus, está muito enganado. Eu conhecia seus defeitos e suas virtudes e o amava apesar de tudo. Mas você, eu odeio, não consigo ver nenhuma qualidade em você, a não ser que considere qualidade tratar melhor os peões que a própria esposa!
- Não levante a voz - interrompeu ele. Seus olhos brilhavam, refletindo uma ira incontida. Paula já se sentira em pânico antes com esse seu olhar. Da primeira vez, fugira como um animal assustado, procurando um lugar para se esconder. Naquela ocasião, refugiara-se na cozinha, mas ali no restaurante, não havia para onde fugir... Sacudiu nervosamente a cabeça e encarou-o.
- Se queria uma mulher medrosa e covarde, bateu na porta errada! Não sou uma máquina, sei muito bem o que eu quero! - desabafou. O veneno tinha que ser posto para fora, pois estava dentro dela desde a manhã, quando Carmenteira lhe contara sobre a espanhola. Meu Deus, tinha só vinte anos! Se tudo que pretendia dela era que gerasse um filho, o herdeiro, então só lhe restava morrer...
- Essa conversa já foi longe demais. - A expressão de Dom Diablo era terrível quando chamou o garçom e pediu a conta. Deixou uma gorjeta generosa, e segurando Paula pelo braço, levou-a para fora do restaurante. O sol brilhava forte. A paisagem era estonteante e Paula via tudo enevoado, seus olhos estavam baços d'água. Começou a caminhar em silêncio, dirigindo-se com ele para o carro, pois imaginou que voltariam para a fazenda. Qual não foi sua surpresa ao vê-lo pegar o calção de banho, seu maiô e as toalhas, e o chapéu que ela comprara aquela manhã e que ele achara tão engraçado.
- Vai estar muito quente na praia - disse Dom Diablo.
- Ainda quer ir? - perguntou ela desconfiada. - Não me importo se formos para casa...
- Não seja criança e pegue este chapéu ridículo. Por Deus, se pensa que vou renunciar a um mergulho no mar, só porque discutimos você se engana muito - ironizou ele. - Fique no carro se não quiser ir comigo para a praia. Seria bem capaz de fazer uma tolice destas! - Ao dizer isso, afastou-se do carro, caminhando em direção aos degraus de pedra que desciam até a areia. Paula olhou para ele, indecisa. A brisa do mar bateu então em cheio em seu rosto. Estremeceu ao sentir o cheiro das algas. Bolas, pensou, ele que fosse para o inferno! Iria nadar até ficar atordoada e esquecer sua desgraça. Ele que se danasse .com a sua arrogância! Não renunciaria ao prazer que lhe daria o banho de mar só por sua causa!
Chegando à areia, Paula viu que ele alugara uma dessas cabanas com teto de sapé onde a areia não chegava. Ficou do lado de fora esperando que ele saísse. Vestia um maiô preto. Seus quadris eram fortes mas estreitos, o torso, o pescoço e as pernas longas e musculosas. Ele passou por ela e caminhou para o mar onde vagalhões se sucediam, formando uma espuma branca e tentadora. Entrou na água até a altura da cintura, os braços reluzentes ao sol, como se fossem de cobre.
O barulho das ondas que arrebentavam fez com que Paula se trocasse rapidamente. Pôs o maiô bem justo, e prendeu o cabelo com uma fita que encontrou na bolsa. Saiu da cabana e começou a correr sobre a areia morna e muito fina. Respirou fundo. Sentia um prazer que há muito tempo não sentia; uma sensação que a fazia voltar à infância. Ao mergulhar na água sentia uma carícia vibrante, envolvendo seu corpo jovem. Nadar no mar novamente lhe causava uma sensação quase de volúpia. Sempre gostara de natação, e Marcus foi seu professor. Deixou que as ondas levassem para longe suas preocupações e suas mágoas. Tentou se desligar de tudo que a fazia sofrer, e usufruir plenamente o prazer daquele instante. Nem se voltou para procurar o marido que deveria estar nadando ali por perto. Queria fazer de conta que estava completamente só. Agora ela era só Paula e não a mulher dominada e sob as ordens de um homem que odiava. Marcus certamente não reconheceria mais a menina dócil, bem-humorada e obediente que ele criara. Essa não existia mais. Seria para ele como uma estranha, com seu olhar selvagem, suas crises de raiva, suas explosões de ódio! Tinha a certeza de que Marcus ficaria chocadíssimo se a visse agora. Ele nunca imaginaria que Dom Diablo não fosse um bom marido, mesmo sendo rude e dominador.
Paula nadava com facilidade. A temperatura da água estava agradável. Resolveu então nadar de costas, os olhos fitos na azul intenso do céu. Tudo estava tão calmo, tão tranqüilo, podia até imaginar que Dom Diablo tivesse mergulhado e desaparecido... De repente, sentiu-se tentada a olhar à sua volta, mas não viu ninguém; não havia ninguém por perto. Sobreveio-lhe, em seguida, um espasmo no estômago...
Será que suas súplicas aos deuses pagãos haviam sido atendidas? Teria ele desaparecido silenciosamente e para sempre de sua vida?... De repente, deu um grito; uma forma esguia saiu abruptamente do fundo da água e um braço forte e bronzeado cingiu-lhe a cintura:
- Veja, temos o mar só para nós dois - Dom Diablo deu uma risada. Parecia encantado.
- Toda essa gente preguiçosa está fazendo a sesta... Você nada bem, querida. Se pelo menos ficasse mais descontraída, em meus braços...
Paula percebeu que ele estava todo satisfeito por lhe ter pregado um susto. Começou então a se debater em seus braços como uma enguia. Estava com os nervos à flor da pele, pois ficara assustada com a sua aparição súbita.
- Pensei que tivesse se afogado - disse ela. - Doce ilusão a minha...
- Que pensamentos pecaminosos para uma jovem esposa! - caçoou ele. - Minha cara, não se livrará de mim tão.facilmente. Nado como um peixe e sou resistente como o aço! Talvez seja meu sangue índio...
- Acho que seria melhor compará-lo a um tubarão! Silencioso e ágil, como esse monstro do oceano!
- Pensou então que estava sendo atacada por um tubarão? Eles ficam perto dos rochedos onde se pesca, mas raramente chegam até a baía, pois aqui é lindo e profundo. Não há cavernas nem refúgios para eles. Há uma lei local, sugerida por mim e atualmente em vigor, que exige que esta baía seja conservada absolutamente limpa em benefício dos que freqüentam a praia. Há alguns anos houve nesta área, uma terrível epidemia de poliomielite, causada pelas péssimas condições de higiene existentes na ocasião. Porém agora o mar aqui é limpo e seguro, apesar das ondas fortes.
Paula teve que concordar com ele. Ficou um pouco surpresa ao saber que ele se preocupava com esse tipo de coisas, como por exemplo, transformar a pequena baía num lugar encantador, onde os habitantes da região pudessem usufruir com segurança os momentos de lazer, em águas livres de poluição.
- Foi muita generosidade a sua preocupar-se com o bem-estar dos outros, moradores. Poliomielite é uma doença tão terrível!
- É mesmo - respondeu simplesmente, olhando para a praia, uma faixa branca e luminosa a uns seiscentos metros do local em que estavam. Paula continuava flutuando em seus braços, agora sem reagir...
- Seria um tremendo golpe para você, se eu realmente conhecesse o seu outro lado, o lado fraco?
- Quem sabe? - respondeu Dom Diablo. - Vamos experimentar? - Ele a soltou e Paula começou a nadar imediatamente em direção à praia, como jamais o fizera antes, esforçando-se para chegar antes dele. Se ao menos ela conseguisse! Se por algum milagre pudesse provar que não era aquela criaturinha frágil que ele pensava que fosse e a quem podia dominar como uma fêmea indefesa...
Olhou para o lado e viu que ele nadava sem o menor esforço. Os movimentos de seus braços eram vigorosos e regulares; seus dentes brilhavam muito alvos e percebia-se que ele a acompanhava com a maior facilidade, e só não a ultrapassava porque não queria. Num acesso de raiva, Paula atirou-lhe água nos olhos, mergulhando depois deste ato de coragem e engolindo muita água! Engasgou, quase se afogou, até que os braços fortes dele a agarraram, arrastando-a a nado até a praia. Lá chegando colocou-a na areia e ali ela ficou inerte. Seguiu-se uma ladainha de palavras em espanhol e Paula podia adivinhar significado de suas imprecações... Ela tossia, ainda engasgada, a areia grudada em seu corpo molhado.
- Sua tola! Um dia acabará mal com todas as suas loucuras e criancices! Quando é que vai crescer?
O que a deixou mais mortificada foi a certeza de que ele estava totalmente com a razão.
- É sempre infalível, não é, senhor? Será que nunca fez nenhuma tolice em sua vida? Pois saiba que a maior delas foi me obrigar a casar com você, obrigando-me avir para um país estranho, submetendo-me às suas exigências. Eu odeio essa sua pretensão, essa sua arrogância!
- Este assunto já está se tornando monótono - retrucou ele, em pé, na sua frente, como uma estátua de bronze. A água escorria de seu corpo e pingava sobre o dela. - Você usa a palavra ódio com tanta freqüência, minha querida, que já está começando a perder o efeito!
- Quer dizer que já surtiu algum efeito? - perguntou com ironia, ajeitando o cabelo que se soltara da fita e lhe caía solto pelas costas. O maiô estava muito colado ao corpo e Paula ficara ansiosa para tirá-lo, pois estava cheio de areia.
- Nunca permiti que alguém me dissesse um décimo das insolências que você já me disse. Chegou a hora de parar com isso e mudar de atitude - disse ele lenta e pausadamente.
- O que pensa fazer? Domar-me com um chicote? - perguntou.
- Não preciso usar o chicote com você - inclinou-se subitamente e ajoelhando-se ao lado dela, afastou-lhe o cabelo dos olhos e, ágil como um felino, prendeu-a entre suas pernas fortes de tal modo que ela não poderia escapar.
- Não faça isso - suplicou ela, vendo que não podia fugir.
- Não? E quem é que vai .me impedir? Estão todos fazendo a sesta. Temos a praia inteira só para nós dois. Você pode gritar, lutar, morder, ficará exausta mas terá que se render. Vamos querida, vamos começar o nosso treino antes da luta final.
- Vá para o inferno - disse ela, vendo que não podia fugir. Continuava ali estendida, ele reclinado sobre ela. Seu corpo emanava um calor que a queimava. Paula fechou os olhos e cerrou os dente, sentiu então os lábios dele roçando seu pescoço.
- Puxa, está cheia de areia! - reclamou, e levantou-se. De pé, ajudou-a a fazê-lo. Seus olhos se estreitaram com um brilho malicioso. Deu-lhe um tapinha nos quadris e disse-lhe fosse se arruma um pouco. - Se bem que eu até diria que não há nada mais encantador que uma mulher um pouco desarrumada. Porém, sem tanta areia e com um gênio um pouco melhor! Corra, minha gatinha selvagem, antes que eu mude de idéia e decida cortar suas garras!
- Imbecil! - insultou-o, mas só depois que ele a soltou e pôde se refugiar na cabana. Depois que trancou a porta sentiu-se mais tranqüila. Tirou o maiô e esfregou-se vigorosamente com a toalha de banho. Quando nadava com Marcus tudo era bem diferente. Após o banho costumavam deitar-se preguiçosamente na areia, tranqüilos, os nervos relaxados... Com Dom Diablo sempre ficava tensa, voltava-se com o menor barulho. Sentiu-se mais aliviada quando fechou o zíper do vestido.
Maldito! Provocava-a e sempre conseguia fazer com que ela se comportasse como uma idiota. Por que não conseguia manter uma atitude calma e digna em vez de entrar no seu jogo? Afinal terminavam sempre em discussões ridículas... Escovou o cabelo até que saísse toda a areia, prendendo-o num coque. Ao sair da cabana, já estava mais calma e mais arrumada. Com a cabeça erguida, passou por ele, que esperava apoiado no tronco de uma palmeira. Paula desviou o olhar. Não queria pensar nos momentos em que estiveram deitados na areia, os corpos muito unidos...
- A cabana está à sua disposição - disse ela. - Devo esperar no carro? - Ela temia, e Dom Diablo sabia disso, que ele a agarrasse de novo e a estreitasse contra seu corpo. Sentia-se fraca para resistir ao fascínio daquele homem forte e ágil como um felino.
- Não, fique aqui. Logo estou de volta!
Entrou na cabana sem trancá-la como ela o fizera. Paula ficou observando as ondas imensas que morriam suavemente na praia. A luz era crepuscular. De repente seu coração começou a bater descompassadamente. Um homem, segurando uma toalha e um maiô, caminhava em sua direção. Ao ver aquele cabelo loiro e o jeito de andar, Paula reconheceu-o imediatamente. Não! Queria gritar. Não venha! Não fale comigo! Não me reconheça!
- Senhora! Que prazer! - Suas palavras ecoaram no silêncio da praia, quebrado somente pelo murmúrio das ondas que iam e vinham... Não poderia ignorá-lo, apesar da cabana estar próxima e dos ouvidos aguçados de seu marido! Não poderia deixar de responder a Gil Howard, não poderia simplesmente ignorá-lo...
- Alô, sr. Howard. Vai dar um mergulho antes que a maré suba?
- Isso mesmo. Esta é a minha praia favorita para nadar. Depois de terminar o trabalho e com a perspectiva de uma noite de lazer... - Cobriu com passos largos os últimos metros que o separavam de Paula. Bem próximo agora, olhou-a com admiração.
- Vejo que já entrou na água. Parece uma sereia assim molhada...
- Por favor - pediu-lhe baixinho, os olhos súplices voltados para a cabana onde Dom Diablo se trocava. - Não diga essas coisas, meu marido não gostaria!
- Ora que bobagem! - Gil Howard fez uma careta. – Então estava nadando com seu marido mexicano? Está tão trêmula! Parece até que esta querendo me ver pelas costas... Será que seu mando é tão monstruoso a ponto de não permitir que converse com outros homens? Se é assim, sua vida deve ser um inferno...
- Será um inferno se você não for já embora - deu um sorriso forçado, visto que ele se mostrava tão amistoso.
- Seu desejo é uma ordem para mim, jovem e loira senhora. Será que existe alguma chance de que possamos nos ver novamente a sós?
- Nenhuma - respondeu ela apressadamente. - Por favor, vá embora antes que ele o veja...
Mas já era tarde... Naquele mesmo instante afigura de Dom Diablo, imponente e viril, apareceu na porta da cabana. Desceu os degraus, o olhar duro e penetrante. Era o protótipo do marido latino que não admitia que a mulher mantivesse com outro homem nem uma simples relação amigável.
Gil Howard lançou-lhe um olhar compreensivo, continuando a passear naturalmente. Para todos os efeitos era um banhista que passava por acaso e puxara conversa com uma moça que se encontrava sozinha na praia. Paula deu um suspiro de alívio. Não queria apresentá-lo a Dom Diablo... Queria, agora o percebia, o coração batendo mais rápido, que Gil Howard fosse um segredo só seu. Alguém em quem ela pudesse confiar e que a ajudasse a sair do país quando chegasse o momento.
- Aquele sujeito a estava importunando? - perguntou carrancudo.
- Absolutamente - respondeu ela, com um sorriso forçado. - Sabe como são os rapazes, estava só querendo fazer novas amizades .
- Quer dizer que a convidou para sair com ele? Por que não me chamou? Ou quem sabe gostou do encontro? Percebi que ele não é mexicano...
- Não, talvez seja inglês ou americano... De qualquer forma, senhor, vamos esquecê-lo. Ele não estragou minha reputação como sua esposa! Não houve tempo para isso!
- Cuidado, Paula! - segurou-a pelos ombros com dedos que pareciam de ferro. - Eu jamais toleraria em você um comportamento que fosse uma espécie de vingança. Não permitirei que desça ao nível de certas mulheres que usam outros homens para se vingarem dos maridos. Preferiria que você usasse um punhal.
- Não me provoque, meu caro esposo! - Desviou o olhar, pois não conseguia encará-lo. Olhou para o horizonte. O crepúsculo chegara tingindo o céu de vermelho. O mar ficara mais escuro e agora ao barulho das ondas se somavam os gritos dos pássaros marinhos. Alguns barcos de pesca, decorados com motivos religiosos, vinham voltando para a praia. A brisa marinha soprava mais forte, desmanchando os cabelos de Paula. O sol batia em sua fronte descoberta fazendo com que seus olhos ficassem ainda mais dourados. Ao seu lado Dom Diablo começou subitamente a dizer algumas palavras em espanhol e como ele falava devagar, Paula pôde compreender:
Quando o fogo vai embora, as cinzas retêm o calor
Quando o amor termina, o coração sofre com a dor
Quando o sol desapareceu e sobreveio a noite, Paula se lembrou da fotografia que vira aquela manhã... Era neste amor que ele estava pensando? Haveria ainda dor em seu coração para que o crepúsculo o fizesse pensar nestes versos?
Então, se afastaram do mar, voltando pela areia até a escada que levava à calçada. Paula estava certa de que Gil Howard a estaria observando de algum lugar na praia. Esse pensamento fez com que se descuidasse, tropeçando na escada. Teve que se apoiar em Dom Diablo para não cair. Imediatamente ele a segurou pela cintura.
- Cuidado, querida! Não gostaria que você se machucasse!
Não, pensou ela ressentida, tenho que me manter intacta para gerar um herdeiro perfeito!
- Estou bem. - Escapou de seus braços, correu para o carro e sentou-se sozinha no banco de trás. Experimentava uma sensação de angústia que parecia aumentar com o cair da noite.
Quando passaram pelos majestosos portões da fazenda, os lampiões estavam acesos. Logo que o carro parou, Paula desceu, dirigindo-se para casa como que fugindo dele. Queria ficar sozinha com seus pensamentos amargos e desesperançosos, mas na verdade ficara muito magoada ao saber que ninguém jamais a amara por ela mesma...
Marcus a amara porque ela se parecia com Daisy; Dom Diablo a amava apenas por sua beleza, por seus dotes físicos... Eram estes os requisitos que queria para a mãe de seu filho. Ela não podia pôr em risco sua beleza! Ao subir as escadas, lembrou-se de Gil Howard. Desejava desesperadamente encontrá-lo sozinha, quando Dom Diablo não estivesse rondando por perto. Ele jamais compreenderia uma simples amizade; pensaria logo numa ligação clandestina...
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