Capítulo 2
O lugar era belíssimo, parecia um sonho... No entanto, para Paula, tudo parecia um pesadelo do qual não conseguia desperta. Havia se casado com um homem que mal conhecia e mesmo a cerimônia na igreja de Santa Ana, perto de Stonehill, lhe parecia agora uma lembrança vaga. Não entendera as palavras do padre ditas em latim. Lembrava-se apenas de um par de alianças de ouro, uma para ela, outra para Dom Diablo. A ida de carro até o aeroporto fora rápida. E agora estava ela ali no México com aquele estranho!
O sol brilhava tanto, como se refletisse milhares de facetas de um enorme diamante. Os muros altos e brancos da casa da fazenda tinham um aspecto quase feérico. Cobertos por primaveras vermelhas em plena florada, era como se um enorme manto escarlate de toureiro houvesse sido estendido em toda sua extensão.
Era o lugar ideal para o amor, se ela amasse seu marido. Mas Paula maI o conhecia e para ela a fazenda era como uma prisão alto de uma montanha rochosa, com um vale verdejante à sua frente.
A fazenda, chamada de Casa Real pelas pessoas que viviam e moravam na propriedade, era tão vasta que Paula não conseguia avaliar o quanto Dom Diablo possuía em terras, dinheiro e poder. Era como se um senhor feudal tivesse chegado de repente, arrebatando-a de seu ambiente e levando-a para aquela terra estranha. Marcus certamente se deixara influenciar por tanta riqueza e tanto poder; neste caso, deixara que sua alma de jogador avaliasse o candidato e Paula, levada pela emoção do momento, se deixara arrastar, consentindo no casamento. Fora impelida mais pelo medo de ficar sozinho do que por qualquer sentimento de afeto. Ele chegara num momento em que ela, totalmente desprotegida reagira apenas guiada por seu instinto de autopreservação.
- Por que a chamam de Casa Real? - perguntou com uma certa ironia, enfrentando o olhar duro de Dom Diablo.
- Entre os meus ancestrais há uma sacerdotisa asteca - disse ele, esboçando um sorriso. Seus lábios pareciam esculpidos, como aliás todo o seu rosto. - A casa da fazenda está construída no local do templo dessa sacerdotisa. Lá embaixo, no desfiladeiro, centenas de pessoas foram trucidadas pelos espanhóis - acrescentou ele, apontando com o dedo. - Um nobre espanhol obrigou a sacerdotisa a se casar com ele. Um ano após o casamento ela levou seu filho recém-nascido à beira do abismo e estava prestes a se atirar lá de cima com a criança, porém, no último instante, mudou de idéia e em vez de se matar com o filho, deixou-o entre as samambaias, onde foi depois encontrado pelo pai. Suicidou-se porque não queria um filho com sangue espanhol. Essas são as raízes da minha família. Agora você sabe tudo, minha querida.
Um arrepio percorria o corpo de Paula cada vez que ele a chamava assim. Na Inglaterra, ele parecia mais formal tanto na forma de se vestir como no trato com as pessoas. Mas no México, Paula descobrira uma nova faceta na personalidade de Dom Diablo. Vestia calças justas, típicas do país, a camisa branca rendada e o chapéu preto de abas largas. Parecia que ele tinha várias personalidades que se alternavam segundo as ocasiões e conveniências.
Em silêncio, pensava nele como Dom Diablo, e sobressaltou-se externando um certo medo, quando ele se aproximou dela e se encostou na balaustrada do terraço que se debruçava sobre o desfiladeiro, onde o verde das plantas contrastava com o vermelho vivo da terra. Paula estava fascinada, principalmente agora que conhecia a tragédia que ali ocorrera. .
- A comida está na mesa, minha querida, e ficará fria e não será tão boa, se não formos logo. A melhor cozinheira dessa região ficaria muito desgostosa comigo.
- E você se incomodaria se um de seus empregados se aborrecesse? - Paula afastou-se da balaustrada. - Parece-me que nada neste mundo seria capaz de abalar seus sentimentos.
- Você acha que sou frio e duro como aço? - perguntou ele. - Será que é por isso que tem medo de se aproximar de mim? Tem medo que seu corpo delicado se quebre ou se machuque contra o meu?
Com um lampejo no olhar, ele observava Paula, medindo-a da cabeça aos pés. - Na Inglaterra, achei você belíssima, mas aqui no meu país me parece ainda mais encantadora. Seu tipo é tão diferente de nossas mulheres, o cabelo loiro tal como o ouro que os cruéis colonizadores obrigavam os índios a retirarem das profundezas da terra...
- Você parece se esquecer que também tem o sangue dos colonizadores nas veias!
- Concordo e provavelmente este sangue correrá mais forte se continuar a me tratar assim, como se eu fosse um estranho em vez de seu marido. Agora, minha esposa, vamos nos sentar e comer. A comida é tipicamente mexicana, como minha casa e minha alma!
A claridade era intensa e o calor escaldante. Apenas embaixo da enorme mangueira estava mais fresco. A mesa circular de bambu, havia sido posta à sombra da árvore e estava coberta com uma toalha rendada. As cadeiras também eram de bambu. Ao centro da mesa via-se um arranjo exótico de orquídeas e garrafas de vinho dentro de uma cesta redonda.
- Sente-se - disse ele, puxando-lhe a cadeira. Ao se sentar, Paula esbarrou em Dom Diablo, e sentiu-se um pouco perturbada. Ele parecia realmente dominá-la, muito alto e másculo, a camisa branca contrastando com a pele queimada de seu corpo. Marcus era moreno, mas não tanto quanto ele. Era alto, mas Dom Diablo era tão mais que Paula se sentia minúscula ao seu lado. Marcus fora severo, mas seu marido era muito diferente; uma sensação fortíssima de poder, tanto físico como mental, emanava dele.
Desde o casamento tinham estado viajando e somente agora ocorrera a Paula que estava "em casa" e que apenas hoje começava realmente a vida deles em comum.
- Estou quase certo de que gostará da comida, uma vez que aceite e se habitue aos temperos picantes dos pratos mexicanos.
Paula lançou-lhe um olhar desconfiado. Empregados índios, com paletós brancos, aproximavam-se da mesa, um deles, servindo o vinho e o outro a comida. Podia sentir o olhar de Dom Diablo que a observava o tempo todo. De repente, Paula, sentiu-se invadida por uma onda de emoção... Para obedecer Marcus mesmo após a sua morte, se casara com o homem que seu tutor escolhera para ela... Mergulhada na sua mágoa sem esperanças fora levada ao altar, que agora lhe parecia o símbolo do sacrifício.
- Vamos brindar juntos - disse Dom Diablo, levantando o copo de vinho. - Vamos, brinde comigo, minha querida, pois na verdade este é o nosso almoço de casamento.
- Cometi um erro terrível casando-me com você. Eu estava fora de mim por causa da morte de Marcus e agora...
- Agora é muito tarde para arrependimentos - interrompeu-a. Agora você é minha, assim como sou seu.
- Mas só no papel - disse Paula, inclinando-se para a frente. Havia uma súplica silenciosa em seu olhar. - Um casamento como o nosso pode ser anulado, pois não estamos... não estamos realmente unidos...
- Mas estaremos muito breve. Quero que levante seu copo para que possamos brindar juntos, minha querida, pois não tenho a menor intenção de deixá-la ir embora. Casamos na igreja católica e em cada uma de suas mãos está um anel dado por mim, aliança de ouro e os rubis Ezreldo Ruy.
- Está me ameaçando? - perguntou, chocada.
- Eu seria obrigado a castigá-la se tentasse fugir de mim, além do que não iria muito longe. Essa propriedade é imensa e nesta terra só vive gente minha. Não estamos mais na Inglaterra; aqui sou eu quem administra tudo e se consigo cuidar de coisas que estão a quilômetros daqui, imagine como tomarei bem conta do que está tão perto... - Olhou-a com firmeza e severidade.
- Você é muito rude! - Paula nunca afirmara uma coisa com tanta convicção.
Baixou então os olhos e apanhou o cálice de vinho. Seus instinto de mulher lhe diziam que devia primeiro descobrir os pontos fracos daquele homem a fim de lutar melhor contra ele.
- A quem vamos brindar? - perguntou, tentando disfarçar sua amargura. - Quer uma confirmação da promessa que sempre o honrarei e obedecerei?
- Tenho certeza, Paula, que me honrará e obedecerá.
- Espero então que não esteja pensando em me pedir que faça promessas de amor.
- Endireitou o pescoço, levantou a cabeça e olhou-o diretamente nos olhos e acrescentou:
- Talvez obtenha alguma coisa de mim, mas amor nunca, Don Diablo!
- Palavras corajosas, querida! - exclamou, sarcástico. - Tomara que possa ser sempre assim, orgulhosa e destemida. Jamais pensei em ter a meu lado uma mulher submissa. A você, minha esposa, a quem quero tanto - brindou ele.
O coração de Paula deu um salto. " A quem quero", dissera ele. Ela preferiria que ele tivesse dito "a quem amo", pelo menos teria sido mais romântico...
- A sua saúde, meu esposo! - Ergueu o copo, numa atitude de desafio e acrescentou:
-Antes morrer do que amá-lo!
- Obrigado! - Sua expressão não se alterou, apesar de suas palavras insultuosas. Dom Diablo pousou então o copo na mesa e começou a comer. - Está ótimo, querida. Deve se esforçar para comer para que a cor volte ao seu rosto. Quando suas faces estão rosadas, você é a garota mais linda do mundo!
- Eu preferiria mil vezes ser feia - replicou ela. - Assim você não iria me querer e nem se aproximaria de mim. Percebe-se logo, observando como vive, que gosta de estar cercado por coisas que lhe agradam a vista.
- Mas me diga então uma coisa, minha querida, você acha que Marcus a teria querido se fosse feia em vez de se parecer com a mulher que ele adorava? Marcus viu em você a réplica de sua mãe. Se fosse diferente, ele com certeza a teria posto num orfanato.
- O que está dizendo é uma crueldade e uma injustiça! - protestou Paula, olhando com ódio para ele. - Marcus tinha coração, não era um demônio como você.
- Você sabia que no inferno não havia uma fúria que se igualasse à da noiva de Satã?
- perguntou sorrindo. - A comida está maravilhosa, como aliás tudo nessa propriedade. Mais tarde vou levá-la para conhecer a fazenda. Vai então ter que admitir que, mesmo não gostando de mim, a fazenda é bonita. E não venha me dizer que não gosta de coisas que lhe agradem a vista, querida!
- Espero gostar do lugar - respondeu Paula, comendo com muito apetite o rosbife com batatas e creme de milho. A carne estava macia e o molho picante dava-lhe um sabor muito especial. Alimentava-se bem, não podia negar, e aos poucos estava se ambientando. Mas só quando se sentisse em plena forma física teria forças para lutar contra este homem.
Paula notou então pela primeira vez o pátio da casa em estilo mourisco, em cujo centro havia uma fonte antiga de mármore verde, de uma perfeição clássica!
Era inegável que havia beleza por toda parte, mas quando olhava para Dom Diablo, via um inimigo em vez de um companheiro querido como fora Marcus. Os músculos de seu pescoço se contraíram, os olhos começaram a arder e teve medo de começar a chorar novamente. Cerrou fortemente as pálpebras e tomou um gole de vinho.
- O sol a incomoda? - perguntou ele. - A claridade vai castigar seus olhos por algum tempo, pois com certeza nunca viu um sol tão forte assim, não é? Quando sair ao sol, Paula, leve sempre um chapéu... Vou lhe dar um de abas largas como se usa aqui, para proteger sua pele clara e delicada.
- Teme que eu fique vermelha como uma beterraba ou que descasque como uma cebola? Se é por isso, fique certo de que farei o possível para me queimar bastante!
- Posso lhe assegurar que uma insolação não seria muito agradável para você, por isso trate de não ser infantil. - Lançou-lhe um olhar irônico e ligeiramente ameaçador. - Se eu souber que saiu ao sol sem chapéu, fique certa de que levará uma lição. Imagino que nunca tenha levado uma surra em toda a sua vida, mas fique certa de que se pretende me desafiar, saindo a cavalo ou a pé sem chapéu, dou-lhe umas palmadas. E quando eu digo que faço, não duvide de mim. Comporte-se como uma criança e será tratada como tal.
- Então quer dizer que isso é uma promessa? - perguntou Paula, levantando a cabeça com ar de desafio. Um empregado aproximou-se então da mesa e disse algumas palavras para seu patrão. Paula não entendeu o que ele disse, apesar de ter aprendido um pouco de espanhol quando passou umas férias com Marcus no sul da Espanha. Don Diablo levantou-se da mesa, desculpando-se e dizendo que voltaria logo. Paula notou pela primeira vez que ele tinha o porte de um toureiro. Podia até imaginá-lo parado com uma espada na mão olhando fixamente para o touro enquanto enfiava a lâmina diretamente no coração do animal. Tinha certeza que ele não hesitaria em fazê-lo e não sentiria o menor escrúpulo ao ver o sangue do anima jorrando na arena.
Dom Diablo afastou-se da mesa com passos largos e silenciosos. Alguns momentos depois o empregado trouxe a sobremesa: era uma torta deliciosa, coberta de fatias de abacaxi e mamão, regada com creme de leite. Paula comeu o doce tranqüilamente. Sentia agora uma deliciosa sensação de paz que, esperava, não fosse interrompida pela presença daquele homem com quem se casara precipitadamente. Ouvia o suave barulho da água na fonte de mármore e o canto alegre dos pássaros coloridos, nas árvores floridas da varanda e do pátio interno. A variedade de aves era enorme, desde colibris até faisões. O lugar certamente era tentador para os pássaros pela exuberância e pelo colorido de suas flores. Os olhos de Paula seguiam o vôo dos beija-flores que saíam e entravam nos viveiros de bambu. A Inglaterra estava tão longe! Seu lugar agora era ali, pois perdera seu lar, sua casa, e não tinha mais para onde ir. Stonehill, com suas pedras cinzas e suas torres, teria sido uma casa triste, se não fosse pela presença de Marcus. Paula jamais se sentiu deprimida na companhia dele. Esta casa mexicana, porém, parecia uma fortaleza, uma prisão dourada. Paula teve maus pressentimentos e concluiu que era preciso arrumar um meio de fugir dali.
Estava imersa nesses pensamentos quando viu Dom Diablo aproximando. Endireitou-se na cadeira e seu olhar despreocupado desapareceu. Sua expressão não escondia sua angústia. Sentia-se desamparada. Era como se tivesse sido arrancada de seu ambiente familiar e levada para um lugar do demônio; Dom Diablo estava com a fisionomia carregada e muito tenso. Sentou-se e esperou imóvel que o empregado lhe servisse um café. Paula calculou que ele devia ter feito alguém passar uns maus bocados. Quando olhou diretamente para ela, como que adivinhando seus pensamentos, Paula conteve a respiração!
- Tive que cumprir uma missão ingrata. Detesto ter que mandar alguém embora! Um dos rapazes que trabalham na cocheira maltratou de tal forma um dos meus cavalos que machucou a boca do animal. Aquele outro empregado que veio me procurar me contou que o cavalo começou a escoicear, encurralando o rapaz num canto da estrebaria e machucando-o muito. Você sabia que um cavalo ferido pode às vezes, ser tão perigoso quanto um tigre?
- Então, e por isso que na Espanha, em certas touradas, usam cavalos para que os touros invistam contra eles, já que maltratados e feridos ficam mais agressivos e perigosos, tornando assim o esporte mais excitante? O povo gosta de ver sangue, não é? - perguntou agressiva.
Dom Diablo não disse nada. Olhou para ela, impassível, e levantando calmamente a xícara, saboreou o café puro, sem açúcar nem creme.
Deve ser amargo como fel, pensou ela, despejando meia colher do creme em sua xícara. Percebeu, então, um rasgão na camisa branca de Dom Diablo, na altura do ombro direito. Calculou que ele tivesse tido que dominar o cavalo enfurecido, afastando-o do rapaz que o maltratara.
- Você já assistiu a alguma tourada? - perguntou-lhe.
- Já, e devo lhe dizer que odiei! -replicou um pouco exaltada. - Senti repugnância pela maneira com que a multidão se comprazia e delirava diante da tortura e do sofrimento dos animais. Não é à toa que os colonizadores, tão abomináveis e cruéis, tenham vindo de um país como a Espanha. Massacrar os pobres índios deve ter sido um passatempo agradável para eles.
- Os índios não eram assim tão indefesos como pensa. Tinham métodos muito refinados de tortura - sorriu. - Um deles era obrigar o prisioneiro espanhol a engolir óleo fervendo ou mesmo ouro incandescente. Creia-me, querida, há traços de crueldade nos homens de todos os países, mesmo no seu.
- Duvido que algum inglês chegue aos mesmos extremos de crueldade que vocês latinos. Eu mesma ouvi você dizer que nós ingleses somos mais moderados.
- Eu estava me referindo ao amor - retrucou Dom Diablo, recostando-se na cadeira de bambu. - Tirou do bolso da calça uma belíssima cigarreira de ouro e acendeu uma cigarrilha escura. Depois de uma tragada, perguntou-lhe com certa ironia:
- Nunca lhe ocorreu que talvez tenha sido uma crueldade de seu tutor deixá-la em minhas mãos? Não estranha o fato de ele ter dado prioridade a valores materiais em vez dos emocionais, preferindo que tivesse um marido rico a um apaixonado? Não venha me dizer que quando você aceitou minha proposta de casamento, o fez por causa do Marcus, por ter sido seu último desejo aqui na terra?
- Foi isso mesmo! - Sua voz soou rouca. - Fiz o que ele desejava, mas agora me pergunto por que o fiz! Às vezes imaginando se alguma vez ele se arrependeu de ter amado tanto Daisy aponto de fechar seu coração a qualquer outra mulher. Talvez o amor tivesse sido para ele uma experiência tão amarga e sofrida que achou melhor que eu não o conhecesse, para não sofrer depois. Conhecendo-o bem, tenho certeza de que ele só poderia ter tentado evitar que eu sofresse uma desilusão; tenho certeza de que seria incapaz de me fazer sofrer deliberadamente.
- Fale-me um pouco de Marcus - pediu-lhe Dom Diablo. - Gostava dele? Encorajou-o até que ele acreditasse que podiam fazer amor juntos?
- Não, não a esse ponto. E não seja tão exigente como os maridos latinos tradicionais
- sorriu meio sem graça. - Se soubesse que eu não era honesta me mandaria embora? Ouvi dizer que os latinos dão uma importância enorme à virgindade de suas noivas! Estou certa que você teria um choque se soubesse que sua noiva não era virgem...
- Se você tivesse se deitado com algum homem antes de mim, eu perceberia logo... - Ele falava com aquela segurança que tanto a irritava.
- Tem certeza de que nunca se engana? É sempre assim, tão seguro de si? - perguntou intempestivamente. - Pensa que foi o único homem que desejou o meu corpo, o meu amor? Quando eu tinha quinze anos, Marcus me contou tudo o que eu devia saber sobre os homens e disse também o que é que eles desejam quando a garota é bonita. Explicou-me que os homens não acham que uma moça bonita precisa ser inteligente. Basta que seja cordata e de preferência sem vontade própria! Em geral, durante as férias, aproveitávamos para viajar por vários países da Europa. Marcus ensinou-me a apreciar a boa pintura, obras de arte, música, a arquitetura dos monumentos e das construções antigas. Ensinou-me a ser mais racional e menos romântica. Assim, quando os rapazes tentavam se aproximar de mim eu já sabia que a maioria deles só queria meu corpo... – Paula sorriu com amargura. - Pode ficar tranqüilo, Dom Diablo. Fez uma boa aquisição, se realmente faz questão de uma mulher ainda virgem. O coração que eu tinha para dar, dei a Marcus. Assim, para você só resta meu corpo, vazio de qualquer emoção. Uma estátua e não uma mulher.
- Então acha que não conseguirei fazer com que se torne uma verdadeira mulher? Você só tem vinte anos e é absolutamente inexperiente, ao passo que eu já era um homem quando você nasceu. Está me desafiando garota, mas sou muito latino para não aceitar o desafio. Vamos ver se consigo ou não dar vida a uma estátua de mármore!
- E se não conseguir? - perguntou com certa impertinência. - Você me deixará ir embora?
- Querida, eu nunca desisto do que é meu!
- Então prefiro contrair alguma doença mortal a ter que passar o resto de minha vida aqui neste país, ao seu lado! - Um silêncio constrangedor se seguiu às palavras insolentes de Paula.
Dom Diablo deu então um murro na mesa, fazendo com que as porcelanas e pratas tremessem. Paula assustou-se e ficou tensa.
- Não ouse mais falar comigo nesse tom, ouviu bem? Isso aqui é solo mexicano e os antigos deuses espreitam nas sombras, ouvindo tudo o que dizemos. Há aqui em casa uma velha feiticeira. Carmenteira, que poderá lhe contar como os deuses antigos atendem mais depressa aos nossos desejos pecaminosos do que aos de santidade! Você fala como se tivesse se casado com o próprio Lúcifer!
- Pois foi o que aconteceu, casei-me com o próprio! - replicou. - Não consigo ver em você outra coisa que não seja o demônio!
Dessa vez, porém, Paula fora longe demais, Dom Diablo não podia aceitar aquilo de sua mulher! Ela passara dos limites e não podia deixar de ser castigada. Levantou-se imediatamente, aproximou-se dela e tirou-a com certa violência da cadeira onde estava sentada, puxando-a para junto de seu corpo forte e poderoso. O calor que emanava do corpo dele invadiu-a, provocando-lhe uma sensação estranha. Ele apertou com força os braços de Paula que, ao se sentir machucada, gemeu de dor e começou a lutar como um animal selvagem, chegando a lhe dar um pontapé. Mas, como se nada sentisse, Dom Diablo a apertou ainda mais contra seu corpo másculo. Segurando seus cabelos loiros entre seus dedos finos, inclinou a cabeça de Paula para trás, fazendo-a gemer novamente. Apesar de ela continuar lutando, procurou-lhe os lábios com uma paixão selvagem que não admitia recusa. Seus braços fortes a subjugavam enquanto a obrigava a ceder ao seu beijo. Inclinou então sobre ela o corpo forte e dominou-a completamente. Paula evitara sempre qualquer tipo de intimidade com os homens que se haviam aproximado dela. Divertia-se à custa deles fugindo e evitando-os. Sabia que se um dia se encontrasse numa situação difícil, Marcus estaria sempre por perto, pronto para defendê-la.
Agora não tinha a quem pedir ajuda: ninguém que a protegesse desse homem terrível, tão diferente dos jovens ardentes e esperançosos que a cortejavam. Mas Dom Diablo tinha todos os direitos sobre ela: o de abraçá-la, beijá-la e de fazer dela o que bem entendesse...
De repente, percebeu que estava sendo carregada. Ele a estava levando para o quarto. Sentiu-se então invadida de uma raiva incontrolável. Fincou os dentes, como uma víbora, em seu ombro musculoso até sentir o gosto de sangue. Oh, Deus, ela o mordera como se fosse um animal! Sentiu-se então tomada por dois sentimentos contrastantes: a alegria de tê-lo machucado misturado com o pavor de sua vingança!
- O que está fazendo? - Ela lutava em vão para se libertar de seus braços vigorosos que estreitavam como se fossem cordas, imobilizando-a. - Para onde está me levando? Para onde, diga-me?
Encarou-a rapidamente enquanto subia a escada. Paula tentou se agarrar ao corrimão de ferro batido, mas por fim desistiu.
Fitou então os olhos dele e teve vontade de gritar. Jamais em toda sua vida vira um olhar tão fulminante!
- Não é suficientemente mulher para adivinhar? - perguntou, irônico. Paula sentia-se desfalecer enquanto ele se dirigia ao quarto que ela ocupara a noite anterior... sozinha. Na véspera, apesar quarto dela ser pegado ao seu, ele não a procurara, não a tocara... Agora porém seria diferente! A porta estava aberta. Colocou-a sobre a cama e voltou até a porta, trancando-a a chave.
Paula afastou o cabelo do rosto e olhou para ele apavorada, compreendendo o que ia acontecer. Sentiu-se paralisada quando ele se aproximou da cama. Os olhos negros de Dom Diablo pareciam lançar flechas de fogo sobre seu corpo. Estava imóvel, como que entorpecida. Ele então desabotoou a camisa e atirou-a longe. Em um de seus ombros via-se claramente a marca dos dentes de Paula. Suas calças, muito justas ressaltavam seus quadris estreitos e as pernas. Ele ficou parado, observando-a. Quando finalmente a tocou, trouxe-a de volta à vida... Paula sentia-se novamente viva! Recomeçou então a lutar com uma fúria desesperada, o que parecia provocá-lo ainda mais. Seus dentes alvos brilhavam enquanto que com seu corpo forte ele a dominava de um modo quase diabólico, imobilizando-a na cama.
- Que é isso, minha mulher! Essa não é a melhor maneira receber o marido...
- Vá para o inferno! - respondeu Paula, virando a cabeça rapidamente. Os lábios dele começaram então a acariciar-lhe o pescoço. Os sentidos de Paula se aguçaram e por um momento pareceu estar de novo naquela igrejinha na Inglaterra, onde o cheiro das velas se misturava com o perfume das flores. Se ela esperava que nunca despertaria daquele sonho ou pesadelo, sabia agora que estava enganada. O casamento não era feito só de palavras, de um par de alianças e um livro de orações, mas antes de tudo, de um homem e de uma mulher.
- Minha querida, pensou então que eu fosse o demônio? - E sem hesitar esmagou-lhe os lábios num beijo sensual.
Passaram-se muitas horas até que Paula acordou. Estava só em seu quarto, agora totalmente escuro. Continuou imóvel, sob os lençóis de seda, e pouco a pouco voltou-lhe à mente o que acontecera. A quietude do quarto tornou-se então um tormento. Começou a chorar, e voltou-se escondendo o rosto no travesseiro, ainda impregnado com o cheiro do charuto de Dom Diablo. Teve um sobressalto como se fosse atingida por uma chicotada. O aroma masculino trazia-lhe lembranças violentas. Sentiu uma onda de calor envolvendo-a dos pés a cabeça, transformando-se depois em arrepios de frio. Estava angustiada, doíam-lhe o corpo e a alma...
Não conseguira evitá-lo. Suplicara, se humilhara, fincara-lhe as unhas na pele, mas mesmo assim ele a possuíra. Fizera da virgem inexperiente, sempre protegida por Marcus, uma mulher! Ali deitada, imóvel, sentia ainda na ponta dos dedos, a pele morna de seu dorso másculo... Um corpo belo, sem dúvida alguma, terrivelmente belo!
Tinha até medo de pensar... Fechou os olhos e desejou morrer. Se houvesse uma faca à mão poderia tê-la cravado em Dom Diablo. Só assim conseguiria sair daquele lugar, longe de tudo o que amara, sem uma só pessoa a quem pudesse pedir auxílio em seu desespero. Oh, Deus, como se sentia impotente e covarde! Sentou-se na cama e abraçou os joelhos. Casara-se com ele sabendo desde o princípio que ele pretendia ser um marido e não um tutor. Na igreja ouvira-o falar em dedicação e obediência... Paula começou a tremer novamente e cerrou os dentes como um animalzinho selvagem.
- Eu o detesto, Dom Diablo! - Suas palavras ecoavam na escuridão. - Detesto seus olhos negros e sobretudo seu coração negro!
E como com a escuridão do quarto, tomavam-se ainda mais vivas e desagradáveis as lembranças daquela tarde, virou-se para a mesa de cabeceira e acendeu o abajur. Olhou para o travesseiro ao lado, onde ainda se via a marca da cabeça de Dom Diablo. Era insuportável pensar que ele estivera ali, que a possuíra!
Tentou pensar em outra coisa. Deixou que seu olhar vagasse pelo quarto e começou a descarregar seu ódio contra a decoração. Encontrou mil defeitos, embora fosse do maior bom gosto. Até uma certa altura, as paredes eram revestidas de lambris. O resto da parede, pintada em amarelo-ouro, realçava a madeira escura e finamente trabalhada dos armários e da penteadeira. O tecido das cortinas era alegre e florido com os mesmos tons de amarel0-0uro e marrom, e a parede que fazia fundo para a cama era revestida com o mesmo tecido das cortinas. O luxuoso tapete de vicunha era espesso e aconchegante. Na penteadeira havia um jogo completo de frascos de cristal muito elegante, uma pequena caixa de ouro com a tampa finamente trabalhada e um jogo de escovas e pente, de marfim. Um quarto muito feminino, sutilmente decorado para excitar o homem que ali entrasse. Era evidente que ao sair de seu quarto, muito sóbrio, Dom Diablo se sentisse estimulado por esse ambiente tão íntimo, essa gaiola dourada, essa delicada prisão...
O perfume dele ainda persistia no lençol de seda que a envolvia. No tapete estavam ainda a camisa rasgada de Dom Diablo, suas calças viradas do avesso, a calcinha e o sutiã de Paula... Estava confusa. Queria se levantar, se vestir, mas se sentia indolente, um pouco atordoada, ainda em estado de choque, sem coragem de ver outras pessoas. Só de pensar que teria que enfrentar Dom Diablo novamente, já era o bastante para entrar em pânico. Não! Morreria se tivesse ver outra vez aquele selvagem, aquele demônio! Ele murmurara seu ouvido, segurando seu cabelo:
- Agora sou seu marido, querida! Agora você é minha mulher!
Sentia-se trêmula, tentando fugir dessa realidade que era obrigada a aceitar, quando a porta do quarto se abriu subitamente. Paula assustou-se, mas logo se acalmou ao ver que era a velha Carmenteira. O olhar da velha ia de Paula encolhida na cama desarrumada, para as roupas jogadas no chão. Logo depois perguntou:
- Então a patroazinha orgulhosa aprendeu a sua primeira lição? - Estendeu-lhe em seguida, um copo e disse: - Suco de maracujá, senhora, doce e gelado como os homens querem que as mulheres sejam, às vezes...
Paula tomou o suco, pois estava com uma sede terrível. Não pretendia, porém, aturar a insolência daquela velha só porque ela vivia na casa há tantos anos. Carmenteira era temida e considerada por todos com uma espécie de bruxa.
- Obrigada por ter me trazido o suco - disse Paula friamente. - Não quero mais nada, pode ir, agora.
- Vim para ajudá-la, senhora. Queria me certificar de que está bem, depois irei embora.
- Carmenteira abaixou-se então para as roupas jogadas no chão. - Uma mulher de verdade não deveria usar calças compridas, principalmente quando está com seu homem. É muito pouco feminino. A senhora não percebe que Dom Diablo é o homem? A mulher ou é bem mulher ou então não lhe interessa - observou a velha. Seu olhar era penetrante e um pouco caçoísta, olhar de quem vira muitas coisas ao longo da vida. Acercou-se da cama e com a mão enrugada tocou o braço de Paula, onde se via uma mancha roxa. Carmenteira tocou nela com todo o cuidado.
- Eu me pergunto ainda, por que ele escolheu uma mulher tão jovem e branquinha como você, mas agora começo a compreender...
- Talvez tenha sido só para me magoar e atormentar, pois estou certa de que não me ama - respondeu Paula.
- Amor? - Carmenteira sorriu com desdém. - O que é amor?
A gente pode amar um gato, uma planta, um livro! Entre um homem e uma mulher deve haver mais do que amor, deve haver paixão, luta... O vencedor é aquele que perde. A senhora sem dúvida era virgem, senão ele não se casaria... O suco de maracujá lhe fez bem não é? Refresca e acalma. Depois do amor uma mulher necessita de três coisas: um suco gelado, um bom chuveiro e qualquer coisa para esconder sua nudez. Não é verdade, senhora? Não sou tão velha assim a ponto de ter esquecido as chamas e os arroubos da juventude.
- Não tenho a menor vontade de falar sobre isso - disse Paula meio envergonhada. Se a velha empregada sabia o que se passara neste quarto, o resto do pessoal também devia saber! Ficou irritadíssima e deu vazão à sua irritação.
- O que está esperando Carmenteira? - perguntou Paula. Será que todos os que vivem sob o domínio de Dom Diablo esperam que eu pendure os lençóis na entrada da fazenda, para se certificarem que ele escolheu uma noiva virgem?
Ao ouvir esta explosão de ira, Carmenteira olhou para Paula quase com simpatia.
- Os ingleses preferem não falar dessas coisas, não é? Envergonha-se de uma velha como eu, como se eu estivesse invadindo a intimidade de seu quarto, não é? Fique tranqüila, senhora, não se enerve tanto! Foi Dom Diablo quem me mandou aqui. Talvez a senhora não saiba que fui a criada pessoal de sua velha mãe. Cuidei dela até o dia de sua morte e agora tomarei conta da senhora.
- Nunca! Posso perfeitamente cuidar de mim mesma sem precisar de sua ajuda - Paula puxou os lençóis, cobrindo totalmente o corpo. - Vá e diga a Dom Diablo que não o quero aqui, nem ele nem ninguém desta casa amaldiçoada por Deus. Diga-lhe que o odeio e tudo o que ele representa: orgulho, arrogância e crueldade. Desejaria vê-lo morto embaixo da terra!
Desta vez Carmenteira afastou-se bruscamente da cama e se benzeu. Olhava horrorizada para Paula.
- Uma esposa não deve dizer essas coisas do marido! – Suas palavras e o tom de sua voz não escondiam sua reprovação. – O demônio pode ouvi-la e então...
- Pelo que me consta Dom Diablo é a personificação do demônio! Agora saia daqui e me deixe sozinha! Pelo amor de Deus, volte para suas bruxarias e talvez você faça algum feitiço para que eu possa escapar das garras deste homem, por bem ou por mal...
- Não deve falar assim, senhora! - A velha parecia escandalizada. - Há dezenas de mulheres em todo o México que, não só gostariam, mas se orgulhariam muito de ser casadas com Dom Diablo. Ele é dono de propriedades imensas, é poderoso, tem todas as qualidades de um homem, para poder proporcionar prazer a várias mulheres ao mesmo tempo, quanto mais a uma só! Deveria se sentir lisonjeada e honrada...
- Lisonjeada? - Paula riu com ironia. - Sinto-me insultada e degradada, isso sim. Ele nem ao menos finge ter um pouco de afeição por mim. Vê em mim só a fêmea, pois a parte animal é dominante nele. É disso que as mulheres mexicanas sentem orgulho? Serem meros objetos para a satisfação dos instintos do seu senhor? - Paula falava quase com exasperação. - Oh! Deus, não podia pensar nisso, ficava desesperada só de mencionar a palavra senhor! Não havia nada pior do que ser usada sem ser amada! - Paulo afastou-se da velha Carmenteira, escondendo o rosto sob os cabelos longos, pois Marcus gostava deles assim.
Marcus! Oh! Se Marcus fosse vivo, se ele pudesse ajudá-la agora! Ficara tão orgulhoso por ter-lhe arranjado um marido rico! Como ele pudera ter se deixado cegar pela fortuna de Dom Diablo a ponto de não perceber que tipo de homem era ele? Arrogante, egoísta, preocupado somente em satisfazer os caprichos de sua imaginação depravada... Mas não conseguia apagar a lembrança daquele corpo moreno e quente, dos braços fortes e envolventes que a impediam de escapar... dos lábios sensuais esmagando sua boca e transformando seus gritos em gemidos...
- Vá embora! - repetiu ela. - Deixe-me sozinha!
- Não fará loucuras, senhora?
- Loucuras? - Paula sorriu. - Será que eu poderia fazer uma loucura maior do que ter me casado com Dom Diablo?
- Há uma sacada lá fora, perto do desfiladeiro, e as mulheres desta casa já fizeram loucuras antes. Saiba, porém, que as lajotas do pátio são mais duras que uma cama conjugal mesmo sem amor. Seria uma pena estragar seu corpo tão alvo e tão belo, pois até agora Dom Diablo só lhe deixou pequenas marcas.
- Não se preocupe - respondeu. - Eu o verei morto antes de fazer qualquer loucura!
- Bem... eu vou indo - disse Carmenteira, como se tivesse desistido de convencer esta mulher que não pertencia a seu povo. - A senhora gostaria que eu lhe mandasse uma das empregadas para ajudá-la no banho e preparar o vestido da noite?
- Estou bem assim, não preciso de ninguém - Paula estremece ao pensar na noite que tinha pela frente. - Estou habituada a cuidar de minhas coisas e não pretendo ser ajudada como se fosse uma menininha indefesa. Diga ao seu senhor que eu prefiro ficar aqui no meu quarto...
- Pois não, senhora. Eu lhe transmitirei este recado, mas não o outro que deseja vê-lo morto... Acho que não seria muito delicado...
- Por acaso ele merece qualquer delicadeza? - replicou. – Acho que não!
Após alguns instantes ouviu a porta fechar. Carmenteira se fora. Paula deu um suspiro de alívio. Que bom estar sozinha outra vez! Enrolou os lençóis ao redor de seu corpo nu, dirigindo-se ao banheiro, onde degraus de mármore verde-claro levavam a uma banheira retangular, uma espécie de pequena piscina. As torneiras eram de prata de lei! Paula desceu os degraus, deixando o lençol cair a seus pés. Ao pôr o pé na água morna, viu sua imagem refletida no espelho que revestia toda a parede. A imagem parecia um pouco nublada pois o vapor da água embaçara o espelho. Parecia-lhe estranho que sua aparência não houvesse mudado; a não ser as manchas e o cabelo loiro desarrumado, continuava a mesma Paula. Ao passar lentamente as mãos sobre seus quadris teve um sobressalto, lembrando-se de repente que agora poderia ter um filho... um filho de Dom Diablo , filho de Satã... filho do ódio em vez do amor...
Paula entrou rapidamente no banho. Pegou um frasco cheio de líquido oleoso e perfumado e despejou um pouco na água. Imediatamente se formou uma espuma branca e leve da qual se desprendiam inúmeras bolhas. Alcançou uma esponja e começou a se esfregar vigorosamente, como se quisesse se livrar do perfume de Dom Diablo... Se ao menos pudesse apagar as marcas, o estigma da sua posse... Se pudesse sair do banho a mesma jovem inocente e virgem como quando ali chegara... Mas não, nunca mais seria a mesma! Os bons tempos ficaram para trás. Nunca mais ouviria a conversa dos homens que jogavam cartas na biblioteca de Stonehill, suas risadas, seus olhares de admiração, sempre porém, sob a vigilância e a proteção de Marcus. Parecia uma ironia o fato de ela ter sido tão protegida por Marcus contra homens relativamente inofensivos, sendo depois entregue por ele a um tipo como Dom Diablo. Era imperdoável!
Quando terminou o banho, encontrou um roupão atrás da porta e vestiu-o. Era comprido demais para ela. Percebeu logo que era um roupão de homem e o teria tirado imediatamente se tivesse outra coisa à mão. Com os lábios cerrados, olhou-se no espelho e enrolou as mangas, um pouco compridas. Afinal, seu roupão era menos íntimo do que o toque de sua pele! Ao pensar nisso, sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo; sentiu-se enrubescer e suas pernas tremiam quando se dirigiu ao quarto.
Quanto tempo levaria para esquecer tudo o que acontecera? Quando seus olhos deram com a desordem do quarto, a cama desarrumada, percebeu que jamais poderia esquecer! Dom Diablo pareceu hipnotizá-la com aquele olhar forte e firme. Foi então que ele a possuiu várias vezes para satisfazer sua arrogância e seu orgulho. Como poria esquecer aquele corpo flexível e lânguido, ao mesmo tempo? Parecia um felino se estirando a seu lado, prendendo-lhe a mão ao redor de seu pescoço musculoso, fazendo sentir intensamente o contanto com sua pele. Uma pele dourada e quente.
Paula cobriu os olhos com as mãos, mas a lembrança desses momentos não se desvanecia. Foi então até o armário, olhando sem o menor interesse para as roupas penduradas. Antes de saírem da Inglaterra, no dia anterior à cerimônia do casamento, Dom Diablo a levara a uma grande loja em Londres e lhe comprara um belíssimo e completo enxoval: lingerie, vestidos, sapatos e acessórios. Ali estava tudo, impecavelmente arrumado nos armários forrados de cedro perfumado, mas Paula não sentia o menor entusiasmo, nenhuma vontade de usar o que o marido comprara para ela.
Não precisava se vestir, já que decidira ficar no quarto. Comeria o que a arrumadeira lhe levasse na bandeja. Apanhou do cabide um dos vestidinhos simples que trouxera de Stonehill. Vestiu-o, e estava para puxar o zíper, quando alguém abriu a porta do quarto sem a menor cerimônia. Ao ouvir o barulho, pensou que fosse Carmenteira ou uma outra empregada mandada por ela.
- Pode me ajudar aqui com o zíper, por favor? - pediu Paula sem se voltar. Mas a mão que puxou o zíper não era feminina. A voz chegou até ela como uma chicotada!
- Para a nossa primeira noite juntos aqui na fazenda vai usar algo mais elegante, minha querida. Um daqueles vestidos que eu lhe dei e que não lhe traga recordações de outros homens!
Paula ficou imóvel, as mãos dele pousadas em seus ombros, mão que não a pouparam quando ela lhe suplicara... Pensar que tiver que implorar, esquecer seu contato impassível como uma estátua!
- Eu gostaria de ficar aqui no quarto - disse ela. - Pedi a Carmenteira que lhe avisasse.
- Sim, ela me avisou. Mas você se esqueceu de que estou habituado a ser obedecido?
- Segurou Paula pelos ombros, fazendo com que o fitasse nos olhos. Apesar de sentir todos os nervos de seu corpo se contraírem, ela o enfrentou, mantendo o olhar altivo e cheio de dignidade. Percebera que ele gostava de lutar por ela e não faria nada voluntariamente para agradá-lo.
Olhou para ele, sentindo-se muito corajosa por enfrentar aqueles olhos negros que a conheciam melhor do que qualquer outro homem. Deu-se conta outra vez da intensidade daquele olhar que fizera com que sucumbisse a uma paixão que lhe parecera quase diabólica. Ficou mais tensa ao notar a elegância de seu jaquetão branco, vislumbrando na camisa branca rendada, o brilho dos botões de jade que combinavam com as abotoaduras. Parecia vestido para uma festa de casamento, e Paula concluiu que para ele talvez houvesse realmente algo a celebrar.
- Não estou com a menor vontade de participar de um janta festivo só para nós dois. Prefiro jantar sozinha.
- Está se comportando como uma gatinha mimada. Pensei que tivesse corrigido essa sua tendência a infantilidade e feito de você uma mulher. - Segurou seu queixo, obrigando-a a levantar a cabeça até que ela olhasse para seu rosto moreno. Toda a sensualidade desaparecera dos lábios de Dom Diablo. Ele agora parecia mais austero e distinto. Seus olhos se detiveram no rosto de Paula, inquisitivos, observando seus traços finos e bem delineados, a pele macia, os lábios naturalmente vermelhos, sem precisar batom para embelezá-los, pois ainda estavam sob o efeito de seus beijos sensuais. Os lábios rosados de Paula faziam um belíssimo contraste com a palidez de sua tez.
- Está se sentindo bem? - perguntou ele. - Procure entender, Paula, que eu não me casei com a intenção de ser somente seu tutor.
- Sei muito bem porque se casou comigo - replicou ela. - Nunca me iludi pensando que pretendia ser bom, mesmo antes... de me possuir! Pelo menos agora se certificou de que Marcus cuidou bem de mim...
- Concordo, querida - passou os dedos longos pelo contorno de seu rosto que continuava impassível e frio. - Será que é tão criança a ponto de não compreender o que é que faz com que os homens ajam dessa forma?
- Compreendo bem por que se comporta dessa forma. Ninguém nunca se opôs à sua arrogância e ao seu egoísmo, senhor! – Frisou a palavra senhor, como se se dirigisse a um estranho. - Seria pois um milagre pensar que uma jovem de vinte anos, como eu, pudesse enfrentá-lo. Pelo menos desta vez encontrou uma mulher que não quis seu amor, que não teve prazer em ir para a cama com você. Deve ter sido uma experiência diferente, pois, pelo que me contou Carmenteira, as mulheres daqui consideram uma honra partilhar o leito de Dom Diablo!
- Mas, afinal, o que eu significo para você? - perguntou.
- Você é apenas meu dono, meu domador que usa sua superioridade física para provar sua superioridade de macho. Se precisa usar força física, Dom Diablo, é porque não confia em seu próprio charme! Será que seu instinto lhe diz que só conseguirá me possuir pela força?
- É melhor que se modere, Paula - disse ele, tentando não ser rude. - Sabia que quando fica zangada, torna-se ainda mais encantadora? Na verdade, pouco me importa o que você pensa de mim. - E com estas palavras, segurou a gola do vestido de Paula, despindo-a em seguida, quase com violência. Primeiro ele rasgou a blusa azul e agora o vestido cor de mel que ela gostava tanto!
- É um selvagem, um bruto! - gritou ela com ódio, esquecendo-se de que resolvera manter-se fria. Tentou dar-lhe uma bofetada no rosto mas os dedos firmes de Dom Diablo quase quebraram o pulso frágil de Paula. Estava agora totalmente despida. Sentia-se ridícula e indefesa!
- Se quer uma briga, Paula, então vamos brigar - disse ele, os olhos brilhando e segurando-a firmemente enquanto aproximava seu rosto do dela. - Sabe como vai acabar, não sabe? Será que é isso o que quer, estar de novo em meus braços, completamente à minha mercê?
- Prefiro morrer! Eu o odeio, você sabe disso! Viver com você é como viver com o próprio Satanás!
- Pelo menos a vida nunca será monótona para você, não é mesmo, minha garotinha mimada? - Conduziu-a então ao armário onde começou a procurar um vestido longo. Finalmente escolheu um de rendas verde-esmeralda e estendeu-o a Paula.
- Quero que vista isto e não admito discussão. Será que precisa de ajuda ou prefere vesti-lo sozinha?
- Que pena que o vestido não seja de renda branca, pareceríamos dois pombinhos comemorando seu feliz enlace...
- Não seja sarcástica, querida, não combina com você. – Apoio-se no batente da porta do quarto e ficou observando-a enquanto se vestia. O vestido de renda moldava-lhe maravilhosamente o corpo. Dom Diablo seguia todos os seus movimentos com os olhos. Paula sentiu-se enrubescer. Sabia exatamente o que ele estava pensando naquele momento. Pensava nos momentos em que a tivera nos braços nas sensações que sentira. Notou então que se acentuara a sensualidade de seus lábios e percebeu que ele ansiava por acariciar novamente com os lábios sua pele alva e macia. Ficou mais uma vez vermelha e também amedrontada.
- Na verdade eu não aprecio muito o verde, não é uma cor que me favorece - disse ela.
- Pelo contrário! - respondeu Dom Diablo, a mão enfiada no bolso do paletó muito branco que contrastava com as calças pretas, impecáveis, - O verde é a cor das louras! Acho até que dá realce ao seu cabelo loiro e aos olhos dourados, Quer que a ajude com os colchetes?
- Não precisa, obrigada, eu me arranjo sozinha, - Suas mãos tremiam enquanto prendia os colchetes do vestido, muito justo na cintura e acentuando seus quadris. Na verdade era um belo vestido, mas ela não queria ficar bonita! Não queria usar nada que houvesse sido comprado por ele! Paula foi então até a penteadeira e pegando a escova começou a passá-la vigorosamente pelos cabelos sedosos. Podia ver a figura de Dom Diablo refletida no espelho. Ele a observava e, de repente, assaltou-a a certeza de que ele era seu dono, assim como era dono daquela casa, daqueles móveis, de todos os objetos de cristal e prata que estavam em cima da penteadeira,
- Abra a caixa de prata e tire o que está dentro - ordenou.
Paula fingiu que não ouviu, mas olhou para a caixa com certa curiosidade, A caixa em si era uma obra de arte; devia ser muito antiga e de origem mexicana. Ela se concentrou no penteado, tentando fazer um coque baixo, na nuca. Era o penteado preferido de Marcus. Sentiu uma súbita tristeza ao se lembrar de Marcus. Terminou de ajeitar o cabelo e olhou de novo no espelho. Ficou satisfeita, pois apesar de muito magoada sua dor não se refletia em seu rosto. Sentiu porém que seus nervos se retesaram quando através do espelho, viu que o marido se aproximava dela. Sua figura alta a intimidava. Ele procurava por seus olhos, mas Paula não conseguia desviar os seus do espelho!
- Abra a caixa - repetiu ele. Falava devagar, em tom quase ameaçador. Paula se sentia perturbada só de ouvi-lo falar. Seus nervos se alteravam, sentia-se como uma mariposa atraída pela luz... - Não está curiosa para saber o que há dentro? Talvez seja uma serpente venenosa para você levar sob o seio, nunca se sabe...
- Você não seria tão generoso - respondeu Paula, - Ainda não me torturou o bastante...
- Sua tola! - As mãos dele desceram pelos seus quadris, estreitando-a fortemente contra seu corpo másculo. Os dois refletidos no espelho pareciam uma só pessoa. Quando as mãos dele começaram a lhe acariciar os ombros, segurando-a com firmeza, o coração de Paula começou a bater descompassadamente.
- Então, foi assim tão ruim? - perguntou ele. Ela sabia o que ele queria dizer! Seu corpo então começou de novo a queimar. Queria fugir, se esconder dele...
- O que você acha? Como acha que estou? - Sua voz era quase um murmúrio. - Sabe que estou toda machucada? Carmenteira viu as marcas. Olhou para elas como se fossem condecorações pelo grande feito de meu marido! Eu não estava habituada nem à força nem à brutalidade, mas parece que agora terei que me habituar a isto!
- Você me disse que era feita de mármore e, afinal, o mármore não mancha com tanta facilidade...
- Então olhe para isto. - Levantou o braço e lá estava, logo acima do cotovelo, uma mancha roxa. Apertando o braço dela, Dom Diablo inclinou a cabeça, e beijou a mancha. - Basta que alguém a toque para manchá-la, minha querida. Nunca em minha vida conheci uma mulher com uma pele tão alva e tão fina como a sua. Veja a minha, faz contraste com a sua...
- A sua é escura como a de um selvagem - retrucou Paula. - Não é uma tradição dos selvagens, o marido tomar a mulher à força depois do casamento? Maltratá-la e pisar por cima dela como se fosse um tapete só para provar que é o mestre e senhor?
Ele deu uma risada sonora.
- Você daria um tapete muito frágil e não lembro absolutamente de ter pisado em você!
- Ora, sabe muito bem o que quero dizer, por isso não deturpe os fatos. - Estremeceu ao sentir aquelas mãos que a apertavam mais forte, a sensualidade daqueles olhos negros, ardentes como uma fogueira. Havia suficiente força em suas mãos para parti-Ia ao meio. Ao se apoiar nele, Paula sentiu o quanto ela era frágil e o quanto essa fragilidade parecia exacerbar seus impulsos primitivos.
- Afinal, por que hesita tanto em abrir aquela caixa? - perguntou
- Quem sabe você pôs aí dentro alguma bijuteria para me pagar pelos serviços prestados?
- Minha querida, você parece estar querendo ser beijada ou espancada... Escolha!
- Acho que prefiro a bijuteria - disse ela, pegando a caixa de prata toda trabalhada com exóticos motivos tropicais. - É asteca? - perguntou.
Dom Diablo concordou com a cabeça. Ele próprio parecia uma figura de bronze asteca. Seu rosto continuava impassível, quando Paula levantou a tampa. Paula tinha quase certeza que era uma jóia, porém nunca imaginara que fosse tão refinada, tão original. Era a réplica perfeita de uma libélula, inteiramente montada em ouro, diamantes e esmeraldas.
- É bonito, não é? - perguntou ele.
Paula teve um sobressalto ao ouvir-lhe a voz, pois estava como que hipnotizada pela jóia...
- Muito bonito - concordou. - As pedras são verdadeiras?
- Acha que eu iria presenteá-la com pedras falsas? - retrucou. - Foi desenhada e executada por um índio velho que caça no desfiladeiro, logo abaixo da fazenda. Quando veio me oferecer o broche, perguntei-lhe como conseguira as pedras. Não me disse. Suponho que ele as tenha encontrado em alguma mina ou assassinado alguém para roubá-las. O velho índio queria vendê-las a fim de dar um dote à filha que estava para se casar. Como você já observou, eu gosto de coisas que me dão prazer aos olhos e quando gosto de alguma coisa, quero-a para mim. Este broche irá muito bem com seu vestido de renda verde. Coloque-o à esquerda, ao lado do coração...
Paula não ousou desobedecê-lo, pois percebeu pelo olhar dele que não admitiria ser contrariado. Além do mais a jóia era realmente lindíssima e de muito valor, apesar de ele ter insinuado que o velho índio havia usa o meios desonestos para obtê-la.
Sentiu que suas mãos tremiam quando retirou o broche da caixa. Dom Diablo, ao percebê-lo, tomou sem hesitar a jóia das mãos de Paula e colocou-a ele mesmo acima do seio esquerdo, no lugar que ele indicara. Era como se as batidas de seu coração pudessem fazer palpitar as asas da libélula, transmitindo-lhe vida. Paula sentiu o calor dos dedos de Dom Diablo; ele estava muito perto... Lutava para não sentir prazer no contato com o corpo dele. Muitas sensações lhe vinham à mente quando o tocava, quando aspirava o seu perfume...
Ficou muito quieta, embora tensa. Umedeceu então os lábios secos com a língua.
Certamente ele está esperando pelo agradecimento, pensou ela. Dom Diablo, porém, acariciou-lhe o rosto e disse:
- Uma pequena lembrança por ser tão bonita e complacente em meus braços... Você é tão perfeita e bonita, querida, como esta jóia... O palpitar das asas da libélula quando paira no ar, é tão fantástico como o palpitar do meu sangue quando olho para você. Eu a quis desesperadamente, desde o primeiro instante em que a vi em Stonehill, e agora você é minha, não é verdade?
- Sou, mas só por enquanto, Dom Diablo! - respondeu Paula.
- Pelo tempo que eu quiser - disse ele retomando o tom arrogante. - E agora vamos descer, quero apresentá-la às pessoas mais importantes desta propriedade. Você tem muita dignidade e beleza quando não está lutando comigo com unhas e dentes.
Paula desceu com ele a escadaria de mármore, apoiando-se no corrimão de ferro batido, relembrando o medo que tivera nesta mesma tarde quando ele impetuosamente a carregara nos braços até o quarto. Segurou forte o corrimão, para não cair. Ao pé da escada, no grande saguão, havia uma multidão de mexicanos.
Era uma cena quase feudal, sem nenhuma relação com o mundo do qual ela viera e no qual vivera até então. Em Stonehill havia vários empregados, mas aqui havia famílias inteiras vivendo sob o domínio de Dom Diablo, patrão e senhor de todos. O dono de Paula, seu marido demoníaco e dominador!
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