Capítulo 1
O vestido era maravilhoso, como aliás era de se esperar, pois Lucrezia o fizera com o maior carinho para Paula Paget. Suas mãos de fada faziam milagres! O vestido de cor viva ressaltava a suave palidez de Paula, cuja pele tinha um brilho quase transparente. Seu cabelo era brilhante, sedoso e com reflexos dourados, tal qual os últimos raios do sol poente numa tarde de verão. Os olhos, contrastando com o cabelo loiro, eram castanhos e luminosos. Enfim era uma jovem encantadora.
Seu tutor a adorava e a protegia, sobretudo dos homens que dela se aproximavam... Entretanto, essa noite, havia um rapaz ao seu lado, que insistia em levá-la até o jardim.
- Decididamente você é a última garota antiquada na face da terra - disse Larry Condamine em tom de brincadeira. – Depois dessa dança eu esperava pelo menos um beijo! Estou falando sério, você tem que demonstrar que beija tão bem quanto dança! Uma moça bonita como você já deve ter nascido sabendo amar, senão não haveria motivo para que a natureza a tivesse dotado de tantas qualidades!
Você não é só bonita, Paula, é adorável! Venha, minha querida...
Ao atravessarem o jardim, Larry começou a se impacientar ao perceber que Paula evitava seus beijos; segurou-a então, tentando abraçá-la. Um raio de luar fazia com que seus olhos parecessem mais ardentes, enquanto ele contemplava o belo rosto da jovem.
- Meu Deus, como você é bonita! - exclamou Larry - Acho que eu faria qualquer coisa para conseguir você, mas aquele seu tutor ciumento jamais permitiria que se casasse com um homem que não fosse muito rico ou que não possuísse pelo menos alguns milhões de dólares para gastar com você! É incrível como Marcus Stonehill a mantém distante dos rapazes sérios como eu, por exemplo, enquanto a exibe aos ricaços, àqueles jogadores grã-finos que ele sempre convida para sua casa. Sabe o que dizem por aí? Que ele pretende casá-la com o pretendente que der o lance mais alto!
Pauta sentiu os braços ansiosos do jovem a envolverem. Ouviu então o pio de uma ave noturna que lhe desviou a atenção. Aliás, ela não estava nem um pouco interessada nas palavras de Larry Condamine. Estava a par de tudo o que diziam a respeito de Marcus. Alguma coisa era verdade, mas havia também muita fantasia... Marcus realmente procurava um bom partido para ela, um casamento vantajoso, isto é, um pretendente que tivesse uma fortuna sólida e, não um aventureiro qualquer, que tivesse enriquecido às custas de jogo. Cuidara dela desde que sua mãe morrera. Daisy Paget fora atriz e Paula sabia o quanto Marcus a amara, por isso não se importava em obedecê-lo. Apesar de ele ter se apaixonado loucamente por Daisy, ela se casou com um ator pobre, que arruinou sua saúde em teatros de quinta categoria.
- Acho melhor você não me beijar, - disse ela a Larry , quando sentiu os lábios mornos e tentadores do rapaz, procurando sua boca - a não ser que você queira ser chicoteado por Marcus.
Imediatamente Larry se deteve. Lembrou-se dos boatos que corriam a respeito dos pretendentes que se portavam de forma inconveniente: vários haviam sido postos para fora de Stonehill, e a despeito de seu entusiasmo, Larry Condamine não pretendia sofrer nenhum vexame desse gênero...
- Você acha que poderia me amar algum dia? - perguntou ele. - Estou pronto para ir à Austrália com uma mulher que queira me acompanhar. Ouvi dizer que lá ainda se pode comprar terras por muito bom preço. Minha avó me emprestaria o dinheiro, pois vai ficar feliz se me vir bem estabelecido na vida. O que você pensa disso, Pauta? Não lhe parece uma boa idéia?
- Olha só como está bonita alua - desconversou Pauta, tentando se livrar de seu abraço. Logo em seguida, ela tomou então o caminho de casa, onde a festa parecia bastante animada. A casa era de um amigo de Marcus, um dos tantos homens de negócios com quem ele convivia, principalmente nas mesas de jogo. Negócios sérios, no verdadeiro sentido da palavra, aborreciam Marcus terrivelmente. Ele preferia os jogos de azar.
Paula sorriu quando percebeu os passos de Larry atrás dela. Ele era um bom rapaz, mas o fato de não ter dinheiro não influía em seus sentimentos. Se ela o amasse de verdade iria com Larry para a Austrália, mesmo contra a vontade de Marcus. Mas amar ainda não estava em suas cogitações... Marcus a convencera de que quando se entrega o coração, não mais se volta atrás. Quando uma pessoa se apaixona por outra, é mais provável que acabe sofrendo, pois o amor poucas vezes traz felicidade...
Paula foi a primeira a se aproximar do terraço da casa, junto ao salão principal, onde os convidados dançavam. Percebeu logo que alguma coisa estranha acontecera, pois as pessoas estavam de pé, reunidas em pequenos grupos, falando em voz baixa, parecendo assustadas e chocadas. Paula se deteve, sentindo seu coração bater descompassadamente. De repente, surgiu no terraço um homem muito alto, que começou a descer as escadas silenciosamente. Seu porte era altivo, mas seus movimentos eram leves e graciosos. Fora esta a impressão que Paula tivera quando o vira pela primeira vez, em Stonehill. Foram apresentados na biblioteca e quando ele se retirou, Paula, sem que ele percebesse, ficou observando-o atrás de uma coluna no terraço. Seu andar era silencioso e estranho...
No dia seguinte, Marcus lhe contou que ele era mexicano e podre de rico.
- Como ele se chama? - perguntou Paula. Ao vê-lo tivera uma sensação diferente. Despertara-lhe o interesse. Não que o tivesse achado bonito... Talvez fosse aquele seu ar meio estranho...
E agora, Dom Diablo Ezreldo Ruy vinha caminhando em sua direção, passando por entre os convidados, cortando caminho por um atalho escuro. Quanto mais ele se aproximava, mais negro se tomavam seus olhos. Veio-lhe então à mente o julgamento que fizera dele, no dia em que o conhecera:
- Ele tem o olhar de um demônio - comentou com Marcus.
- Sua mãe deve ter pensado o mesmo a primeira vez que o viu. Por isso lhe deu o nome de Dom Diablo! - disse Marcus, sorrindo e a observando com muito interesse. Ela tentou, então, imaginar qual seria a ligação de seu tutor com aquele homem.
- Vocês jogaram cartas juntos? - perguntou a Marcus.
- Minha querida, um homem nunca joga com seu mestre.
- Seu mestre? - perguntou intrigada. - Não há mestre para você!
- Nem mesmo Deus ou o diabo? - brincou Marcus.
A lembrança desta conversa voltava à memória de Paula, enquanto observava a figura alta do espanhol que se dirigia silenciosamente ao seu encontro. Inclinando a cabeça gentilmente, disse-lhe então aquelas palavras que jamais esqueceria:
- Sinto muito, srta. Paget, que seu tutor tenha se sentido mal...
- Como? Onde está ele? Quero vê-lo imediatamente! - exclamou assustada.
- Não! - Uma mão forte e decidida a deteve, sustando seu ímpeto de correr imediatamente para casa. - Não há mais nada afazer, senhorita. Marcus teve um enfarte violento, foi fatal. Infelizmente sou eu o portador desta notícia. Tive que lhe contar, já que você é a pessoa mais chegada a ele! Console-se pensando que foi tudo tão rápido que Marcus provavelmente nem sofreu... Foi no momento exato em que ele descartava uma belíssima quadra de ases! Eu estava assistindo ao jogo e vi o descarte sensacional que tinha na mão; ele morreu sorrindo, srta. Paget.
- Sorrindo, enquanto morria?
- Sim, senhorita. Às vezes isto também pode acontecer.
- Mas não com Marcus... não com Marcus! Ele não pode ter morrido - Paula falava alto, agora; as palavras ecoavam em seu coração, ferindo-o como um punhal. - Ele é tudo o que eu tenho, a única pessoa que eu amo! Marcus! - Saiu correndo como uma gazela assustada e ferida, mas Dom Diablo segurou-a. Carregou-a então em seus braços, conduzindo-a pela escuridão da noite... ou assim lhe pareceu, pois Paula perdera os sentidos. Quando voltou a si, muito tempo depois, estava em sua cama em Stonehill, com Lucrezia ao seu lado, cercando-a de todos os cuidados.
- Meu bem, você tem que aceitar os fatos e encarar a realidade. É inútil se revoltar dessa maneira. Ele está em paz e agora vai se encontrar de novo com Daisy. Afinal, foi seu único amor, minha querida. Você agora pode pensar nos dois juntos, como nunca puderam estar aqui na terra.
Paula tremia nos braços da velha governanta italiana, a quem fora confiada logo após a morte de sua mãe. Daisy morrera alguns dias depois de dar à luz a Paula.
- Mas Marcus parecia estar tão bem quando saímos de casa! Aliás até notei que estava de ótimo humor, como se tivesse feito uma grande cartada. Parecia feliz e não me lembro absolutamente de tê-lo ouvido se queixar de qualquer indisposição. Lembra-se daquela vez em Florença, quando ele se sentiu mal? Oh, Lucrezia, será que foi lá que começou? Será que já era uma crise cardíaca e ele guardou segredo para eu não ficar preocupada? Era bem do estilo dele fazer uma coisa destas...
- Marcus não queria que você sofresse, minha querida - soluçou a governanta. As lágrimas brotavam de seus olhos, descendo pelo rosto sulcado de rugas. - Ele desejava que sua vida fosse um mar de rosas, sem os problemas que infernizaram e estragaram a vida de sua mãe. Ah, ela era tão linda, mas quando deixou o marido e procurou por Marcus já era tarde demais para que ele pudesse fazê-la feliz, você entende? Você não é mais criança, já é uma moça de vinte anos e precisa enfrentar a realidade da vida.
- Mas ele só tinha quarenta e cinco anos... - Paula voltou a chorar. Não se conformava em ter perdido Marcus; sentia-se como se fosse mergulhar num abismo de solidão, aquela solidão terrível que sempre a assustara. Marcus sempre a defendeu e protegeu. Foi pai, tutor, orientador e amigo. A morte de Daisy o tomara cínico sob muitos aspectos, mas Paula o amara acima de qualquer julgamento.
- Como poderei suportar tanta dor? -perguntou a Lucrezia. - O que é que eu vou fazer agora? Para onde ir?
Ambas sabiam que a propriedade de Stonehill estava vinculada e que ficaria com um sobrinho de Marcus. A casa grande de pedra que fora seu lar durante vinte anos não o seria mais. Seu quarto enorme e confortável seria ocupado por outra pessoa, pois o sobrinho de Marcus tinha mulher e filhos e eles jamais haviam aceito Paula como membro da família.
- Sinto-me como um pária, como se uma enorme muralha me cercasse e eu estivesse no centro, sozinha, abandonada... É o pior momento da minha vida, acho que não vou conseguir suportar...
Mas Paula conseguiu superar o choque dos primeiros dias e enfrentar tudo o que aconteceu nesse meio tempo. Os parentes de seu tio vieram a Stonehill e tomaram todas as providências para o funeral. Marcus seria sepultado no túmulo da família e Lucrezia ficou encarregada de participar a Paula que a família de Marcus considerava indesejável sua presença na ocasião.
- Sugeriram que você arrumasse suas malas e partisse imediatamente - informou-lhe Lucrezia. - E me deram esse cheque, dizendo que era para você se sustentar até arrumar um emprego.
Pareciam considerá-la uma aventureira qualquer com quem Marcus tivesse vivido e de quem agora tentavam se livrar!
- O cheque que vá para o inferno! - gritou ela, picando-o em pedacinhos. Depois arrumou numa mala as roupas que Marcus lhe comprara para a última estação, e com lágrimas nos olhos, desceu correndo a escadaria que dava na biblioteca. Subindo numa cadeira, retirou da parede o retrato de sua mãe. Enquanto tirava a poeira do quadro, o telefone tocou. A princípio não quis atender, pois ainda estava chocada com a atitude dos parentes de Marcus. Mas o telefone continuava a tocar insistentemente e Paula resolveu atender:
- Não tem ninguém em casa - respondeu com um fio de voz. -Todos foram ao funeral.
- É a srta. Paget quem está falando? - A voz era profunda e sotaque pronunciado. - Aqui é Dom Diablo.
- Sim, sou eu mesma, senhor. Posso saber o que deseja? - Depois de um momento de silêncio, ele voltou a falar.
- Desejaria vê-la, senhorita. Irei buscá-la de carro dentro de alguns minutos.
- Eu não posso sair agora. Vou deixar Stonehill. Tenho que acabar de arrumar minhas coisas, tomar algumas providências... eu estava quase de saída...
- Pois vai esperar por mim - ordenou ele. - O que tenho a lhe dizer é muito importante. É um assunto que eu e Marcus discutimos dias antes dele morrer. É absolutamente indispensável que ouça o que tenho a lhe dizer; Marcus não me perdoaria se eu não o fizesse...
- Eu... eu realmente não posso imaginar o que teriam podido discutir e que me dissesse respeito -retrucou ela. Estava ainda muito magoada e não tinha vontade de ver ninguém, e muito menos aquele homem que parecia tão frio e impiedoso quanto os familiares de Marcus.
- Eu sei que Marcus jogava, mas nunca interferi...
- Não se trata de jogo, srta. Paget - seu tom era ligeiramente autoritário. Parecia habituado a dar ordens e ser prontamente obedecido. - Será que está com medo de se encontrar comigo?
Paula olhou para o relógio de parede e teve um sobressalto quando ouviu bater as horas. Aquele som, antigamente tão familiar e amigo, parecia-lhe agora o dobrar de sinos de finados. Era como se chorasse a morte de seu tutor e toda a sua desgraça...
- Nesse momento, senhor, sou incapaz de sentir qualquer emoção - disse ela a Dom Diablo Ezreldo Ruy. - Se julga realmente necessário conversar comigo, então venha. Eu o espero fora, pois não tenho mais o direito de ficar aqui.
E lá estava Paula, sentada nos degraus da escadaria, quando o carro chegou. Vestida de preto, a mala a seu lado, segurava junto ao peito o retrato de sua mãe. A porta do carro se abriu e surgiu a figura alta e esguia de Dom Diablo, impecavelmente vestido num terno cinza-claro. Ele chegou até a escada e se deteve contemplando Paula. Seus misteriosos olhos negros se fixaram em seus cabelos loiros e brilhantes. Olhou para ele. Seus olhos ainda estavam cheios de lágrimas e seu rosto sujo, pois ao pegar o retrato da mãe sujara os dedos de pó.
- Você está com o rosto sujo como o de uma criança – disse ele tirando do bolso um lenço branco, imaculadamente limpo, e entregando-o a Paula. - Enxugue os olhos, senhorita, e venha comigo.
- Eu... não posso fazer isso! - Lançou-lhe um olhar angustiado e ao mesmo tempo revoltado. - Quem é o senhor para me dar ordens?
- Sou o homem com quem vai se casar - respondeu prontamente.
Paula levou um choque! Ficou branca como o lenço que ele lhe oferecera. Sua expressão era de desespero. Paula, que sempre se sentira segura com Marcus, dava-se conta do que representava para ele a morte de seu tutor. Extravasou então toda a sua angústia, derramando novamente lágrimas copiosas.
- Meu Deus! - Dom Diablo inclinou-se subitamente, e ajudou-a a se levantar. Levou-a então até o carro e acomodou-a. Em seguida, colocou seus pertences no bagageiro: a mala, o retrato e o chapéu de palha preta que comprara para usar com seu vestido de jérsei preto.
Dom Diablo subiu no carro, fechando delicadamente a porta. Tomou-a então nos braços e deixou que ela desabafasse, chorando em seu ombro.
- Há um ditado mexicano que diz que há ocasiões para o vinho e há ocasiões para a água; ocasiões para lágrimas e ocasiões para alegria. Chore, chore bastante, depois falaremos. Uma conversa séria, entre um homem e uma mulher!
Um homem e uma mulher, repetiu Paula em pensamento. Ela e este homem que mal conhecia e que, no entanto, já lhe havia proposto casamento! Enxugou os olhos e limpou o rosto, percebendo então que o lenço impecável que lhe dera Dom Diablo, agora estava todo sujo. Devia estar com uma aparência lastimável, imaginou. Na pressa de sair, esquecera-se de pentear o cabelo, que agora lhe caía sobre o rosto. Lançou a Dom Diablo um olhar de desafio. Aprendera com Marcus a cuidar muito de si mesma. Andava impecavelmente vestida e bem penteada. Mas a dor que sentia pela morte de Marcus era forte demais para ela se preocupar com sua aparência.
- Creio que manchei seu lenço, senhor - disse ela. Sua voz tornara-se mais rouca. - Eu podia me oferecer para lavá-lo, mas fui expulsa de Stonehill como se fosse uma intrusa. Não tenho mais casa. Não é uma ironia eu me encontrar subitamente sem lar e sem recursos? Chega a ser tragicômico, só que eu não consigo ver o lado cômico da situação. Gostaria de ter podido levar rosas ao túmulo de Marcus, mas nem isso pude fazer, pois os parentes dele me proibiram. Só deixaram Lucrezia acompanhar o enterro, pois ela cuidou dele desde que era garoto. É estranho! Não consigo imaginar Marcus criança. Sempre me pareceu tão adulto, tão decidido...
Paula olhou para Dom Diablo, que a observava atentamente.
- Eu gostava profundamente de Marcus; faria qualquer coisa por eIe... - disse ela entre soluços.
- Fico contente de ouvi-la falar assim. - Seus olhos eram impenetráveis, e os cílios espessos acentuavam seu mistério. Paula tinha quase a certeza de que ele tinha sangue índio nas veias. Sua tez bronzeada e os ossos do rosto muito marcados lembravam a figura de um guerreiro asteca. Apesar de seus traços finos e de sua elegância viril, Paula sentia por ele uma espécie de aversão física. Torcia o lenço entre seus dedos nervosos, procurando desviar seus olhos dos de Dom Diablo, que parecia ler seus pensamentos com a clareza perturbadora de sua experiência.
- Está com fome, senhorita? Calculo que não tenha comido nada de manhã e como já estamos quase na hora do almoço...
- Realmente eu não estava com fome - Paula surpreendeu-se com o fato de Dom Diablo se preocupar com ela. - Bem, acho que agora poderia comer alguma coisa.
- Então vamos fazer isso - disse ele. Tirou do banco de trás, um cesto onde havia frango assado, tomates, salsão, roscas, vinho e dois copos.
- Comece tomando isto, vai lhe fazer bem - disse ele, estendendo-lhe um copo de vinho. Paula percebeu pela expressão dos olhos dele que não adiantaria recusar. Aceitou o vinho e seus olhos se detiveram nos dele, quando, erguendo o copo, brindou:
- A sua saúde, senhorita! Que este vinho alivie sua dor de cabeça!
Era realmente um homem estranho, pensou Paula, a quem não ousaria contrariar. Tomou portanto o vinho e comeu tudo que ele lhe ofereceu sem protestar. Foi bastante agradável esse almoço improvisado. O vinho era da melhor qualidade e Paula começou logo a sentir seus efeitos. Por mais estranho que pareça, a dor de cabeça começou a diminuir, tomando-se suportável. Depois da sobremesa, Paula se sentiu mais relaxada. Recostou-se no banco do carro e mergulhou numa espécie de torpor provocado naturalmente pelo vinho.
Agora nada lhe parecia ter tanta importância. Talvez Dom Diablo tentasse seduzi-Ia e não haveria ninguém para defendê-la, como Marcus o fizera com aquele rapaz atrevido, Rashleigh, que, subindo pela sacada, entrara em seu quarto pela janela, surpreendendo-a de penhoar. Já passava da meia-noite e acontecera após a sua festa de dezenove anos. Peter e seu pai, lorde Rashleigh, tinham sido convidados para passar o fim de semana em Stonehill. Foi Peter quem despertou em Paula a consciência de que a maioria dos homens é egoísta; a partir de então passou até mesmo a desprezá-los. Parecia que quando se interessavam por uma garota, só tinham em mente o contato sexual. Naquela noite, quando Paula gritou chamando por Marcus, ele arrastou Peter para fora do quarto e chicoteou-o.
Paula não sentiu pena do rapaz. Sempre soube que Marcus podia ser cruel quando necessário e, como se sentiu ofendida pela proposta de Peter, achou que a surra foi bem merecida.
- Você disse, Dom Diablo, que tinha algo a me dizer. - Percebeu que falara com certa ousadia. Mas era uma forma de se proteger, já que não contava mais com Marcus para defendê-la dos homens que dela se aproximavam por achá-la bonita. Tinha consciência de sua beleza, pois se parecia com a mãe. Quando olhava para a fotografia dela, Paula compreendia por que Marcus Stonehill se apaixonara perdidamente por ela. Ele era o tipo do homem que podia ter tido as mulheres que quisesse, mas preferiu ficar solteiro por causa de Daisy Paget que fugira com um ator pobre e infiel, e que a obrigava a trabalhar em teatros de quinta categoria. Essa vida ingrata prejudicara a saúde de Daisy. Ela morreu muito jovem. Marcus fizera de Daisy o seu mito e Paula fizera de Marcus o seu deus. Ela olhou para Dom Diablo. Sua expressão era demoníaca!
- Será que seu telefonema não foi apenas um pretexto para trazer aqui? - perguntou ela.
- Não preciso de pretextos, senhorita - recostou-se no banco, com uma cigarreira de ouro nas mãos. - Você se importa que eu fume? Já notei que o fumo não faz parte de seus hábitos.
- Claro que pode fumar, senhor - respondeu quase aliviada, pois qualquer coisa que lhe ocupasse as mãos e os lábios o impediria de tentar o que ela já pressentia como inevitável. Dom Diablo era alto e esguio, mas das mãos, dos ombros, da maneira de caminhar emanava uma grande força. Era como se estivesse silenciosamente à espreita de sua presa.
- Marcus jamais gostou de fumar - disse ela. - Dizia sempre que o fumo causava dano à mulher, provocando rugas, dando à pele uma coloração opaca. Sabe, ele adorava minha mãe e dizia sempre que sua pele era como uma pétala de rosa. Rosas sempre foram suas flores favoritas e por isso... Paula conteve a respiração. - Marcus podia ser cruel, mas nunca foi vingativo como os parentes dele. Eles me trataram como se eu fosse amante de Marcus. Sei que algumas pessoas podem não acreditar na pureza de nosso relacionamento. Marcus era um homem bonito e um jogador inveterado, mas gostava de mim como se eu fosse sua filha!
- Tenho certeza disso, senhorita - disse Dom Diablo. - Conheço as pessoas logo à primeira vista e pode estar certa de que nesse curto período em que conheci Marcus, sempre o considerei um homem inteligente, arguto e rápido. Sei também que era um homem honrado apesar de seus hábitos singulares. Não está curiosa para saber como nos conhecemos?
- Claro que estou - respondeu ela. - Conheci Marcus a vida toda. Viajei com ele para muitos países, mas nunca o encontramos em nenhum deles. Aliás também nunca o ouvi mencionar o seu nome, Dom Diablo.
- Nós dois nunca nos vimos antes de eu vir a Stonehill. Foi uma missão curiosa que me trouxe aqui, uma história que ele certamente lhe teria contado, não fosse o destino tê-lo levado embora de um modo tão inesperado! Ouvirá com paciência, senhorita, o que vou lhe contar?
- Não tenho nenhum outro compromisso no momento - respondeu com aquela ponta de humor que provocava sempre uma certa perplexidade em Marcus. - Além do mais gosto muito de histórias, senhor.
- Mas são fatos reais, senhorita, não é ficção - replicou ele. - É uma história que começou no México e terminou, ou melhor, está terminando aqui na Inglaterra. Um dia, em meu país, no Estado em que eu vivo, eu montava um cavalo novo e fogoso. Ao desviar de uma cobra o cavalo me atirou no chão e eu bati a cabeça contra uma pedra, perdendo a consciência. Com a queda o chapéu caiu da minha cabeça. Se eu tivesse ficado ali sem sentidos, exposto ao abrasador sol do México, por uma hora que fosse, teria tido uma meningite, podendo mesmo perder parcialmente a visão. Talvez a senhorita não saiba, mas lá o sol é tão quente quanto o sol do deserto; é cruel e violento mesmo para quem tem a pele escura como eu. O destino, porém, fez com que passasse por ali uma camioneta dirigida por um funileiro ambulante. A camioneta, com uma capota de lona, era ao mesmo tempo a casa e o meio de transporte daquele homem. A princípio, pensei que fosse mexicano, pois tinha a pele muito queimada e estava coberto de trapos. Tive uma grande surpresa quando o ouvi falar. Seu sotaque era inglês, embora falasse espanhol com fluência. O homem carregou-me então para a sombra da camioneta, banhou minha cabeça com a preciosa água de seu cantil, em resumo, salvou-me a vida - Dom Diablo sorria ironicamente. - O funileiro e eu começamos a conversar e eu descobri que ele trabalhara muitos anos como ator de teatro na Inglaterra, com pouco sucesso porém. Sua mulher o abandonara então por um outro homem e ele, desgostoso, saíra da Inglaterra indo tentar a sorte na América do Sul. Depois foi para o México, onde trabalhava um pouco em cada lugar. Naquele momento trabalhava como funileiro e consertador de panelas, vendedor de potes, panelas e medicamentos patenteados. Descobri que era um homem interessante, pois tinha sempre muitas histórias para contar. Convidei-o então para trabalhar comigo. Ele faria um pouco de tudo. Aceitou logo, pois naquele momento não estava em boas condições de saúde. Pareceu-lhe, pois, maravilhosa a idéia de viver numa casa; num lar organizado. Como eu já disse, ele tinha uma certa cultura e passamos várias noites juntos, conversando, falando um pouco sobre tudo; sobre os imprevistos da vida e tudo o mais... - Dom Diablo fez uma pausa e olhou para Paula com ar pensativo.
- Pois é, senhorita, parece-se com sua mãe e não com seu pai. Os olhos dele eram azuis e se sobressaíam no rosto sofrido e queimado de sol.
Paula olhou espantada para Dom Diablo. Ele queria lhe dizer que aquele homem que lhe salvara a vida no México era seu pai?
Ao perceber o choque e o espanto dela, esclareceu:
- Sim, srta. Paget. Quando Charles Paget foi atingido por uma doença incurável deu-me uma miniatura que ele usava sempre pendurada ao pescoço. Era a fotografia de uma mulher belíssima com quem fora casado há muitos anos. Contou-me que a tratara muito mal. Fez-me esta confissão algumas horas antes de morrer. Disse-me também que ela procurara o homem que teria sido um melhor marido para ela. Como Daisy estava grávida e Paget sabia que Marcus Stonehill se ocuparia da criança, deixou que as coisas tomassem este rumo. Porém, antes de morrer pediu-me que se alguma vez eu fosse à Inglaterra, procurasse Stonehill para ver se a criança estava feliz e bem cuidada. E foi exatamente o que eu fiz, srta. Paget, quando cheguei à Inglaterra para tratar de negócios. - Tirou então do bolso uma miniatura de porta-retrato que lhe fora dado pelo pai de Paula. A foto estava um pouco desbotada, mas as feições eram bastante nítidas. Sem dúvida alguma era Daisy. - Esta mulher encantadora era sua mãe, senhorita.
- Agora entendo - disse Paula. - Meu pai se chamava Charles. Mas é incrível, senhor!
- Segurava a miniatura, tentando imaginá-la pendurada ao pescoço daquele homem queimado pelo sol, viajando por tantos países, passando por tantas dificuldades e que não passara de um estranho para ela, durante todos esses anos. Tentou retroceder no tempo, tentando dar forma à imagem de seu pai. E tudo isso no mesmo dia em que o outro homem que cuidara tão bem dela se fora deste mundo!
- Não é assim tão incrível, é um jogo do destino. O destino a entregou a Marcus Stonehill e Marcus a entregou a mim...
Novamente suas palavras atingiram em cheio o coração de Paula, fazendo-o bater tão forte que mal podia respirar.
- O que quer dizer com isso? - os dedos dela apertavam a miniatura.
- Exatamente o que ouviu. Você agora está sob meus cuidados, se bem que isto seja um pouco teatral.
- Somente Marcus podia falar desse jeito - contestou Paula veementemente. - Só ele tinha direitos sobre mim e mesmo assim porque eu consentia...
- A senhorita sempre o obedecia, não é mesmo?
- Mas eu gostava dele! Foi a única pessoa que se preocupou comigo depois que minha mãe morreu! É claro pois que eu fizesse de tudo para agradá-lo. Era a única maneira de retribuir o que fazia por mim; se dependesse de meu pai, eu teria sido obrigada a ir para um orfanato!
- Concordo plenamente, senhorita - Dom Diablo inclinou um pouco a cabeça para a frente, observando-a com uma expressão estranha. Ele parecia não pertencer a este mundo ou pelo menos essa era a impressão de Paula. Tinha os olhos de uma ave de rapina, mirando sua presa antes de atacá-la. Ela se reclinou para trás, afastando-se para a ponta do banco a fim de ficar o mais longe possível dele. Pela primeira vez na sua vida sentiu medo. - Marcus queria que você se tomasse minha esposa. Ele e eu falamos sobre esse assunto quando vim a Stonehill. Como Marcus sabia de suas precárias condições de saúde, queria ter a certeza de que a deixaria protegida para o resto da vida. Duvida de mim, senhorita? Conhecia seu tutor melhor do que ninguém, sabia que ele planejava um casamento rico para você.
Paula encolheu-se, tensa como um felino prestes a dar o pulo, como se quisesse gritar, agarrar-se a alguém e lutar pela sua liberdade. No entanto ficou ali, imobilizada pelo estranho fascínio daquele homem, que vinha de tão longe declarando ter direitos sobre ela, agora que Marcus morrera.
- Sabe que estou falando a verdade, não é? - a voz dele tornou-se grave, com um leve tom de ameaça... - Sabe que se Marcus vivesse, ele mesmo lhe diria que aprovava plenamente o nosso casamento?
- Mas se o senhor mal me conhece, não me ama... - respondeu Paula, com voz embargada.
- Senhorita, no México, a intimidade e o amor vêm depois do casamento!
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