CAPÍTULO VI



Uma mesa estava posta para ela na moussandra, a toalha branca brilhando à luz pálida das arandelas que se refletia nos talheres de prata e nos pequenos vasos de flores.
Uma brisa suave soprava, impregnando o lugar com o aroma de figos, pinho e mar. Embora estivesse sozinha, Fenny não se sentia solitária. Quando terminou de comer, dirigiu-se para o parapeito com um segundo copo de vinho na mão. Foi lá que, inesperadamente, apareceu Adelina. Vestia uma camisa de seda pura branca, com estampa de flores, e uma longa saia vermelha. Seu cabelo negro estava preso num rabo-de-cavalo, e o rosto, muito bem maquilado, destacando os olhos escuros e os lábios escarlates. Parecia uma esfinge viva do Egito: a deusa Kat.
— Zonar disse que você preferia jantar sozinha, mas, de qualquer forma, vim para lhe fazer companhia. Fiz mal? Ou não devia perturbá-la? — Adelina aproximou-se de Fenny, com aquele seu andar felino, um cigarro no canto da boca. — Então, o leão machucou uma das patas na explosão? De uma coisa você pode ter certeza: aqui se vive perigosamente.
— Verdade? Está falando sério? — Fenny estava sempre de sobreaviso com Adelina. A cunhada sentia grande prazer de ser um objeto de amor e desejo, mas não lhe passava pela cabeça retribuir o que recebia. As preocupações e as ansiedades do amor, ela costumava dizer, envelheciam a mulher, tanto física quanto mentalmente, e ainda era muito jovem para isso.
— Lion Mavrakis é um homem muito perigoso, não é mesmo? — Adelina tirou o cigarro da boca e soltou uma baforada. — Excitante, claro, mas tão difícil de controlar como qualquer criatura da selva. Com Demetre, sempre sei onde piso. Ele tem seu mau gênio, mas sem ser ameaçador. Demetre não se importa de saber que não tenho nenhuma intenção de torná-lo pai. Mas sua vida com Lion deve ser... bem, para dizer o mínimo, uma experiência esmagadora. Tenho certeza absoluta de que ele não admite ouvir um "não".
Fenny tomou um gole de vinho, em silêncio. Não preten¬dia discutir com ninguém sua vida particular.
— Certas mulheres inglesas conseguem ser bastante mo¬destas. — Seu sorriso foi de zombaria e seus olhos estuda¬ram Fenny cuidadosamente. — Você tem uma beleza incrí¬vel. Eu devia sentir inveja de seu rosto, seu cabelo, seu corpo. Provavelmente sentiria, se Demetre olhasse para você como Zonar olha.
Fenny ficou tensa.
— Zonar se interessa pela maioria das mulheres — falou. — Isto não quer dizer nada.
— É bom mesmo que não signifique nada, querida. Lion é generoso, mas não suportaria a idéia de dividir a esposa, nem que fosse com o próprio irmão. E não se esqueça do mais importante, minha querida: a paixão. — Adelina deu uma risada. — O problema com os gregos é que, quando despertam para o amor, é com uma paixão cruel, de tão forte. É sempre mais seguro quando os casamentos são ar¬ranjados. O meu foi arranjado, como você já deve saber. Foi tudo preparado por Lion e minha família. Eu trouxe um dote, o que me torna uma mulher quase que totalmente independente... ao contrário de você.
Fenny apertou o cálice de vinho. Era verdade. Tudo que trouxera para Petaloudes fora seu amor por Lion, e ele não se importava nem um pouco com seus sentimentos, era apenas seu corpo que despertava nele o sentimento primitivo grego.
— Os casamentos arranjados me assustam. Tenho a im¬pressão de que são um negócio, sem nem um pingo de amor. O que acontece, se uma garota não tem dote?
— Simplesmente é condenada a ser solteira o resto da vida. Ou contentar-se com as atenções esporádicas de ho¬mens casados. A Grécia, de muitas maneiras, é um país duro. Sem dúvida alguma, uma estrangeira precisa ter mui¬ta coragem para se casar com um grego. Especialmente, uma garota como você.
— Como eu? Sim, eu mesma pedi uma vida complicada, não pedi?
— E como um drama grego. — Adelina riu. — É claro que é um segredo estritamente familiar, mas não levei muito tempo para arrancá-lo de Demetre. Lion ainda continua enamorado pela outra... por sua prima?
— Como você acabou de dizer há poucos instantes — Fenny engoliu em seco —, quando um grego se apaixona, é desesperadamente. Ou, então, não se apaixona. Ou é oito ou oitenta.
— E o que acontece com uma inglesa, quando se apai¬xona? — Adelina olhava curiosamente para Fenny. — Você está apaixonada por ele, não está? Você não podia fazer o que fez com ele. Se não fosse tão atraente, acho que a teria esganado. Coitada! O único dote que tem é seu belo corpo.
Fenny sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha. Foi uma verdade cruel, que penetrou nela como uma faca afiada.
— Ora, vamos! — Adelina disse. — Não é assim tão mau. Você não precisa ficar envergonhada.
— Não estou — Fenny respondeu, quase sem forças. — Não enganei Lion nem uma vez e de maneira alguma. Por¬tanto, nunca vou sofrer por problema de consciência. Já tenho muitos outros motivos para sofrer.
— Sabe? Você até parece uma grega, se oferecendo em sacrifício desse jeito. Graças a Deus, eu não tenho esse desejo ardente de dar tudo pelo amor. Você é jovem e muito atraen¬te, e o amor está lhe fazendo muito mal, anda muito triste. Seja como eu: dê menos e exija mais. Os homens gostam e esperam isso, não sabia? Os anjos fazem com que eles se sintam desconfortáveis.
Fenny foi forçada a sorrir, ao imaginar Lion dominado por uma mulher.
— Lion já acha que sou uma atriz. Se tentasse agir como você age, Adelina, ele ia pensar que quero ganhar o Oscar.
— Um... Oscar? — Adelina olhava, confusa. — O que é isso?
— Um trofeu que é oferecido à melhor atriz de um filme.
— Ah, entendo. Então, o meu valente cunhado não percebe que tem uma esposa apaixonada? Por que ele acha que você casou com ele?
— Por dinheiro. Eu morava na casa de meu tio é era a parente pobre.
— Lion já se decidiu quanto a você, hein? Bem, se ele pensa que é uma mercenária, então você deve se aproveitar disso. Diga-lhe que precisa de roupas novas e que vai voar comigo até o continente qualquer dia desses para uma visita ao meu costureiro e ao meu cabeleireiro Constantino, em Atenas. O que acha?
— Eu adoraria ir a Atenas. — Fenny estava aliviada por mudarem de assunto. — Não ligo muito para roupas, mas seria divertido visitar a cidade.
— Não há outra igual. Precisa conhecer a Acrópole e ver as ruínas do Partenon. O templo foi dedicado à deusa-virgem Atena, e é melhor de se ver à luz da lua, quando as colunas e as estátuas parecem brancas. Durante o dia, parecem muito empoeiradas e cinzentas, com milhares de turistas correndo de um lado para o outro para tirar fotos.
— Você já foi a Londres? — Fenny perguntou, lembrando que Adelina não tinha ido com Demetre para o casamento,
— Prefiro Paris. E tenho que confessar que minha maior paixão são as casas de moda: adoro roupas. Felizmente, recebo uma mesada do meu pai, que é armador; caso con¬trário, acabaria levando Demetre à falência. Você acha que formamos um casal estranho?
— Na verdade, não. — Fenny encostou a cabeça na cadeira almofadada e tentou relaxar. — Ele adora você e a considera uma pessoa muito especial. Como você consegue resistir?
— Sim, é muito bom ser uma deusa aos olhos de um homem. — Seus lábios escarlates se curvaram num sorriso. — Você sente inveja de mim?
Fenny considerou a questão e se perguntou como seria, se conseguisse que Lion ficasse a seus pés. Mas era algo impossível de imaginar. Ele era muito orgulhoso e tinha virilidade: nunca colocaria uma mulher num pedestal.
— Não. Você e eu somos dois tipos diferentes — Adelina disse, com esperteza. — Você precisa da expressão física da paixão de um homem, mas eu me sinto mais feliz por ser admirada. Eu não considero o máximo da feminilidade ficar disforme, simplesmente para satisfazer o desejo de um homem ter um filho. Mas você gosta disso, não gosta? Não duvido que Lion exigirá um filho. — Adelina afastou-se do parapeito e olhou fixo para Fenny. — De uns tempos para cá, você anda um pouco pálida. Por acaso está grávida?
— Não! — Fenny negou com veemência, porque não podia confiar na cunhada. Se dissesse a verdade, ela acabaria contando para Demetre e Lion também saberia. Não queria que ele ficasse sabendo; não, por enquanto.
A criança não iria uni-los. A pequena vida que se alimentava de seu amor iria apenas separá-los definitivamente.
— Você parece ter muita certeza — disse Adelina. — Então as olheiras e o abatimento não querem dizer nada? Certamente, você não está fazendo regime: seu prato está vazio e nas travessas há muito pouco!
Fenny sobressaltou-se.
— Deve ser o calor. Não estou acostumada. Não temos esse tipo de tempo na Inglaterra, nem mesmo no verão.
— Brrr... eu não conseguiria viver num país frio. Faço questão das minhas visitas às casas de moda, mas adoro viver aqui nesta ilha, onde é tão sossegado, o ar é tão puro e há este mar maravilhoso.
— Uma das borboletas exóticas do lugar. — Fenny sorriu.
— Gosto da comparação, querida. Bem, acho que já tomei muito de seu tempo. Agora, vou deixar que descanse. Estou feliz por Lion ter saído do edifício quase que ileso. Kalenikta.
Adelina afastou-se, deixando no ar seu perfume francês. Fenny sentou-se sozinha, até que começou a esfriar. Então, entrou e foi, nas pontas dos pés, até o quarto de Lion para comprovar mais uma vez que ele estava bem. A luz de um abajur brilhava palidamente ao lado da cabeceira da cama, e foi um choque quando ela se inclinou e encontrou seu olhar.
— Lion...
— Olá! Estou me sentindo como se o tempo tivesse pa¬rado. Dormi muito?
— Algumas horas. Como está se sentindo?
— Um Lixo. Tudo o que consigo lembrar é de um clarão e um estouro na cabeça. O que aconteceu?
— Um terrorista colocou uma bomba no edifício em que você estava. Teve muita sorte...
— Quer dizer que os outros morreram... O que aconteceu com Zonar?
— Ele estava num restaurante, almoçando, na hora da explosão.
— Claro, agora me lembro. Ele disse que ia se encontrar com um velho amigo do colégio, mas acho que era uma garota. — Lion sorriu, mas depois seus olhos se anuviaram. — É uma ironia os homens morrerem, quando estão lutando para levar um pouco de paz para Chipre. Então, eu vim de helicóptero, hein? E me colocaram na cama, como um bebê. Isso nunca me aconteceu antes.
— Você está com fome? Já passou bastante tempo e seria bom se comesse um pouco. Qualquer coisa que goste.
— Como está sendo atenciosa e educada. Aconteceu al¬guma coisa com os seus sentimentos, minha querida?
— Não seja desagradável!
— Ah, esses olhos azuis... quanta dor eles conseguem expressar. — Seus dedos escorregaram por baixo da manga do caftã de Fenny e apertaram a pele clara. — Suave e doce, sorrindo como um anjo falso, não é mesmo? Certa¬mente, deve ter sido um grande desapontamento para você, quando Zonar lhe disse que ainda não era uma viúva. Que pena! Como você ficaria encantadora num vestido preto de seda. Que belo contraste faria com sua pele clara e seu cabelo dourado. Quando penso nisso, tenho até vontade de morrer para vê-Ia assim... mas, se eu morresse, não poderia vê-la. Que bobagem a minha!
— Lion, você é um bobo, mas eu me recuso a perder a calma hoje. Quer comer alguma coisa?
— Pão preto, ostras e um potinho de manteiga quente, meu anjo de candura. E café.
— Logo estará tudo pronto. Oh, Lion, você é indestrutível, e todos estão felizes com isso.
— Você também?
— Fico encantada com seu apetite — brincou. — Man¬teiga, café e ostras a essa hora da noite!
— Você perguntou minha preferência.
— Certo. Vou preparar as ostras eu mesma.
— Você?
— Claro. Não sou apenas pele branca e cabelo dourado, sabe? Uma vez, fiz um curso de culinária. Garotas sem graça precisam aprender a cozinhar, já que não têm outros atrativos — zombou. — Não vou demorar. Seu braço está doendo muito?
— Dá para aguentar. Não precisa se preocupar em pre¬parar comidas exóticas para mim, kyria. Ficarei satisfeito com sanduíches.
— Você terá exatamente o que quer, patrão.
— Está sendo sentimental por causa dos meus ferimen¬tos? Bem, nesse caso, não esqueça o café, por favor!
— Não, senhor.
Ele estava procurando pelos charutos, quando ela saiu do quarto, para correr escada abaixo em direção à grande cozinha. Durante o dia, ficava cheia de criadas trabalhando, porém, naquele momento, tudo estava em silêncio, e as lu¬zes, apagadas. Fenny acendeu-as e caminhou para o refri¬gerador imenso, as pregas do caftã enroscando-se em suas pernas. Sempre havia ostras no congelador, porque Lion adorava. Rapidamente, começou a preparar uma dúzia para ele, fez um molho para servir junto, coou café, cortou o pão em fatias e colocou um pratinho de manteiga numa bandeja.
Estava no meio dos preparativos, quando uma figura alta apareceu na porta.
— Meu Deus! Que atividade toda é essa?
Fenny desviou os olhos do que estava fazendo e sorriu para Zonar.
— Lion acordou e esta com fome. Pediu ostras, mas eu prepararia até um banquete, se ele quisesse. É maravilhoso vê-lo como antes.
— Imagino que sim! — Zonar instalou-se numa cadeira, olhando-a de modo irônico. — Ele já começou a insultá-la?
— Umas três vezes.
— Então, realmente, está em forma.
— Quase. Mesmo que estivesse sentindo alguma dor, não diria nada. Você, que o conhece há mais tempo do que eu, deve saber disso.
— Quer dizer que ele prefere comer ostra e descansar a cabeça machucada em seu ombro? Eu não faria a mesma escolha.
— Ele está um pouco fraco e precisa se alimentar. — Arrumou a bandeja, feliz por estar preparando uma refeição para o marido. Desejava poder fazer isso mais vezes, mas não estava em posição de perturbar a rotina do castelo. A cozinheira grega poderia ficar ofendida, se começasse a usar a cozinha, e Lion seria o primeiro a dizer que pagava um bom salário para ter uma comida feita com esmero, e não para comer o que fazia uma principiante.
— Pode trazer o bule de café? — pediu a Zonar. — Suba e diga alguma coisa agradável a seu irmão.
— Minha querida cunhada, ele cairia da cama, se eu ousasse dizer na cara dele que estou infernalmente feliz por ainda estar aqui para manter a família de pé. — Zonar seguiu-a pela escada, levando o café. — Sinto-me como um criado grego.
— Fazer alguma coisa útil não tira pedaço. E não se atreva a magoar seu irmão!
— Minha querida, ele é o rei desta selva e eu sou apenas mais um dos infelizes que ele maltrata. — Riu e acompa¬nhou-a até o quarto. — Cá estamos, Lion, a seu serviço e com o prato mais delicioso que já comeu na vida.
— As ostras... ou minha esposa? — Dirigiu um olhar penetrante para o irmão e depois observou Fenny, que co¬locou a bandeja de pezinhos sobre seus joelhos. — O cheiro está muito bom.
— Espero que goste. Está se sentindo bem?
— Bem. — Destampou a travessa e provou o molho. — A quantidade exata de alho e vinagre. — Deslumbrante!
— Oh, ela não tem apenas um rosto bonito — disse Zonar. Instalou-se numa poltrona, observando o irmão saborear o jantar com apetite. — Estou percebendo, Lion, que você se sente bem melhor. Escapou por um triz. Muitos dos mem¬bros do comitê não tiveram a mesma sorte.
Fenny saiu silenciosamente do quarto, deixando os dois conversarem a sós. Agradeceu a Deus pelo marido estar salvo e ter gostado da ceia que preparara.
Foi para a cama e adormeceu tranquila.
O dia já estava claro e o sol penetrava pelas janelas quando Fenny acordou. O sol ia alto, e imediatamente per¬cebeu que dormira muito mais que de costume. Lion! Pulou da cama, vestiu o robe e entrou correndo no quarto dele.
A grande cama estava vazia, as cobertas, atiradas para o lado, e os travesseiros, ainda com a marca da cabeça dele. Oh, não! Lion devia continuar descansando.
— Kalimera, kyria.
Ela se virou, e lá estava ele, em pé na porta da varanda, olhando-a com ironia.
— Venha até aqui. Quero lhe mostrar uma coisa.
— Lion, por que não fica mais um dia na cama? O médico disse para não abusar.
— É o que planejo fazer. Venha!
Estendeu a mão para ela, que obedeceu. Levou-a para a varanda, banhada pelo sol, e apontou-lhe o mar. Lá, naquele mar de água azul-esverdeada, navegava um lindo caíque preto, parecendo um navio de piratas que tinham decidido invadir a ilha. Como em tempos antigos, quando os mora¬dores escondiam as jovens nas colinas, na esperança de mantê-las sãs e salvas dos conquistadores.
— Aquele é o Cirene — ele explicou. — Acaba de sair do estaleiro e está pronto para a primeira viagem. Gosta?
— É seu? Nunca tinha visto nada igual. Parece um navio de piratas. Sim, claro, só podia pertencer a você.
— Gostaria de fazer uma viagem nele pelo mar Egeu? Fenny o escutava, mas não acreditava. Era maravilhoso demais. Não podia ser verdade que Lion a estivesse convi¬dando para um cruzeiro.
— Você não é uma boa marinheira?
— Realmente, não sei. Nunca fui testada.
Queria acreditar em tal viagem, naquele oceano fabuloso, naquele lindo caíque com grandes velas e cabeças esculpidas na madeira — provavelmente, a deusa Cirene. Devia haver tantas pequenas ilhas gregas para serem exploradas. Queria isto com desespero, mas não podia ir navegar com ele. Não conseguiria sentir prazer algum, sabendo a todo instante que todos os dias e todas as noites iriam levá-la inevita¬velmente a lugar nenhum.
— Então, hoje vai ser testada. Já pedi que o drene venha nos buscar dentro de algumas horas.
Desviou os olhos do navio para o rosto de Fenny, e ime¬diatamente uma sombra de mau humor apareceu em sua expressão.
— Por que você está me olhando desse modo? Não está feliz de ficar sozinha comigo no caíque? A esposa atenciosa só existiu ontem à noite. Deixe de histórias! Se a idéia não lhe agrada, diga. Não estou tão desesperado por companhia, portanto, não a forçarei a navegar contra a sua vontade, como faziam os corsários turcos que ocuparam estas ilhas nos velhos tempos. Claro, era inevitável que o sangue deles corresse nas veias gregas, mas não sou tão cruel com você e nunca fui! Nós dois sabemos muito bem disso, não é mesmo?
— Sim. — Afastou-se o máximo que as mãos dele per¬mitiram. Mas Lion continuou a segurá-la pelos pulsos, com força. — Você pode levar Zonar...
— Levar um irmão? — Ele franziu a testa e torceu o nariz. — Deve estar ficando maluca. Minha querida, acha que é a única mulher na minha vida? Se a viagem não lhe agrada, pode ficar descansada, que não terei dificuldades em arrumar uma outra. Há muitas que gostariam de ir comigo. Não se preocupe: estarei em boas mãos. Você mesma já sabe como as mulheres gregas me tratam... e até algumas estrangeiras. Imagino que o desapontamento de ontem lhe veio à cabeça agora, que pena que eu não morri, não é? Eu cheguei bem perto, não foi? Se tivesse acontecido, você agora seria uma viúva jovem e rica, e além do mais estaria livre do nosso pacto. Faço idéia de quanto deve me odiar por estragar seus planos e não morrer naquela explosão.
Fenny recuou, como se ele tivesse lhe dado uma bofetada.
— Farei o que você quiser, Lion. Irei navegar com você, se é o que quer. Farei tudo para deixá-lo...
— Vá para o inferno!
Ele a empurrou com tanta força que Fenny caiu contra as grades de ferro do parapeito, batendo as costas e gritando de dor. Ela agarrou-se ao parapeito e ficou olhando-o, chocada.
— Você é duro feito aço, Lion. Você simplesmente não quer me entender e interpreta tudo errado, quando tento explicar. Nada... nada consegue mudá-lo, nem mesmo o fato de ter estado tão perto da morte!
— Exato! Por que deveria alguma coisa me fazer mudar ou mudar quando você me forçou a um casamento que fez mudar completamente a minha vida. Agora, se não se importa, desapareça da minha frente... se é que tem amor à vida. E pensar que você agiu como um verdadeiro anjo, na frente do meu irmão, ontem à noite! Fez-se passar por uma pobre esposa e escondeu seu desgosto, seu pesar, por trás daquele sorriso doce e falso que está sempre pronta a vir a seus lábios. Graças a Deus, não terei que vê-la nos próximos dez dias. Vou colocar muitos quilómetros de oceano entre nós e gostaria, do fundo do coração, que isso pudesse ser o fim de tudo.
— Não pense que também não desejo a mesma coisa!
Fenny virou-se e, com as pernas tremulas, deixou-o sozinho. Em seu quarto, sentou-se na cama e pensou na terrível bar¬reira que se erguera entre Lion e ela. Com a dramática rapidez de um furacão, tudo tinha acontecido; um momento desastroso, depois o prazer antecipado de estar com ele, a sós, naquele navio. Seu corpo doía da queda contra a grade, mas era no coração que sentia a pior das dores.
Iria embora!
A decisão chegou de repente. Sim, era a única coisa a fazer. Ele havia dito que ficaria longe da ilha durante dez dias, o que lhe daria tempo suficiente para preparar tudo para sua partida de Petaloudes. Alugaria um barco para levá-la até Atenas e, de lá, reservaria uma passagem de avião para a Inglaterra. Tinha algumas economias num ban¬co inglês, o bastante para se sustentar até o nascimento do bebê. Depois, como muitas mulheres, iria procurar um em¬prego e sustentar sozinha a criança. Não sentia medo. Da¬quela forma, teria algo mais precioso do que um bracelete de ouro.
Graças a Deus, ninguém sabia que carregava um filho de Lion. Havia apenas Kassandra, e ela não era um membro da família, dificilmente falava e, menos ainda, sobre a vida dos patrões. De qualquer forma, a mulher só estava tentando adivinhar. E Fenny era uma estrangeira que havia entrado para aquela família sem ser desejada. Então, quem sentiria sua falta? Desapareceria de uma vez por todas da vida dos Mavrakis e se estabeleceria em alguma parte da Inglaterra, onde pu¬desse ficar no anonimato.
Ainda naquela manhã escaparia do castelo e, quando vol¬tasse da visita à capela nas colinas, Lion já teria partido no Cirene, navegando em alto-mar, cheio de ódio e conven¬cido de que ela não passava de uma embusteira mercenária. Que ironia mais dolorosa, quando a única coisa que queria dele era o amor que mantinha trancado a sete chaves, sem pensar em repartir com ela.
Ela o estaria enganando, quando partisse da ilha, levando consigo o filho que ele nunca iria ver. Tinha que ser assim, porque não conseguia mais suportar aquela vida de paixão e tormento.
Há pouco, ele tinha sido fisicamente violento, pela primeira vez. Quando Fenny foi para a banheira, tomar uma ducha, descobriu manchas roxas no corpo. Talvez o marido não tivesse nem percebido como fora forte o aperto de suas mãos, em¬purrando-a para as grades de ferro do parapeito. Sentiu um frio no estômago. Lion devia odiá-la profundamente, e a única recompensa que podia lhe oferecer por se meter na vida dele, forçando o casamento, era desaparecer para sempre.
Pediu que o café fosse servido no quarto. Em seguida, colocou um vestido branco simples e seu único adorno era o bracelete de ouro com o desenho de Afrodite. Desceu si¬lenciosamente, levando consigo o estojo de veludo com o colar de pérolas. Aquela ida à capela para fazer uma ofe¬renda aos deuses era agora uma desculpa válida para se afastar do elo por algumas horas. Quando voltasse, Lion já teria partido. Não haveria despedidas. Não teria um último beijo para se lembrar dele, apenas um forte empurrão que deixara marcas em seu corpo e sua alma.
Não havia ninguém por perto, quando foi à garagem, onde estavam guardados muitos carros de uso particular da família. As chaves estavam na ignição do carro de dois lugares e Fenny deu marcha à ré e desceu o caminho cheio de curvas, dirigindo-se para o portão.
O sol agora estava realmente muito quente, e o automóvel esporte não tinha capota. Sentiu uma pontada na têmpora. Devia ter lembrado de pegar um chapéu, mas todos seus pensamentos, naquela manhã, estavam concentrados na cena que tivera com o marido. Era um pesadelo que não esqueceria tão facilmente.
Passou pelos portões e seguiu a estrada estreita e sinuosa do penhasco. Fenny prendeu a respiração ao avistar a si¬lhueta do caíque no mar. Parecia irreal, tão imponente, preto e belo, como uma pintura grega.
Suas mãos apertaram o volante.
— Vá com Deus, Lion — murmurou. — Eu o amei muito mais do que você pode imaginar.
Continuou a viagem, passando por imensas figueiras e oliveiras, e pelo caminhão que levava os pastores até as colinas áridas, onde pastavam os rebanhos de cabras. O ar estava puro como sempre, e borboletas voavam em torno das árvores e ouvia-se o canto das cigarras.
Fenny seguia pensando em Lion e na vida que levara com ele. Teria muita coisa boa para se lembrar, mas nunca poderia esquecer o que acontecera naquela manhã.
De longe, já avistava a capela toda branca que brilhava ao sol, dominando as pequenas casas distribuídas na encosta da colina, seus telhados muito juntos. Viu as mulheres tra¬balhando agilmente com lã crua nas varandas da casa. Ha¬via sombra e mistério acima das arcadas ovais feitas de pedras brancas e grades enfeitadas de pedrinhas coloridas.
Fenny estacionou o carro perto do pátio da capela e entrou. Muitas mulheres vestidas de negro estavam ajoelhadas, re¬zando baixinho. Não era muito iluminado lá dentro, as janelas eram ovais e coloridas. Foi direto para onde estava o cande¬labro aceso e depositou no prato de oferenda as riquíssimas pérolas que eram a prova de seu falso casamento com Líon. As pérolas que nunca realmente tinham lhe pertencido.
Ajoelhou-se e fechou os olhos. Rezou para ter forças para abandonar o homem que tanto amava e para ser capaz de resistir à falta de amor dele. Quando saiu da igreja, cami¬nhou sob as árvores nas ruas estreitas, atraindo olhares curiosos. Todos podiam perceber que era uma estrangeira
e alguns deviam estar imaginando quem era. A Inglaterra parecia estar a milhares e milhares de quilómetros.
Fenny respirou fundo e viu algumas borboletas amarelas dançando no ar. Tinha esperado tão desesperadamente tor¬nar-se uma moradora da ilha, com os mesmos gostos, mes¬mos hábitos e a mesma língua, esquecendo-se totalmente do tempo em que vivera na Inglaterra, antes de tornar-se membro da família Mavrakis.
Mas isso não era para acontecer. Devia abandonar toda aquela beleza pagã e selvagem. Olhava para tudo dizendo adeus ao aroma forte de pão recém-assado, ao sol, às pessoas que nunca conheceria.
Dírigiu-se ao pontilhão sobre o mar e ficou observando os pesqueiros coloridos.
Depois, sentou-se à mesa de uma patisserie. Pediu suco de laranja ao garçom. O homem abriu um largo sorriso e, num inglês bem aceitável, contou que tinha trabalhado num restaurante grego em Londres, perto da torre de vidro da companhia telefônica,
— Mas senti saudade do meu pessoal — ele disse, ser¬vindo o refresco a Fenny. — Há muito movimento e desgaste em Londres. Então, economizei e voltei para casa. A kyria não gostaria de provar uma rosquinha ou uma torta de massa folhada de creme? Minha esposa é ótima cozinheira de doces e bolos.
Era tão agradável ver um rosto amigo, que Fenny sen¬tiu-se obrigada a concordar e provar uma rosquinha. Ficou conversando com o homem por quase uma hora. Quando se despediu, ele lhe pediu, solenemente, que mandasse lem¬branças para o sr. Mavrakis e lhe dissesse que estava muito feliz por ele não ter ficado muito ferido.
Fenny não podia contar que não ia mais ver o marido. Com um sorriso que tremeu um pouquinho em seus lábios, prometeu transmitir o recado.
— É muito bom que o sr. Mavrakis tenha uma esposa bonita e simpática. — O grego curvou-se para ela. — Muitas felicidades, kyria.
Enquanto se afastava, Fenny teve a impressão de que o mar fazia um barulho estranho: parecia chorar.
Cerca de dez minutos mais tarde, já se dirigia para o castelo. O povoado começava a diminuir de tamanho com a distância. A vista era tão bonita, que Fenny deixou de olhar a estrada por um instante e virou a cabeça para trás. Foi naquele exato momento que um cão selvagem saiu do meio das árvores e correu latindo na frente do carro. Fenny tentou controlar o volante e pisou com força no freio. O carro derrapou, chegou à beira do precipício, deu um sola¬vanco e, por milagre, voltou à estrada estreita, mas em sentido contrário. Descendo, em vez de subir.
O carro ganhou velocidade novamente e bateu no rochedo, pois Fenny não conseguia pará-lo. Alguma coisa tinha acon¬tecido com o breque, que não funcionava. O automóvel pa¬recia voar na direção de uma curva fechada. O sol batia em cheio em seu rosto e ela não enxergava mais nada. O carro continuou batendo no rochedo até parar de vez.
Finalmente, Fenny foi atirada para fora, caindo sobre uma moita de espinhos. Sentiu uma dor muito forte na cabeça e mergulhou na escuridão.
Cacos de vidro brilhavam ao sol e a gasolina escorria do motor. A buzina do carro disparada quebrava o silêncio da colina. Um cachorro farejou o óleo, e logo em seguida um garoto veio correndo pela pista, com os olhos cheios de medo. Procurou dentro do carro e logo depois viu a garota caída do lado de fora, junto à poça de gasolina. Rapidamente, puxou-a para longe do carro. Foi o que salvou a vida de Fenny. Quase no mesmo instante, o motor explodiu e o óleo incendiou.
O barulho fez Fenny despertar. Ficou deitada na estrada, com o vestido sujo e rasgado, sem conseguir se lembrar de nada. O cachorro pulava ao redor do garoto que lhe prestava os primeiros socorros, esperando que a fumaça e as chamas trouxessem ajuda do pessoal do povoado.
Fenny não dizia nada e também não sabia onde estava nem com quem. A única coisa que sabia era que alguém a tinha arrastado de perto do carro. Estava muito grata ao garoto por estar a seu lado, e não por salvá-la, pois desejaria ter morrido.

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