Amigos Peludos



6. Amigos Peludos


Quando acordei na manhã seguinte já me sentia melhor. Era fim-de-semana e a mãe prometera levar-me ao Canil de Battersea. Quem precisa de amigas? Ia ter o meu novo melhor amigo do tipo peludo.
Vesti-me e saltei pela escada abaixo. Ninguém na cozinha. Ninguém no escritório do pai. Ninguém na sala.
- Onde está a mãe? – perguntei, encontrando o pai sentado no pátio a ler o jornal e a beber uma chávena de café.
- Foi chamada para um caso. Bom dia, Lily.
- Oh, sim. Bom dia. Quando é que ela volta?
- Não sabia…
- Oh, não! – gemi. – Íamos ao canil. E tenho futebol esta tarde… Se ela não voltar cedo, não teremos tempo.
- Eu tenho o dia livre – disse o pai. – Quando quiseres, vamos.

- A escola está a correr bem? – perguntou o pai enquanto descíamos Edgware Road em direcção a Hyde Park.
- Está.
- Não falta muito para as férias de Verão.
- Não. Não muito.
- Sentes-te bem?
- Sim. E tu, pai?
- Também. Óptimo, obrigado.
Percebia que ele estava a fazer um esforço, mas não estava com vontade de lhe contar como realmente me sentia. Ele nunca seria capaz de compreender as saudades que eu tinha do Paul e da Hannah e como se tornava difícil ser a única rapariga do 9º ano sem uma melhor amiga. Não queria que ele começasse a falar do Paul e de como desperdiçara as suas oportunidades. A última coisa que queria era ouvir um sermão sobre como me devia concentrar na escola e na minha carreira e ter boas notas.
Senti-me aliviada quando ele desistiu e ligou o rádio, mesmo que fosse para ouvir música clássica. Tem boas intenções, na verdade, o pai, mas, por vezes, está tão ocupado a oferecer as suas soluções que não se apercebe de que não ouviu, na realidade, o problema. É muito fácil falar com a mãe. Compreende melhor que, às vezes, as pessoas não querem que lhes digam o que fazer, querem apenas que alguém as ouça e lhes ofereça um pouco de simpatia.
Passei o resto da viagem a olhar pela janela enquanto seguíamos por Park Lanne, em direcção a Victoria e depois pela Chelsea Bridge.

- Sempre quis vir aqui – comentou o pai enquanto estacionava o carro perto de Battersea Park. – Há séculos que quero ter um cão.
- A sério? – perguntei enquanto saíamos e virávamos a esquina para o Canil. – Nunca soube disso. Já alguma vez tiveste um cão?
O pai assentiu. – Quando era miúdo. O melhor amigo que já tive. Sendo filho único, era o meu companheiro permanente.
- Como se chamava?
- Rex.
- Que lhe aconteceu?
- Morreu depois de eu ir para a Universidade. Fiquei destroçado. Pensei que era culpa minha, sabes, porque me fora embora e o deixara. Mas a minha mãe garantiu que não foi assim. Disse que era altura de partir e que ele esperara até eu ir embora para não me perturbar.
Dirigimo-nos à recepção do canil e observei o pai enquanto ele tirava a carteira para pagar a nossa entrada. Juro que os seus olhos estavam húmidos quando falara de Rex. Fez com que o visse com novos olhos. O pai tinha claramente um ponto fraco quando se tratava de animais.
- O senhor paga uma libra – informou a senhora atrás do balcão. – E a jovem cinquenta cêntimos. Vieram só para ver ou para comprar um cão ou gato?
- Para comprar um cão – respondi.
- Então, primeiro precisam de ter uma entrevista com um Avaliador. Sigam as pegadas vermelhas no chão e alguém irá falar convosco. Para ver o tipo querem e outros pormenores. Depois, sigam as pegadas azuis e dêem uma olhadela.
Mal podia esperar e sentia-me realmente entusiasmada. Percebia que o pai também se sentia assim. Transformara-se de Pai Aterrador em Pai Sorridente.
Seguimos as pegadas vermelhas e fomos sentar-nos na sala de espera com um grupo de outras pessoas. Um aviso na parede dizia-nos que um cão custava 70£ e um gato 40£. Após uma curta espera, um homem de fato de treino vermelho saiu e chamou-nos para uma sala onde fez montes de perguntas sobre onde vivíamos, se havia outras crianças ou gatos e se tínhamos um jardim.
Foi engraçado porque se mostrou severo como um director de escola e o pai teve mesmo de se esforçar para o convencer de que seríamos bons donos.
- A nossa principal preocupação – disse o homem, descontraindo-se finalmente – é que os cães tenham um lar permanente onde sejam felizes e bem tratados… durante o resto das suas vidas. Daí o interrogatório. Muitos dos nossos cães estão aqui porque os anteriores donos não podiam ou não queriam cuidar deles. A última coisa que queremos é que um cão tenha outra má experiência.
- Com certeza – concordou o pai. – Posso assegurar-lhe de que tomaremos muito bem conta daquele que levarmos hoje.
- Muito bem, então. Vamos ver os cães – concluiu o homem.
O pai olhou para mim e piscou-me o olho enquanto seguíamos o homem pelo caminho das pegadas azuis através de um pátio até um edifício nas traseiras.

Lá dentro parecia um hospital com longos corredores inclinados que conduziam a diferentes andares. Cada corredor tinha um nome diferente: Oxford Street no rés-do-chão onde se encontrava a clínica; Bond Street e Bow Street no primeiro andar onde estavam os cães; Regent Street e Baker Street no segundo com cães e gatos e um andar privado, Fleet Street e Pall Mall, no topo.
- Cá estamos – disse o nosso Colocador, abrindo uma porta para uma ala lateral. – deixo-os para darem uma vista de olhos. Não tenham pressa e, quando tiverem decidido, levar-vos-emos o cão para ser apresentado e ver se dão bem. Demora cerca de quinze minutos. Depois, se todos estiverem contentes, podem ir-se embora.
Duas coisas nos atingiram quando entrámos na sala. O som de latidos e o cheiro. Não um mau cheiro, mas ainda assim intenso. Como de palha molhada misturada com comida de cão.
- Pff – disse eu.
- Aromaterapia do tipo canino – riu-se o pai enquanto espreitámos para ver o primeiro focinho esperançoso a olhar-nos por trás das grades.
- é como se estivessem na cela de uma prisão – comentei enquanto um Jack Russell nos estendia uma pata e ladrava um saudação amigável.
Passamos a seguinte hora a caminhar pelas alas de todos os andares. Devemos ter visto cerca de cinquenta cães. Cada um tinha um pequeno quarto com um cobertor, água, um brinquedo e acesso ao exterior através de um corredor nas traseiras.
Havia todo o tipo de raças à escolha. Collies, Beagles, Jack Russells, rafeiros de todas as cores e até um Samoiedo que o pai me disse ser uma raça rara. Parecia um grande urso branco de pelúcia. Junto de cada jaula encontrava-se um relatório com os pormenores do cão: a raça, o nome, a idade, a história e se gostavam de gatos ou crianças. Se precisavam de um dono experiente e se eram destruidores ou não!
No fim do relatório estava um comentário como se tivesse sido escrito pelo próprio cão: «Preciso de atenção» ou «Sou um bom companheiro» ou um cão enorme cujo comentário dizia «Sou um indivíduo majestoso!».
- Aquele pareces tu, pai – gracejei, apontando para o último. Com a sua elevada estatura e o cabelo branco-prateado, o pai tinha mesmo um ar majestoso.
- Não sei o que queres dizer com isso – riu-se ele e depois apontou para o que dizia «Tenho uma vontade forte e preciso muito treino» - e aquele pareces tu.
Numa ala, um rafairo preto chamado Woodie fazia tudo o que podia para chamar a atenção das pessoas. Todo o tipo de acrobacias malucas – saltando para as paredes, patas apoiadas nas grades. Era como se estivesse a dizer «escolhe-me, escolhe-me, vê o que sei fazer… cambalhotas de costas, saltos, batimentos!!! Escolhe-me. Escolhe-me».
Outro velho Collie castanho e branco estava sentado, fixando-nos com olhos suplicantes. Parecia que tinha uma grande cabeleira postiça.
- Isto é muito triste – comentou o pai, lendo o seu relatório. – Chama-se Kiki. Tem treze anos.
Kiki pôs uma pata fora da jaula e, embora houvesse um grande aviso a dizer que não se tocasse nos cães, o pai pegou-lhe na pata e afagou-a. – Olá, rapariga.
Depois, virou-se para mim e juro que os seus olhos estavam de novos húmidos. – Pobrezinha. Com esta idade, está aqui provavelmente proque o dono morreu ou assim. Contudo, parece que tem sido bem tratada. É uma pena porque muitas pessoas vêm aqui e só querem cães novos. Lêem «treze anos» e vêem a despesa com as contas do veterinário.
Eu estava a achar aquela tarefa extraordinariamente difícil. Queria-os todos. Em todas as alas onde entrávamos, os cães empertigavam-se e começavam a abanar as caudas como se o pai e eu fôssemos os seus melhores e mais velhos amigos. Tão contentes por nos verem. Era como se estivessem a dizer: «Oh, estão aí, esperem um momento, vou buscar as minhas coisas e podemos partir.» Depois, quando nos afastávamos das suas jaulas, os focinhos ficavam tristes e as caudas baixavam como se pensassem: «Voltem. Eh, aonde vão? Pensei que íamos sair daqui.»
- Não podemos alugar uma carrinha, pai, voltar aqui com ela e dizer «todos para dentro?» E depois comprarmos uma casa de campo…
- Gostava muito - respondeu o pai. – Mas infelizmente, só podemos ter um. Já decidiste?
Abanei a cabeça. Apaixonara-me por seis deles. O Woodie e o Samoiedo e Kiki, a velha Collie, um rafeiro que parecia um velho urso de pelúcia, um belo lobo da Alsácia preto e um atrevido Jack Russell.
Alguns tinham de ser postos de lado, porque o seu relatório dizia claramente que podiam ser destruidores e não gostavam de crianças, nem mesmo de adolescentes. Outros, sabia que eram demasiados grandes, como o lobo da Alsácia. Mesmo sendo campeã de braço-de-ferro, sabia que não o conseguiria segurar pela trela.
Foi então que virei uma esquina e vi o Mojo. Estava sentado sossegadamente no seu quarto e era um cão preto de tamanho médio com uma mancha branca num olho. Fitou-nos com os olhos mais tristes que já vi. Pareces sentir-te como eu ontem à noite, pensei. Triste, só e com muita necessidade de um amigo. «O Mojo tem quatro anos e era vadio» dizia o seu relatório. «Tem um temperamento meigo e gosta de pessoas. Está muito perturbado por se encontrar aqui e gostaria de ter um bom lar o mais depressa possível.»
O Mojo ergeu para mim os olhos esperançados.
Eu olhei para o pai.
- É ele, não é? – perguntou o pai.
Assenti.

Quando chegamos a casa, o Mojo correu por todo o lado a farejar tudo. Com a cauda a abanar alegremente, pareceu muito satisfeito quando o pai abriu as portas envidraçadas para o jardim. Correu para fora e farejou o ar como se não conseguisse fartar-se dele.
- Acho que gosta disto – comentou a mãe, observando-o da cozinha. Enquanto ele corria e se familiarizava com os cheiros, o telefone tocou.
- Oh, deve ser uma tal Lucy outra vez. Telefonou algumas vezes desde que voltei, assim como uma Marlene.
Fui atender a chamada. A mãe tinha razão. Era a Lucy.
- A propósito da Marlene ontem à noite – começou. – Ela não teve intenção de te aborrecer. O que quis dizer foi que, com as tuas possibilidades, podias ficar completamente deslumbrante. Não estava a dizer que eras horrível, nem nada disso.
Já me esquecera de todo o incidente da noite anterior. E não me parecia assim tão mau à luz de um novo dia.
- Acho que fui um bocado sensível demais – admiti. – Exagerei um bocado.
- Todas temos dias assim – confirmou a Lucy. – Como diz a minha mãe, apenas o dono do sapato sabe onde magoa. Sabes, às vezes não sabemos quais são os pontos sensíveis dos outros e pisamo-los por engano. A Marlene pisa os pontos sensíveis das pessoas com botas cardadas. Mas não faz de propósito. Queremos todas ser amigas. A sério. Concordamos todas. Foi por isso que a Marlene se foi sentar ao teu lado durante a palestra do Sam, no outro dia.
- A sério? Pensei que era apenas coincidência.
- Não. Era para que tivesses alguém ao teu lado.
- A sério?
Conversámos cerca de dez minutos e contei-lhe as minhas novidades sobre o Mojo. Quer vir cá na segunda-feira para o conhecer.

Depois de desligar o telefone, tinha muito em que pensar. Parecia que ajuizara mal toda a situação e decidi que deveria dar outra oportunidade à Marlene. Observei o Mojo enquanto ele corria por ali. Já parecia um cão diferente, com a cauda abanando loucamente e a língua de fora.
A mãe tinha o rádio ligado na cozinha e ouvia-se uma velha canção. É bem verdade, pensei, enquanto ouvia a letra. «What a difference a day makes, twenty-four little hours…»
Vamos ser todas boas amigas, pensei, saindo para o jardim para ir ter com o Mojo e fazer aquilo que me apetecera desde que lhe pusera os olhos em cima.
Dei-lhe um grande abraço.

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De: Hannah
Para: Lily
Data: 16 de Junho
Assunto: Hasta la vista

Olá, bambu baby
Mim muito tliste não e-mail ontem à noite.
Lamento Teles passado mau bocado. Gostava de estar aí para ajudar. Confúcio diz que todas as coisas passam. Sobretudo, se se comerem muitas fiblas. Ão, ão.
Diverti-me imenso. Fui a uma grande festa com comes e bebes em casa de uma rapariga da escola. É nova como eu mas veio de Joanesburgo (conhecida aqui como Jo’burgo). Acho que poderemos ser amigas. Chama-se Rachel.
Estou a ficar bronzeada e linda. Talvez isto aqui afinal seja bom.
Ela tem dois títulos de livros para ti. Um bocado grosseiros.
Cocó na Parede de Hoo Flung Dung (1) – significa «quem atirou bosta»
Mordidelas de Cão de R Stornaway (2) – “ «rabo rasgado»
Gosto muito de ti,
Hannah

De: Lily
Para: Hannah
Data: 16 de Junho
Assunto: Illo mistério da vidaio
Gostei de ter notícias tuas. Tudo mudou desde a noite passada. Mto feliz. Tenho novo amigo peludo chamado Mojo. É adorável e a mãe diz que ele pode dormir no meu quarto. Acho que o pai tem ciúmes. Foi tão querido hoje no canil. Percebi que não conhecia o meu pai tão bem como pensava. Está muito preocupado porque o Paul disse que telefonava quando chegasse a Goa, mas até agora nada. Espero que esteja bem. Acho que é mesmo dele e que telefonará quando se lembrar. Além disso, a Lucy telefonou e pediu desculpas por causa da Marlene. Talvez fique tudo bem, afinal, mas ninguém te substituirá nunca. Estou contente, no entanto, por teres encontrado essa rapariga nova, porque não quero que te sintas só. A Lucy disse que o irmão, o James, gostava de mim e pensava que era raro conhecer uma rapariga com metade do cérebro e com quem era agradável conversar. Não tenho a certeza de que isto seja bom, porque os rapazes costumam ver-se como «um deles» e eu gostaria de ter um namorado um dia. Talvez a Marlene tenha razão. Talvez eu precise de uma transformação. De qualquer forma, disse à mãe que queria mudar o meu visual e talvez tentar parecer um pouco mais rapariga. Ficou mto contente e prometeu-me um vestido novo.
O Sirius veio conhecer o Mojo. Já largou a Jessica. Estava mucho giro e foi muito querido com o Mojo.
Coisa engraçada, a vida, não é? No momento em que se pensa que está tudo estragado e que a vida não presta, tudo pode mudar.
Beijinhos,
Lily
Livros:
Ritmo da Noite de Mark Time(3) – [vocês já sabem o que se segue] Significa «Atenção à horas»
Más Quedas de Eileen Dover(4) – Significa «Inclinei-me»

De: Paul
Para: Lily
Data: 17 de Junho
Assunto: Goa
Olá, maninha
Goa é maravilhosa. Dormimos sob as estrelas e olhámos para o mar. Conhecemos algumas pessoas espantosas (sobretudo viajantes – ingleses, irlandeses e muitos holandeses) e os habitantes locais são muito simpáticos. Comprei um cristal espantoso e, cada vez que lhe pego, é como se enormes raios de luz pulsassem através da minha cabeça pelas têmporas, chacras da testa e do alto da cabeça, mas faz dores de cabeça à Saskia. Tenho tido sonhos estranhamente lúcidos nos últimos tempos e tenho-me sentido óptimo com este quartzo. Goza a vida.
Paul
P.S.: Por favor, diz aos pais que estou bem. Tentei telefonar, mas perdi a carteira pouco antes de chegar. Porém, consegui arranjar emprego num bar. Por isso, tudo bem. Por favor, pede à mãe que me mande alguma massa. Diz-lhe que lhe pago, prometo, prometo. Não contes ao pai. A Saskia apanhou umas mordidelas de insectos terríveis. Por favor, pede à mãe que mande mais daquelas coisas homeopáticas – arnica e apisina, citronela e óleo de alfazema.

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