A Sério



A Sério


- Fica à vontade – disse a Lucy, atirando o saco para o chão e abrindo o frigorífico.
Puxei uma cadeira da extremidade da mesa de pinho que ocupava metade da cozinho. Antes de me poder sentar, fui abordada por um Labrador fulvo que surgiu de baixo da mesa. Pôs-me as patas no peito e começou a lamber-me a cara com grande entusiasmo.
- Para baixo, Jerry – intimou a Lucy enquanto outro cão aparecia junto dele e se juntava ao jogo «vamos lavar a cara da convidada».
- Quantos tens? – perguntei, limpando a cara com a manga.
- Dois – respondeu a Lucy, abrindo as portas envidraçadas. – Ben! Jerry! – gritou enquanto corria para o jardim. Os cães saltaram e correram atrás dela com as caudas para o jardim. Os cães saltaram e correram atrás dela com as caudas a abanar. Uma vez os cães lá fora, a Lucy voltou a entrar e fechou a porta. Os dois cães olharam para dentro pelo vidro com ar estupefacto como se dissessem «esse truque foi mesmo sujo».
- Não me incomodaram – disse eu. – Gosto de cães.
- Também eu. São os melhores amigos, tal como a Iz e a Marlene, mas elas às vezes são demais – disse a Lucy, acrescentando depois um sorriso: - e os cães também.
Mostrou dois pacotes de sumo. – Arando ou maçã?
- Arado, por favor – respondi, instalando-me na cadeira. Gostei imediatamente da casa da Lucy. Parecia o tipo de lugar onde se podia relaxar. «Com vida», como diria a minha mãe. Todas as superfícies estavam cheias de livros, jornais e revistas, as paredes tinham quadros e desenhos e havia um velho e belo aparador encostado a uma parede com peças coloridas de louça desirmanada.
- Olá – cumprimentei o rapaz que estava sentado na outra extremidade da mesa a ler o último romance de John Irving.
- Hã – respondeu. Ou, pelo menos, foi o que me pareceu.
- James, esta é a Lily. Lily, este é o meu sedutor irmão.
O James mal ergue os olhos. Limitou-se a fazer uma careta ao que a irmã dissera.
- Oh, olá, Lily – arengou a Lucy. – Sou o James. Tão encantado por conhecer-te. Era capaz de olhar para ti, mas, afinal, és amiga da minha irmã mais nova, portanto para quê dar-me a esse trabalho? És demasiado nova para mim e, provavelmente, estúpida. Nada que tenhas a dizer terá o menor interesse para mim. Sou-te superior em todos os aspectos e tudo o que eu disser, não, pensar, passar-te-á ao lado.
A boca de James contorceu-se. Quase se riu.
- Esse livro é bom – comentei, apontando para o que ele estava a ler. – Li todos os livros dele, mas aquele de que gostei mais foi O Mundo Segundo Garp.
Então, ele olhou mesmo para mim. Um olhar estranho como se estivesse a observar qualquer coisa desagradável que um gato tivesse trazido. Encontrei o seu olhar e tentei parecer amigável.
- És nova, não és? – perguntou ele.
- ó meu Deus, ele fala! – exclamou Lucy, pondo um copo de sumo ao meu lado. – Desculpa o sumo. É biológico, mas sabe bem quando nos habituamos. Os meus pais são ambos maníacos da saúde, por isso…
- Temos de sair de casa para manter os nossos níveis de toxinas altos – observou o James.
- Em resposta à tua pergunta, não, não sou nova – respondi. – Sou nova aqui, acho eu. Mas tenho estado na mesma turma da Lucy desde que entrámos para o 5º ano.
- A Lily é um crânio como tu – elogiou-me a Lucy. – Vai concorrer a editora da revista da nossa escola.
- A sério? – disse o James, não parecendo nada impressionado.
Um crânio? Era mesmo assim que as pessoas me viam? Que maçador!
Ainda piorou.
- Também é campeã de braço-de-ferro – continuo a Lucy, sem reparar que eu estava a contorcer no meu lugar. Naaa. Obrigada pela apresentação, Lucy, pensei. Tipo, olá, sou a Lily Evans, crânio com músculos. Isso é sexy? Nem pensar.
O James pousou o livro e fez o que todos os rapazes fazem quando se menciona o meu talento no braço-de-ferro.
Naquele momento, a porta das traseiras abriu-se e outro rapaz entrou a correr, atirando o saco para cima da mesa. Louro como a Lucy, parecia mais novo que o James, talvez quinze anos, enquanto o James parecia andar no 11º ano.
- Excelente – disse o rapaz, sentando-se ao meu lado. – Braço-de-ferro. Vou ganhar.
- Lily, é o meu outro irmão, Lal – apresentou-nos a Lucy.
Acenámos um ao outro enquanto o James e eu juntávamos as mãos e assentávamos os cotovelos. O James tentou testar a minha força antes de começarmos. Deixei a minha mão ficar mole na sua para que pensasse que eu era fraca. Aquilo ia ser fácil.
- Prontos, atenção, PARTIDA – comandou o Lal.
Acabou tudo em dois segundos.
- Eu não estava preparado – objectou o James enquanto o seu braço tombava sobre a mesa. – Disseste PARTIDA cedo demais.
- Desculpas – disse o Lal, empurrando o James enquanto o seu braço tombava sobre a mesa. – És um fracalhote. Bom, agora eu.
Juntámos as mãos e, desta vez, o James deu o sinal.
- Prontos, atenção, PARTIDA.
O Lal ofereceu mais resistência. Dez segundos.
- Ena! Para uma rapariga, és bastante boa. Fazes mais alguma coisa? – perguntou ele, pegando-me na mão e, desta vez, afagando-a e olhando para a minha boca com o que posso descrever como desejo.
A Lucy bateu-lhe na parte de trás da cabeçça. – Não ligues, Lily. Lal julga-se um Casanova.
O Lal largou-me a mão e o James fez um sorriso afectado. – Calculo que não consigas arranjar computadores tão bem como fazes braço-de-ferro, pois não?
- Talvez… – respondi.

O resto da tarde correu optimamente.
Arranjei o computador do James sem problemas. Era igual ao meu, com o mesmo sistema operativo. Ficou muito impressionado quando pressionei algumas teclas e, voilà, funcionou. Depois disso, abandonou o seu ar de superior e começámos a falar sobre livros. As prateleiras da sua metade do quarto estavam recheadas deles.
- Então, qual é o teu autor favorito? – perguntou.
- Meu Deus, são tantos. Posso dizer três?
Ele assentiu.
- Bem, sei que são infantis, mas ainda gosto dos livros sobre Nárnia, do C.S. Lewis.
- Sim. São fixes – concordou.
- E gosto do Bill Bryson.
- Sim – apoiou James, apontando para a sua prateleira. – Tenho todos os livros dele.
- E adorei Alias Grace, da Margaret Atwood.
- Como está o computador? – perguntou a Lucy do corredor.
- Arranjado – respondeu o James.
- Então, pára de chatear a Lily. Ela é minha amiga – frisou a Lucy, empurrando a porta. – Vem ver o meu quarto.
Levantei-me para a seguir, sentindo-me bastante orgulhosa. Chamara-me sua amiga. Esperava que fosse. E o James e o Lal também. Eram todos realmente acessíveis e, por uma vez, não ficara de língua presa ao encontrar rapazes.
- Ena! – exclamei quando a Lucy abriu a porta do seu quarto. – Parece o quarto de uma princesa. Uma princesa indiana.
- Obrigada – agradeceu a Lucy, parecendo contente. – A mãe e eu fizemos isto o ano passado. O tecido das cortinas é de um sari. Arranjei-o no East End.
Numa das paredes viam-se recortes de revistas. Não os habituais grupos por e actores – não reconheci ninguém.
- Quem são todos estes?
- Estilistas. Gaultier, Armani, Stella McCartney. Quero tirar Design quando acabar a escola.
- Bem, já consigo ver que tens bom olho para a cor, Lucy. Este conjunto azul, lilás e prateado está lindo. Gostava que fosses decorar o meu quarto. Está tão desengraçado. Acho que a tinta que a mãe utilizou se chamava Morte por Magnólia.
- Vou mostrar-te algumas roupas que fiz – anunciou Lucy, abrindo o guarda-roupa e tirando um conjunto de saias e tops.
Pôs alguns à sua frente e pareciam óptimos, até a mim, que não percebo muito de roupas.
- talvez pudesses fazer um artigo sobre moda para a minha revista. Tipo o que está na moda para o Verão-
- Uma espécie de cinco dicas?
- Sim. Para um Verão excitante – concordei, rindo.
- Adorava – disse a Lucy. – E vais mudar o nome da revista? Freemont News parece tããão maçador.
- é isso mesmo o que penso. Eu ia mudá-lo. Que achas se lhe chamar A Sério.
- Bestial – apoiou a Lucy -, porque é exactamente o que não é neste momento e é exactamente o que todos querem. Vais ser tão boa nisto, Lily. Já posso garantir que vais ganhar.
Encolhi os ombros. – Vou tentar. Mas fiquei espantada ao ver quantas se decidiram a tentar depois da palestra do Sam.
- Eu sei – anuiu a Lucy. – Incluindo a horrível Wendy Roberts, embora tivesse ficado mega-irritada por o Sam não gostar da sua resposta. Vi a cara dela lá trás. Estava lívida de cólera. E ainda mais quando ele adorou a tua resposta.
- Hoje, ainda está mais furiosa comigo. Pediu-me emprestado o trabalho de casa de Matemática e tinha-o quase todo errado. Não tenho culpa de que seja a disciplina em que sou mais fraca.
- É bem feito – disse a Lucy enquanto a campainha da porta tocava lá em baixo. – não te preocupes, um dos rapazes vai atender. Provavelmente é a Marlene, disse que passava por cá.
E claro que a Marlene apareceu passados alguns momentos.
- Olá – saudou-nos, sorrindo e deixando-se cair na cama. Pareceu ligeiramente surpreendida por me ver ali, mas não demasiado incomodada. Toda a tarde estava a correr muito bem. Talvez eu pudesse ser amiga dela também.
- Estávamos a falar da revista – informou a Lucy.
- Fixe – apoiou a Nesta. – Então, vais concorrer?
Assenti. – e a Lucy concordou em fazer um artigo sobre moda.
- Excelente! – exclamou a Nesta. – E digo-te aquilo de que os leitores gostam acima de tudo. Uma transformação. Sabes, o tipo de coisa antes e depois.
- Boa ideia – aplaudiu a Lucy.
A Marlene pôs-se a olhar fixamente para mim. – E sabes quem deveríamos transformar?
Abanei a cabeça.
- Tu, é claro. Podias ser espectacular se quisesses.
A Lucy pareceu chocada. – Marlene! A Lily é espectacular. Com franqueza, tu e a tua bocarra. Não pensas antes de a abrir, pois não?
- O que é? O que é? – indagou a Marlene, parecendo agitada. – não queria dizer nada… apenas queria dizer…
Tentei sorrir, mas queria morrer. Ela achava que eu era horrível. Eu sabia que não usava a última moda, mas não era preciso insistir no assunto. Levantei-me para partir.
- oh, não te vás embora, Lily – pediu a Lucy.
Olhei para o relógio e dirigi-me para a porta. – tenho karaté às sete e é a última lição antes das ferias do Verão, por isso não posso faltar. A sério, realmente, está tudo bem – esforcei-me por parecer alegre, mas a Lucy não se mostrou convencida.
- Lily, espero que eu não… - começou a Marlene. – oh, que diabo! Quero dizer… estava só a tentar dizer, não acho que tu…
- Marlene, cala-te! – ordenou a Lucy, dando-me o braço. – Vamos, eu acompanho-te.
Quando chegámos à porta da frente, a Lucy fez-me prometer que voltaria. – Tens a certeza de que estás bem? – perguntou.
Assenti. Queria ir-me embora. E tinha mesmo karaté nessa noite, embora já não estivesse com muita vontade. Queria mesmo ir para casa e falar com a Hannah por e-mail.
Olhei para trás para a casa da Lucy depois de ela fechar a porta da frente. Nem pensar em voltar lá outra vez para a Marlene salientar como sou horrível. Para ela, está tudo bem. Ficaria espectacular mesmo com tecido de forro.

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De: Lily
Para: Hannah
Data: 15 de Junho
Assunto: Melhores amigas

Para Hannah
Estava tão enganada ao pensar que podia ser amiga da Lucy. Nem num milhão de anos. Não enquanto ela for amiga da Marlene McKinnon. Nem acreditas no que ela acabou de dizer… Que eu precisava de uma transformação. Por isso, todas na escola têm pena de mim. E pensam que sou uma marrona. E feia. Tudo aqui é horrível.
Telefonei ao Sirius a perguntar se ele conseguia descobrir alguma coisa que eu pudesse fazer para melhorar o meu visual. Ele riu-se e disse «podias usar azul mais vezes, fica a condizer com as tuas veias». Pensou que tinha graça. Disse-lhe que estava perturbada e que precisava de que me animassem e ele disse que me telefonaria depois de ver a série Friends. Ainda não telefonou.
Tenho mooonnnntes de saudades tuas. Escrevo-te em breve.
Lily

De: Lily
Para: Hannah
Data: 15 de Junho
Assunto: Onde estás?

Hannah! Onde estás?
Nem o Sirius me telefonou e ele prometeu.
E o Paul deve estar do outro lado do mundo neste momento. Provavelmente nalguma ilha espectacular como A Praia.
Sinto-me tão só.
Beijinhos, Lily
Oh, conheci hoje os irmãos da Lucy. São amorosos e o mais velho, James, é simpático quando larga o seu ar superior. Deu-me alguns títulos de livros bestiais e sugeriu que eu os pusesse nas costas da revista da escola como uma espécie de página divertida.
Bolhas no Banho de Ivor Windybottom (1)
Um Passo Dado a Tempo de Justin Case (2)
Remédios para as Dores no Peito de I Coffedalot (3)
Remédios para as Irritações de Pele de Ivan Offeitch (4)
ONDE ESTÁS? Agora, tenho de ir para a cama porque é muito tarde.

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