Capitulo 4



CAPÍTULO IV



Hermione acordou lentamente e virou-se na cama, abrindo os olhos ao sentir a dor provocada pelo contato do travesseiro com o rosto ferido.
Deitada novamente de costas, lembrou como chegara ali. Ela e Harry haviam estado rindo. Riram muito, provavelmente numa reação exagerada. E de repente, ela começara a chorar.
Muito. Tudo havia acontecido em excesso. Estivera tensa e perturbada desde que Sam revelara tudo sobre a infidelidade de sua mãe, sobre como ele agira corretamente e a criara, mesmo não sendo seu verdadeiro pai. Em seguida, ele cobrara o pagamento do que julgava ser uma dívida de gratidão.
Havia chorado ao ouvir aquela terrível história, mas não o suficiente. A exigência de Sam de que se casasse com Victor Krum e salvasse a Granger Inc. da falência secara suas lágrimas, lançando-a num estado de torpor que a paralisara por muitos dias.
Em cada um desses dias, Sam a procurara para dizer que o tempo era limitado, que ela tinha de tomar uma decisão antes que todos estivessem na rua, falidos, destituídos de tudo que ele construíra com trabalho e esforço. O futuro de Annette dependia dela. A tranquilidade de sua velhice dependia dela. E Hermione devia isso a eles.
Enquanto tomava uma ducha no banheiro da suíte, ela continuou refletindo sobre a situação. Desde quando começara a questionar a dívida de gratidão? Nos momentos de angústia, quando lembrara a diferença de tratamento que sempre existira? Sam nunca se cansara de exaltar a beleza de Annette, seu comportamento refinado, sua obediência, o carinho com que tratava o pai e a atenção que dispensava a ele, mesmo depois do casamento.
Mas Hermione havia sido sempre uma grande decepção. Subira em árvores, esfolara os joelhos, colecionara insetos que levara para dentro de casa... E nunca sequer tentara parecer bonita. Jamais havia ajudado Annette em seus deveres de anfitriã nos intermináveis jantares de negócios oferecidos por Sam Granger. Não que alguma vez houvesse sido convidada a participar dessas ocasiões. Ou melhor, recebera um único convite, mas passara a noite toda discutindo proteção ambiental com um executivo que cortava todas as árvores que encontrava a fim de ampliar sua fábrica.
Sam a acusara de ser falante demais para seu próprio bem. Pensando bem, ele tinha razão, considerando que Hermione havia sido apenas uma menina de catorze anos quando desafiara o poderoso empresário. Fora mandada para o colégio interno uma semana depois do incidente, e só voltava para casa nas férias e em alguns finais de semana. O afastamento servira para fazê-la entender que o pai não suportava sua presença.
Annette a tratava como o patinho feio, quando a notava, e Sam nunca estava em casa quando ela ia visitá-los.
Então Harry surgira no panorama geral das coisas. Aos dezessete anos, Hermione passara a ser tratada com gentileza e afeto por alguém, quase um desconhecido.
Como, durante aquela terrível semana que se seguira à dolorosa revelação e ao anúncio dos planos de Sam para seu futuro, passara a pensar em Harry e em como ele demonstrara gostar dela. E que importância tinha isso? Tudo que importava era que seguira o impulso de ir procurá-lo, e agora estava prestes a se casar com Harry Potter.
— Pelas razões erradas — disse a si mesma enquanto se enxugava. — E agora que abriu sua grande boca e contou o segredo a Annette, tudo pode ter terminado.
Pensar na irmã levou Hermione para a frente do espelho. Séria, ela examinou o hematoma deixado pela agressão. O pior havia desaparecido. Restava apenas um leve inchaço e um certo desconforto, além de um corte superficial perto do olho. A mulher tinha força nos punhos! Mas Hermione sabia que também havia deixado marcas no rosto da irmã.
Devia orgulhar-se por tê-la enfrentado daquela maneira, e estaria orgulhosa, não fosse pela certeza de que não devia ter se deixado envolver naquela discussão. Mas Annette invadira seu quarto para provocá-la e ofendê-la, e finalmente se dispusera a lutar com a única arma que possuía: Harry.
E Harry havia rido. A princípio ficara aborrecido, mas depois rira muito. Os dois riram até o momento em que ela começara a chorar. Então Harry a tomara nos braços numa oferta silenciosa de consolo. Hermione chorara pela mãe, pelo pai que jamais conhecera, pela infância perdida, pela confusão em que estava metida, por... Bem, por tudo.
E Harry a confortara com seu abraço caloroso, até levá-la para aquele quarto e deixá-la sozinha enquanto ia buscar suas malas no carro. Tentara dizer que iria para um hotel, mas não encontrara forças para protestar. Minutos depois ele deixara sua mala em um canto do quarto, beijara seu rosto e despedira-se desejando uma boa noite de sono, prometendo que tudo pareceria muito melhor ao amanhecer.
E ali estava ela. Dormindo sob o teto de Harry, alienada da família... O dia havia amanhecido. Hermione havia chorado e dormido, mas ainda não conseguia imaginar o que viria em seguida.
Só sabia duas coisas. A primeira era que a paixão adolescente por Harry jamais havia terminado, mas se transformara em amor. A segunda era que não podia se casar com ele.


Harry começava a preparar o bacon quando ouviu o chuveiro no segundo andar. Quando Hermione entrou na cozinha, ele punha os pratos com ovos mexidos sobre a mesa.
Esperava que a feliz coincidência fosse uma indicação de como o restante do dia seria perfeito, mas um olhar para a expressão de Hermione foi suficiente para saber que havia sido otimista demais.
— Dormiu bem? — ele perguntou, servindo o café quente em duas xícaras.
— Sim, obrigada — Hermione respondeu depois de sentar-se. — E você?
— Muito bem — mentiu. Ficara no escritório até as três, imaginando qual seria seu castigo se cedesse ao impulso de ir procurá-la no quarto de hóspedes para oferecer mais que conforto.
Mas havia resistido. Era um cavalheiro. Fora bem educado, e sabia que Hermione deduziria que ele era apenas mais uma pessoa tentando tirar proveito dela.
Mas havia outro problema, e ela já devia ter pensado no assunto. Sabia que Hermione estaria abordando a questão antes que chegassem ao fim da refeição.
Estava acordado desde as seis da manhã, pensando em um jeito de dissuadi-la de suas conclusões e convencê-la de que o casamento ainda era uma opção viável.
— Você é um excelente cozinheiro, Harry. Nunca pude entrar na cozinha, mas participei de algumas aulas de culinária na escola. Esperava aprender a cozinhar, mas eles só ensinavam como devíamos proceder para escolher fornecedores de qualidade e bons cozinheiros. Colégios particulares como aquele insistem em viver num mundo próprio, sabe? Mas quando morei em um apartamento durante os anos de universidade, aprendi a preparar uma deliciosa pizza de microondas. De qualquer maneira, ovos mexidos com bacon e cogumelos estão muito além da minha capacidade.
— Um homem solteiro precisa sobreviver — Harry explicou, levando o prato vazio para a pia. — Só temos duas opções: comida congelada, ou aprender a cozinhar. Achei melhor aprender. Minha mãe sugeriu que eu contratasse uma empregada, mas como só fico em casa para o café da manhã, achei que seria tolice.
Hermione respirou fundo, e Harry soube que o momento tão temido se aproximava.
— Harry... — ela começou.
— Espere. Sei que quer discutir algo sério, mas... Bem, acho melhor irmos ao escritório. — Ele serviu mais café nas duas xícaras e levou-as ao aposento onde mantinha documentos e papéis importantes. — Abra aquela gaveta na mesa lateral — disse. — Sim, essa mesmo. Agora pegue aquele estojo de veludo azul. Abra-o, Hermione.
— Abri-lo? Por quê?
— Por favor, sem perguntas.
Hermione abriu lentamente a caixa e deixou escapar uma exclamação de espanto.
— Oh...
— E lindo, não?
— É... verdadeiro? — ela gaguejou, tocando a pedra principal no centro da gargantilha de safiras e diamantes. — Por que deixa uma jóia tão valiosa em uma gaveta? Não teme que alguém a encontre e roube?
— Francamente? Não. Quer ouvir a história desse colar?
Segurando a caixa, ela se ajeitou melhor no sofá, indicando que estava pronta para ouvi-lo.
Agora que conseguira cativar sua intenção e desviá-la do propósito de cancelar o casamento, Harry compreendeu que podia estar cavando um buraco ainda maior sob os próprios pés. Falar sobre a esposa ideal não era exatamente uma escolha sensata para a pauta daquela manhã. Mas era tarde demais para recuar, e por isso ele relatou a antiga lenda de família.
— Você pôs esta jóia no pescoço de Annette? — Hermione perguntou depois de ouvi-lo. — As pedras brilharam?
— Eu nunca pensei em experimentar o colar em Annette. Na verdade, acho que me havia esquecido dele até ontem, quando conversei com minha avó. Foi então que o retirei do cofre.
— Por que sua avó falou sobre o colar? Você não...
— Não, eu não disse a ela que ia me casar, mas cheguei bem perto disso. O suficiente para que ela mencionasse a jóia e sua história. Mas minha avó está em Paris, e por isso consegui resguardar o segredo. Portanto, se está se sentindo culpada por ter deixado escapar...
— Eu não deixei escapar. Eu atirei a verdade no rosto de Annette. Estraguei tudo. Eliminei o fator surpresa.
— E daí? Nada mudou.
— Você sabe que não é verdade, Harry. — Hermione fechou o estojo e deixou-o sobre a mesa a seu lado. — Agora Annette já sabe, e Sam também saberá de tudo ainda hoje. Ele terá tempo para preparar-se antes que seus representantes possam fazer a oferta, e um homem prevenido...
— No caso de Sam, ter tempo para preparar-se não fará nenhuma diferença. Farei a oferta, conforme planejei, e ele não poderá recusá-la.
— Escute, quando fui ao seu escritório na sexta-feira, estava confusa e ainda acreditava ser responsável pela salvação de Sam. Julgava ter o dever de resgatá-lo do problema que ele mesmo criou. Estava magoada e ressentida, e despejei todos os meus problemas em suas costas.
— Não estou reclamando.
— É verdade, não está. Porque, como me contou, Sam e Annette haviam tentado com você o mesmo plano que traçaram para Victor Krum. Em resumo, minha situação foi a melhor oportunidade de vingança que você teve. Através dela, pode assumir o controle da companhia de Sam e ainda apoderar-se da única coisa que ele ainda possui: poder de barganha. Você foi honesto quanto ao que pretende com o casamento, mas nada disso é necessário. Nós dois sabemos disso.
— Por que saiu da casa de Sam e rompeu relações com a família? Por quê, depois do confronto com Annette, decidiu dar as costas para os Granger e seus problemas?
— Digamos que Annette me fez ouvir a voz da razão. Não devo nada a eles, Harry, e isso me faz abordar o ponto principal da questão. Você também não me deve nada. Ainda pode ter sua vingança, porque agora tem conhecimento do desespero de Sam, da necessidade que ele tem de um grande investidor. Isto é, supondo que Victor Krum saia de cena amanhã, quando todos compreenderem que a ingrata Hermione os abandonou.— Ela se levantou. — Em resumo, Harry, sou muito grata por tudo que fez por mim e por sua oferta.
— Mas não precisa mais de mim, e por isso está indo embora. — Ele também se levantou. — E quanto à licença de casamento?
— Pode guardá-la como uma lembrança do dia em que quase cometeu um grande erro.
— Não tem graça nenhuma, Hermione. Para onde pretende ir?
— Para onde? Não sei. Recebi uma pequena herança de minha mãe, um fundo de pensão ao qual Sam não teve acesso. Posso sobreviver com esse dinheiro por algum tempo, e recebi uma boa educação. Encontrarei um emprego.
— Fique aqui enquanto procura. Por favor. A casa é grande, e não quero que se exponha ao risco de ser encontrada por Sam. Pelo menos por enquanto. Você sabe que minha oferta é razoável e lógica.
Ela abaixou a cabeça por um instante e, ao encará-lo, assentiu em silêncio.
— Perfeito! — Harry respondeu entusiasmado.
— Por uma semana. Duas, no máximo. Nesse tempo, Sam verá a razão, e você concretizará sua vingança. E eu encontrarei um emprego e um apartamento em Prosperino.
— Como quiser — Harry concordou, embora já estivesse pensando em novos planos.


Na quinta-feira à noite, Hermione entrou em casa pela porta da cozinha e jogou a pasta de couro sobre a mesa. Depois, sorrindo da bobagem que planejava dizer, entoou:
— Querido, cheguei!
Dez segundos depois, Harry entrou na cozinha usando roupas casuais e segurando o jornal vespertino.
— Está muito alegre, Hermione — ele disse, abrindo o refrigerador para pegar dois refrigerantes. — O dia foi melhor que o de ontem?
— Melhor que o de ontem e de todos os outros da última semana. Para ser mais exata, está olhando para uma mulher empregada.
Harry interrompeu o ato de abrir sua lata de refrigerante, assumindo uma postura tensa que durou alguns segundos. Depois ele ofereceu um sorriso radiante. Radiante demais, talvez? Ou estava vendo coisas onde elas não existiam? Esperando demais de um simples sorriso?
— Hermione, que maravilha! — Ele deixou o refrigerante sobre a mesa e aproximou-se para abraçá-la. — Que grande notícia!
Hermione tentou ganhar tempo e recuperar-se enquanto tirava a jaqueta e a pendurava nas costas de uma cadeira.
— É verdade — concordou entusiasmada. — Sabia que hoje eu faria a segunda entrevista com Boggs, não? Pois eles me adoraram! Começarei a trabalhar dentro de duas semanas, quando eles inaugurarem as novas instalações.
— Hermione Granger vai participar da nobre luta pela administração do desperdício dos recursos hidráulicos! Acha que terá energia para enfrentar todo o glamour desse emprego?
— Ora! — Ela fez uma careta. — Trata-se de um emprego importante em uma indústria importante. Você sabe disso. Ou quer que eu explique novamente como o meio ambiente vem sendo prejudicado, como são escassos os mananciais de águas despoluídas e outros detalhes pertinentes ao assunto?
— Não, obrigado. Por outro lado, talvez queira que escreva um ou dois artigos para mim. — Harry inclinou-se para beijá-la no rosto.
Ele a beijava no rosto com frequência. Também a tocava muito, mas nunca de forma íntima ou ameaçadora. Viviam juntos há quase duas semanas, morando na mesma casa, fazendo as refeições juntos, assistindo à tevê, disputando partidas de xadrez e conversando até tarde no escritório.
Hermione sentia-se mais confortável com Harry do que com qualquer outra pessoa que houvesse conhecido em toda sua vida. E no entanto, todas as noites, quando iam dormir, subiam a escada juntos e ele a beijava no rosto desejando boa-noite e cada um ia para seu quarto. Hermione sentia-se infeliz como nunca imaginara ser possível.
Infeliz. Insatisfeita. Droga... frustrada!
Mais de uma vez, depois de certificar-se de que Harry dormia, voltara ao escritório na ponta dos pés para apreciar o colar de diamantes e safiras. Jamais o removera do estojo, A tentação de experimentá-lo era imensa, mas tinha medo de ceder. Temia colocá-lo no pescoço e ver as pedras perderem o brilho. E agora era hora de partir.
— Harry? Acha que devemos fazer? Sair para jantar e celebrar? Eu pago.
— Você conseguiu um novo emprego. Eu pago — ele respondeu, já a caminho do corredor. De repente parou e virou-se para encará-la. — Oh, ia me esquecendo. A transação foi efetivada hoje de manhã. Sou o novo sócio majoritário da Granger Inc.
— Você conseguiu... — Hermione sentou-se, temendo que os joelhos trémulos não pudessem sustentá-la. Haviam feito muitas coisas nos últimos dias, mas nunca mencionaram Sam, Annette ou a intenção de Harry com relação à empresa dos Granger. — Encontrou com ele? Sam perguntou por mim?
Harry balançou a cabeça.
— Sinto muito, Hermione, mas ele não perguntou por você.
— Ah... — E por que doía tanto saber disso? Devia ser uma sombra do passado. Vivera tanto tempo na esperança de agradar Sam, ansiando por sua atenção... — Bem, acho que não devia ter perguntado. E provável que ele nem saiba que estou aqui.
— Ele sabe, Hermione. — Harry puxou outra cadeira e sentou-se, segurando as mãos dela. — Tudo bem, vou contar tudo que sei, mas depois vai ter de superar e seguir em frente. Você tem uma vida nova, um novo emprego e o mundo todo a sua frente. Precisa superar.
— Eu sei. Conte-me tudo.
— Na verdade, não há muito a dizer. Foi um momento de assinatura de papéis e orientações legais por parte dos advogados. Houve um instante de tensão... uma explosão, para ser mais exato, quando Sam compreendeu que a companhia, agora reestruturada, passaria a ser chamada de Potter-Granger Inc. Não foi uma cena muito agradável, mas um homem tem de agarrar as chances que a vida oferece. Foi o que fiz.
— Não gosta dele, não é? Quanto tempo vai levar até comprar toda a empresa e expulsá-lo? É esse o plano, não é? Quer tirar Sam e o nome Granger do seu novo negócio.
— Acha que sou vingativo?
— Não. Esperou seis anos, um período longo e amargo, e depois o atingiu com a arma mais pesada que tinha. Sam e Annette o magoaram muito, e agora você retribuiu todo o sofrimento, com a diferença de que eles ainda têm o dinheiro. É o orgulho deles que deseja destruir, porque eles atacaram o seu.
— Não, Hermione. Está enganada. Não comprei parte da empresa de Sam por causa do que aconteceu há seis anos. Admito que dei os primeiros passos impelido pelo ressentimento, pelas lembranças do passado, mas só continuei nesse caminho porque eles a fizeram chorar. Fiz tudo isso por causa de sua infância, por como eles a trataram, por como tentaram usá-la para conseguir o dinheiro de Victor Krum. Fiz o que fiz, Hermione, porque Sam e Annette mereceram.
Ela pressionou a mão contra a boca e balançou a cabeça enquanto o encarava.
— Não — murmurou finalmente, abaixando a mão. — Oh, Harry, não! Como foi capaz? Por mim? Não queria nada disso por mim. Não pedi nada disso. Ou melhor, talvez tenha desejado... No fundo, acho que queria ver Sam sofrendo. Não quero mais falar sobre esse assunto.
Ela se levantou, disposta a sair da cozinha, mas as palavras de Harry a detiveram:
— Não quer saber o que Sam disse sobre você? Porque ele disse algumas coisas. E Annette também estava lá, pronta para emitir sua opinião.
— Annette estava lá? Por quê?
Sorrindo, ele se levantou para caminhar na direção dela.
— Não tenho certeza, e não quero parecer presunçoso, mas creio que ela estava lá para tentar seduzir-me.
— E o plano funcionou? — A dor que a atingia como uma lâmina afiada era um eco do passado, uma resposta forte demais para ser sufocada em duas semanas. Annette sempre havia conseguido tudo que queria. E ela queria Harry.
— Digamos que sua irmã não entende a sutileza, mas ela vai acabar compreendendo minha posição.
— O que disse a ela?
Harry segurou-a pelos braços.
— Disse que estava honrado com tanta atenção, mas que meu interesse já havia sido despertado por outra pessoa.
— Oh... Bem, isso deve ter servido para detê-la.
— Ela quis saber o nome da pessoa.
— Quis?! — Hermione sorriu nervosa. — Imagino que seja uma reação típica de Annette. E você disse a ela?
— Não. E não direi a ninguém enquanto não conversar com a mulher em questão. Quer conversar comigo, Hermione?
— Eu... eu... — O relógio do escritório anunciou seis horas, e ela recuou um passo e respirou fundo. — Não conseguiremos uma reserva se não nos apressarmos. Você telefona para o restaurante, enquanto eu vou mudar de roupa.
— Como quiser. E vista algo bem casual, porque de repente sinto uma vontade incontrolável de pedir uma pizza. A menos que queira sair...
— Não... Quero dizer, adoro pizza. Vou tomar um banho e... Sim, pizza é uma boa ideia.
Hermione alcançou a escada e teve de parar para recuperar o fôlego.


Havia ido longe demais. E muito depressa.
Duas semanas. Ela vivia sob seu teto há duas semanas, período em que haviam revivido a velha amizade, aprendido muitas coisas sobre o outro e deixado de dizer outras tantas.
Nessas duas semanas descobrira que sentia uma forte atração por Hermione. E descobrira que atração e amor eram coisas diferentes. Porque agora a amava. Nesse período realizara um antigo plano de vingança, não por si mesmo, mas porque Sam Granger havia magoado Hermione, e esmagaria qualquer um que a fizesse sofrer.
Mas agora estava exagerando. Apressando os fatos. Hermione havia acabado de sair do casulo e começava a abrir as asas. Livrara-se de uma casa onde a vida era insuportável, encontrara seu primeiro emprego e estava pronta para começar a viver de verdade em um mundo novo e repleto de promessas.
Acreditava mesmo que ela desejaria viver ali com ele? Casar-se com ele?
Gratidão. Era o que Hermione sentia por ele. Gratidão, e talvez um certo temor, já que havia demonstrado ser mais que o velho Harry, o homem que se tornara amigo da adolescente solitária. Agora também era Harry Potter, o empresário. Às vezes um empresário cruel, implacável.
Com o tempo, ela compreenderia que, quaisquer que houvessem sido seus motivos, fizera o que era melhor para a Granger Inc. Mil e quinhentos empregados continuariam em seus empregos. A companhia, agora com seu dinheiro e sua experiência, floresceria e cresceria. As pessoas com quem havia trabalhado durante oito meses há seis anos ainda estavam lá, e todos se mostraram satisfeitos e animados quando ele reunira parte da equipe no refeitório para anunciar as mudanças.
Sim, agira corretamente. Se fora motivado por razões justas... Bem, era um empresário, e aprendera a conviver com uma medida saudável de culpa. Mas... E Hermione? Seria capaz de conviver com tudo aquilo? Esperava que sim, que o tempo a ajudasse a compreender e aceitar os fatos.
Havia sido um golpe baixo contar a Hermione sobre Annette, mas Hermione tinha um bom coração, uma imensa capacidade de perdão, e era possível perceber que ela ainda sentia uma certa compaixão por Sam e pela irmã. Tentar restabelecer contato com um deles seria um engano, um erro tão grave quanto tentar domesticar um tubarão.
— O que não significa que ela quer que você administre sua vida agora — Harry disse a si mesmo ao ouvir a campainha e dirigir-se ao hall. — E nem você quer cuidar da vida de Hermione. Só quer fazer parte dela. Portanto, não complique a situação.
O rapaz da pizzaria partiu pouco depois, e Harry voltou ao escritório e deixou a pizza sobre a mesa de café, onde já havia posto pratos, talheres, guardanapos e uma salada rápida que comprava lavada e pronta no supermercado. A garrafa de vinho havia sido aberta, e ele deixara as taças no refrigerador. Depois de apagar a luz, Harry acendeu as velas que esperavam em seus castiçais.
Tudo pronto. Tivera tempo para ir ao quarto, arrumar uma pequena valise e telefonar reservando dois lugares em um vôo para Reno. Sentia-se esperançoso.
E o colar estava na gaveta, onde pretendia deixá-lo pelo menos até o décimo aniversário de casamento.
A única coisa que podia acontecer era descobrir que se enganara, que Hermione era grata por tudo que fizera o considerava um grande amigo, mas não o amava.
Ao ouvir os passos dela no corredor, Harry foi esperá-la na porta, nervoso como ura adolescente às vésperas do primeiro encontro.

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