Mary no penhasco



- Por favor! Me deixe trabalhar aqui!
O responsável pelo porto da pequena vila deu uma boa olhada na garota baixinha e determinada na sua frente, que só faltava se ajoelhar aos seus pés para que ele atendesse ao seu pedido, e zombou:
- Está falando sério, mocinha? Você não agüentaria nem dois dias! – e deu meia volta, tendo por encerrada aquela conversa.
- Eu estou falando sério! – Mary o seguiu e se colocou no caminho dele – Nunca falei tão sério na minha vida! Eu definitivamente quero ser uma pescadora! EU PRECISO DESSE EMPREGO, POR FAVOR!
Espantado com a insistência daquela garota de cidade grande, o responsável não soube mais como responder.


***


- ISSOOOO! CONSEGUI! – Mary vinha pulando contente pelo seu caminho de volta para casa, que ladeava a costa – Se eu me esforçar bastante agora no começo eles vão confiar em mim! Isso aí, Mary! Você consegue! Para quem sobreviveu sete anos em Hogwarts, pescar uns peixinhos não é nada!
Então ela parou diante de uma grande placa vermelha.
Desde que chegara, havia andando por vários lugares da vila, mas até então não se aproximara muito do porto, por ele sempre estar movimentado e por não ser um lugar convidativo para um passeio. Para se chegar do porto na praia onde estava morando, era preciso seguir uma estrada sem asfalto que chegava bem perto da costa do litoral. Segundo a placa de alerta, que ficava na entrada de um caminho estreito, quase encoberto pelo mato, aquele ponto era extremamente perigoso e somente pessoas autorizadas poderiam atravessar.
Mary pensava em como aquela placa estava bem colocada, já que o mato que crescia por lá não deixava que as pessoas vissem o risco que poderia ter a frente. A cerca alta de arame logo depois da placa também era algo muito bom, já que evitava que... Ela teve o fio de pensamento cortado ao ver que um senhor idoso passou calmamente por ela sem dar atenção para a placa.
Por um momento, Mary ficou um pouco desnorteada, mas logo pensou que se tratava de um dos moradores da vila. Porém, quando ele chegou na cerca de arame, retirou algo do casaco e, depois de um gesto rápido, o arame se contorceu e abriu uma passagem. Com isso, o queixo dela caiu: definitivamente aquele era um bruxo. Mas... o que ele estaria fazendo em um vilarejo de trouxas?
Depois que ele sumiu de vista, Mary balançou a cabeça e tentou se concentrar em sua própria vida. Tinha um emprego agora – mesmo que ainda não fosse algo certo – e ajudaria sua família a pagar as dividias para poderem viver de uma forma decente. Definitivamente não se importava mais com qualquer coisa relacionada com magia.
Mas, quando estava saindo, ela reparou que havia algo mais escrito na placa além do ‘Atenção! Perigo!’. Afastando o mato alto que atrapalhava a sua visão, ela leu: ‘Suicídios registrados nesse local desde 1738: 64’.
Sem pensar duas vezes, Mary correu para a abertura na cerca gritando:
- EI! SENHOR! ESPERA!


***


- PÁÁÁRA! –Mary berrou assim que parou derrapando perto da beira do penhasco, vendo o senhor, agarrado a uma maleta, tomando fôlego para acabar com a sua vida – NÃO FAÇA ISSO!
- NÃO CHEGUE PERTO! – gritou o senhor idoso em resposta, segurando firmemente a maleta e dando mais um passo a frente, ameaçando pular.
- Por favor, espera! Acalme-se, ok?! – disse Mary, tanto para ele quando para ela mesma – Não vamos fazer nada precipitado!
- VOCÊ NÃO TEM NADA A VER COMIGO! VAI EMBORA, SUA PIRRALHA TROUXA!
Diante do tom de desprezo que ele conseguiu usar, mesmo estando naquela situação, Mary ficou furiosa.
Lá estava ela, na beira de um penhasco, com um mar agitado, gelado e cheio de pedras logo a baixo, com o vento zunindo em suas orelhas, na maior boa vontade do mundo, tentando salvar uma vida, e era assim que lhe retribuíam?
- ME DEIXE! – ainda acrescentou ele.
Com uma careta zangada, Mary avançou decidida para onde ele estava e, com toda a sua altura, apontou o dedo para o rosto do velho enquanto dizia:
- CERTO! NÃO TENHO NADA A VER COM VOCÊ! MAS ESSA SUA ATITUDE ME FAZ PASSAR MAL!
O velho a encarou pestanejando e então murmurou sem entender:
- Quê?
- QUER PULAR?! ÓTIMO! VAI SER O FIM PARA VOCÊ! MAS E COMO EU VOU FICAR VENDO ISSO DE PERTO?! TEM NOÇÃO DE QUE VAI ARRUINAR A MINHA VIDA PARA SEMPRE?! – ela o agarrou pelo casaco e ele não reagiu, por estar paralisado diante daquela atitude agressiva – JÁ ESTOU SATURADA DE PROBLEMAS PARA TER QUE ACRESCENTAR O PESO DE PRESENCIAR O SEU SUÍCIDIO NA MINHA VIDA! QUER QUE UMA GAROTA COMO EU FIQUE ATORMENTADA PARA SEMRPE POR SUA CAUSA?!
- Nã-não. – balbuciou ele, se dando conta do ponto de vista dela.
Mary largou o casaco dele e cruzou os braços reclamando com ninguém em especial:
- E ainda por cima está bem vestido! Está na cara que pertence a um bom nível da sociedade mágica! Nunca vai entender os sentimentos de uma sangue-ruim que tem que ver a família comer algas todo o dia, dia após dia!
Mary estava tão indignada que não conseguiu falar mais nada, e permaneceu com os braços cruzados, bufando. Diante disso, o senhor começou a rir.
- Do que está rindo? – ela rosnou.
- Sua família é tão pobre assim, sangue-ruim?
- É sim! Me desculpe, mas a minha família é a mais pobre de toda a Inglaterra! – ela exagerou – Algo contra?
Agora a senhor começou a gargalhar, e finalmente se desprendeu da sua maleta e se moveu, chegando perto de Mary e batendo nas costas dela, como se a congratulasse. Com essa reação dele, tudo o que Mary pôde fazer foi dar um meio sorriso, pensando que, pelo menos, ele não parecia mais estar disposto a pular.


***


Conseguindo afastar o senhor de perto do penhasco, Mary o conduziu novamente para a placa, onde os dois sentaram à sombra dela na beira da estrada.
Mary achou que era uma boa idéia falar com ele e perguntar sobre o que havia acontecido. Quem sabe, com alguém ouvindo a sua história, ele avaliasse melhor a sua decisão e pensasse em algo mais sensato para resolver seu problema.
- O senhor é um criador de magias?! – exclamou Mary abobada, assim que o senhor começou a explicar o motivo de ter resolvido pular.
Ela já tinha ouvido falar sobre eles. Eram bruxos extremamente corajosos que se aventuravam em tentar inventar novas formas de magias com as varinhas. Essa profissão era tão perigosa e tão cheia de riscos, que muitos deles desistiam no meio do caminho. Aqueles que insistiam geralmente ficavam com alguma deformidade, não tinham uma vida muito saudável ou não chegavam a uma idade avançada.
O senhor sorriu para ele, como se estivesse lisonjeado com a surpresa dela, e disse:
- Meu nome é Adolf Monagham. Você já deve ter ouvido falar de mim.
- Desculpa. – pediu Mary sem graça – Mas não lembro de ter ouvido seu nome.
- Bom, – ele encolheu os ombros e deu um grande suspiro – realmente... Parece que só nos dão valor depois de mortos mesmo.
Mary deu um meio sorriso, pensando que talvez tivesse sido melhor mentir e falar que o conhecia.
- Conhece os Nissenson? – ele perguntou depois de procurar outro caminho para tentar explicar.
Mary quase se engasgou com a pergunta, mas achou melhor não dizer que conhecia pelo menos alguém dessa família:
- Aah, deles eu já ouvi falar, sim.
- Os Nissenson são conhecidos pelas poções. Quase todas as gerações da família têm um gênio em desenvolvimento de poções, e isso os tornou imensamente ricos e poderosos... Para eles é muito fácil ficarem famosos com o que inventam, já que poções podem ser testadas em plantas, animais, elfos ou trouxas distraídos que estavam passando por perto... Mas só há um meio de testar novas magias: o próprio executor... Por que eu escolhi justamente essa profissão? – perguntou ele, lendo os pensamentos da garota – É o que eu mais gosto de fazer desde pequeno: desvendar como a magia funciona. E tem uma em especial que sempre me interessou muito, por isso dediquei toda a minha vida a ela. Conhece as esferas para comunicação rápida que a família Doumajyd fabrica?
Mais uma vez Mary se atrapalhou, mas disse apenas:
- Aaah... sim.
- Eu sempre achei as esferas fantásticas! Mas elas têm vários defeitos. O maior deles é funcionar usando basicamente a magia pura do bruxo, que emana da sua mão ao segurá-la. Se a esfera pudesse ser usada diretamente com a magia canalizada e amplificada de uma varinha, ela poderia ser mais fantástica ainda, não acha?
Certamente seria, Mary pensou, mesmo não entendo muito do assunto.
- Eu estudei os instrumentos de comunicação trouxa, e vi que é possível usarmos algo parecido com as esferas, desde que tenhamos uma potência maior de magia. Sabe, como sangue-ruim, você deve conhecer. Aquelas caixas que transmitem imagens... – ele fez algumas mímicas, mas não encontrou a palavra.
- Televisões? – Mary ajudou.
- Isso! Isso mesmo! Então, venho tentando unir as esferas e as varinhas para criar algo que funcione assim. – ele abriu a sua maleta e retirou algo de dentro, enquanto continuava explicando – Eu fiz alguns projetos. Olhe. – ele mostrou vários pergaminhos, cada um deles com um desenho diferente muito parecido com uma televisão, repletos de cálculos em volta, que tentava definir uma melhor forma de trabalhar as esferas com as varinhas para a transmissão de imagens em tempo real – Eu também fiz alguns modelos, mas nenhum deles funcionaram por muito tempo, já que não são as esferas Doumajyd. Como não posso fazer isso sozinho, conversei com vários bruxos poderosos, tentando pedir apoio para poder continuar com os meus experimentos. Mas eles ou não acreditam que isso possa funcionar ou não se arriscam em um investimento desses, que depende totalmente do apoio da família Doumajyd... Ninguém me leva a sério o projeto no qual dediquei toda a minha vida. – acrescentou ele se lamentando. – O mundo é mesmo cheio de idiotas...
- Cheio de idiotas. – repetiu Mary, concordando.
- Isso mesmo! – ele se empolgou com a adesão dela a sua causa – Seria a magia do século, não seria?! Por isso, eu pensei em me jogar do penhasco. Assim, quem sabe eles me escutassem.
Mesmo depois de ouvir tudo isso, Mary ainda achava que aquilo não era a melhor maneira de ele resolver seus problemas. Não era muito melhor continuar vivendo sem ser reconhecido do que morrer para tentar ficar famoso?
- ...Você também não acredita em mim. – ele se lamentou ao ver a expressão de descrença dela.
- Não, não é isso. – Mary se apressou em corrigi-lo – Eu só acho que você acredita muito mais no que inventou do que em você mesmo.
- Como assim? – ele perguntou confuso.
- Como vai querer que os outros confiem em você se você mesmo não está confiando em si?... Sabe, meu pai não tem juízo, e nos colocou em um grande apuro. Há muitas coisas que ele faz que eu, como filha, acho patéticas. Mas eu acho incrível a forma como ele nunca perde a confiança. Meu pai, apesar de tudo o que vem sofrendo, nunca culpa ninguém e não seria capaz de machucar alguém. Ele sempre está agradecido pelo pouco que consegue, e sempre tem forças para continuar batalhando. Ele pode não ter um pingo de magia no seu sangue, mas me ensinou que ‘obrigado’ pode ser uma palavra mágica... Ele pode ser um fracassado na vida, mas ele nunca pensaria que se jogar de penhasco seria a solução. – ela acrescentou com um tom de orgulho.
Depois dessas palavras dela, o senhor permaneceu um bom tempo em silêncio, pensando, até que tomou uma decisão:
- Eu posso continuar tentando. Ao invés de ficar procurando pessoas que me apóiem, eu devo perder o medo e tentar por mim mesmo, não concorda?
- Isso mesmo! – ela ajudou – O senhor tem que se esforçar! Sua idéia é incrível e o senhor deve ser reconhecido por isso!
- As pessoas tendem a achar que um criador de magias é alguém que conhece todas as magias existentes no mundo, mas não é bem assim. Aprendi uma grande lição hoje, garota: obrigado.
Mary sorriu contente, perdendo toda a apreensão que tivera desde o momento em que vira o senhor indo para o penhasco. Agora tinha certeza de que ele não teria mais idéias absurdas como aquela.
Sentindo que a sua missão havia sido cumprida, Mary se levantou, batendo a poeira da roupa e estendeu a mão para se despedir do senhor:
- Mary Ann Weed, senhor. Vivendo aqui nessa vila, não sei se vou voltar a ouvir sobre a sua criação, mas espero que sim. Obrigada por dar ouvidos a uma sangue-ruim como eu!
E então ela voltou para o seu caminho de casa, acenando alegremente.
O senhor observou a figura dela sumindo de vista ao descer pela estrada. Então, de repente, lembrou de algo:
- Weed?... Onde já ouvi esse nome?...

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