Confuso mundo dos "eus"



Mione estava deitada na cama coberta por uma colcha estampada com girassóis. Ela adorava o amarelo, a cor do sol, a cor do fogo. Por isso, em seu quarto, desde o carpete ás cortinas, o ouro-velho era predominante. Nas paredes bege-claro enfileiravam-se três posters de antigos astros do cinema. Ao lado da cama, uma estante tomava quase toda a parede esquerda. Ali estavam seus discos, álbuns, livros e um moderníssimo conjunto de som. Ás vezes, ela curtia música moderna, mas, quando fica turvo, ela preferia os clássicos, que ajudavam a sair da depressão.
Baixinho estava tocando o Concerto número 23, de Mozart.

De bruços, as pernas dobradas para cima, ela mordia a ponta da esferográfica, enquanto olhava o diário aberto sobre a cama. No alto, a data e o dia da semana. Abaixo, havia escrito: “Tarde de sol, bem depois das seis e meia, um calorão danado. Por que a vida é tão difícil?”

Após haver grifado a palavra difícil, Mione mordeu mais forte a esferográfica como se forçasse uma resposta.
De repente, tocada por uma súbita inspiração, foi escrevendo e dizendo em voz alta:

“Em meu coração jovem há tantos caminhos que não consigo percorrer! Por que sou assim tão contraditória? Agora estou triste... agora estou alegre... Aqui estou radiante, mas, ali adiante, sou toda lágrimas! Por que não sou sol-amarelo-calor-e-luz? Por que não aprendo caminhar sem ter destino até o encontro dos braços que me amem? Braços que me aqueçam.... braços que tirem de mim todo o sol que tenho para dar ao mundo!”

Mozart era excelente para ajudá-la a encontrar caminhos, no escuro poço de seu universo. Shopping também.

-Os artistas devem ter conhecido esta angústia que estou sentindo agora – disse pensativa, fechando o diário. - Ó Cecília Meireles, por que você não vem me ajudar a entender este meu coração maluco?

A melodia chegou ao fim e, com um salto, ela desligou o aparelho. Exatamente quando a porta era aberta, e Alice apontava:

-Sua mãe...
-... Mandou dizer que o jantar está na mesa. Ei, Alice você viu?

-Viu o quê, Mione? – perguntou a empregada surpresa.

-A cintura de mamãe. Ficou mais fina? Ela já pode concorrer com as vedetes, rebolando nos programas de televisão?

-Ora, que falta de respeito! –ralhou a empregada, fechando a porta, enquanto Mione caía na risada. Em seguida, emendando um suspiro, deu uma olhada no espelho.
A mãe não gostava que se sentasse despenteada á mesa. Aí, deu um beijo no urso azul-descorado em cima do criado-mudo.
-Adoro você! Você é o único que me entende nesta casa! –assim dizendo, saiu, fechou a porta e desceu.

A escada era forrada com passadeira grossa, ninguém ouvia os passos de quem subisse ou descesse. O pai, sentado, lia o jornal. O televisor estava ligado sem som.

-Oi! –cumprimentou ela, dando-lhe um beijo na testa. Depois, afundo-se no sofá e, pegando uma almofada abraçou-a. - Ressuscitou muita gente hoje, papai?

-Você sabe que seu pai é obstetra. Portanto, é muito difícil ressuscitar... gente!

- E nenês não são gente? Quando eles nascem antes do tempo, não é preciso colocá-los na incubadora? Isso não é ressuscitar?

O médico respirou fundo.

-Deve ser fantástico ver nasce rum nenezinho de sete meses pouco maior que a mão da gente! –Disse Mione, os olhos brilhando. -Como é que uma coisinha dessas pode ficar deste “tamanhão”? –E olhou seu próprio corpo.

-É isso mesmo que eu sempre me pergunto! –concordou o pai. – Você também, quando nasceu, era um pouco maior que a minha, e agora, está deste “tamanhão”.

A filha sorriu. O pai era jovem, bonitão, moreno de cabelos ralos, com entradas, o que lhe dava maior charme. Tinha olhos negros – e os olhos ela havia herdado dele. A pele muito clara tomava um sombreado pela barba escura que ele cortava todas as manhãs.

-Pela segunda vez aviso que o jantar está na mesa – disse a mãe, surgindo no vão da porta. –Vocês gostam mesmo de comer comida fria, não é?

O sorriso morreu no rosto de Mione, que se endireitou no sofá.

- Quantas vezes tenho de repetir para parar com a mania de abraçar almofadas como se fosse bonecas, Mione?- criticou dona Jane- Você já está com 16 anos, não é mais uma criancinha, precisa ter boas maneiras!

-Vamos jantar - propôs o pai, levantando-se.

Mione foi atrás. Não sentia fome. De repente, tinha-lhe voltado a mesma dor de estômago que sentira depois de brigar com Draco. Por que a mãe lhe provocava essa sensação? A mãe era linda-Mione não negava. Tinha longos cabelos castanho-claros, finos, olhos castanho-esverdeados e um rosto nobre; par perfeito para o pai. Mas por dentro a mãe não era bonita! Para Mione, todas as pessoas tinham dois “eus”: o eu de fora, o físico, que todo mundo vê, e o eu dentro, o invisível, que só aparece quando as pessoas são honestas, espontâneas, dedicadas... Como acontecia com o pai. A mãe ao contrário, nunca deixa transparecer aquele “eu” de dentro dela era mesmo mandão exigente, determinado? Podia existir pessoas bonitas por fora e feias por dentro? Talvez pudesse, porque Mione conhecia pessoas extremamente feias, porém com um “eu” interior maravilhoso!

-Que complicação! – Murmurou a garota, sentando-se.

-O quê? –perguntou a mãe.

-Nada, nada, eu estava falando comigo mesma...

Jantaram em silêncio. Alice trazia os pratos, levava pratos, e Mione acompanhava com os olhos. Já estavam na sobremesa quando a mãe resolveu abrir a boca.

-Draco telefonou há meia hora – disse em tom de acaso.

-Prefiro não falar desse assunto, mamãe-respondeu Mione afastando o prato.

-Não sei por que essas brigas! – insistiu dona Jane. –É um rapaz tão educado! E tem mais: é de boa família. Ele vive dizendo que há de ser um famoso engenheiro nuclear, e eu não duvido que consiga!

-Que bom para ele!

-Você, quando quer sabe ser cínica! –observou a mãe com olhar reprovador.

O pai olhou para ambas. Aquela olhada fez com que Mione refreasse a língua. Procurando manter a calma, respondeu:

-Mãe, Draco pode ser um rapaz lindo de morrer, sei que todas derretem por ele, além disso, nasceu em um berço de ouro e talvez venha ser o jogador de futebol mais bem pago deste país. Mas, apesar de tudo isso, mamãe querida, eu n-ã-o quero ouvir falar dele!

Atrapalhada, dona Jane olhou para o marido.

-Meu Deus, por que essa decisão trágica?

-É que eu cheguei a conclusão que ele não faz a minha cabeça, e fim!

-Posso trazer um cafezinho? –aparteou Alice porque, conhecendo a família como conhecia se não entrasse na conversa, sabia que a coisa complicaria.

-Sim, traga, por favor-Concordou Rui.

Mione, porém, não quis café. Primeiro, olhou para o pai. Depois para a mãe. E, pedindo licença, retirou-se para o quarto. Não queria ouvir nem conversas, nem críticas, nem conselhos. Queria apenas ouvir a música de Morzat e ficar sozinha, curtindo as suas divagações.

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