Uma garota que sonhava



O ônibus parou no ponto da esquina. Com a brecada, o pessoal encurralado foi para frente e voltou para trás.

- Licença, licença! – Pediu ela ao homem gordo que mal podia mover-se, tão apinhado estava o coletivo.

Por fim, ela conseguiu saltar. Cinco da tarde di verão de janeiro; lá fora parecia geladeira porque dentro estava igual a um forno. Depois, fechada a porta, o ônibus vermelho e branco seguiu o caminho.

O movimento de carros na avenida era grande. Ela precisou ficar na esquina á espera que o sinal verde abrisse . Dezesseis anos, magra, cabelos cacheados e comprido, macios como seda, tinha olhos castanhos e nariz atrevido.

-Oi, boneca!- brincou um rapaz de camiseta.

Mione virou o rosto e ficou olhando para o sinal que continuava vermelho. Será que até o sinal demorava, para irritá-la ainda mais? Já não chegava Draco Malfoy, aquele filhinho-de-papai?

Finalmente, o sinal verde acendeu, e ela atravessou correndo. Sim, estava irritadíssima! Draco Malfoy não passava de um crianção, de um careta que não sabia o que queria da vida. Na véspera ele tinha telefonado convidando-a para um cinema. Depois de muito pensar, Mione acabou topando, porque na tarde do dia seguinte não tinha o que fazer e as férias estavam uma chatice. Então, quando chegou a hora, vestiu uma camiseta olímpica, enfiou-se nas calças desbotadas, pôs uma sandália, pegou a bolsa e saiu.

Enfrentar o ônibus já havia sido a primeira prova. Por que não fazia logo dezoito anos para ter seu próprio carro?

Pois bem, depois de um ônibus superlotado, apeou na Paulista, quase em frente ao cine Bristol. Draco Malfoy estava esperando-a na entrada. Beijinhos no rosto, eles atravessaram a galeria, puseram-se na fila para retirar as entradas.
Draco Malfoy estava caladão. Ela perguntou o que era. Ele despejou a verdade: havia brigado em casa, o pai jogou na cara que estava cansado de dar-lhe mesadas, portanto, não tinha um tostão no bolso. Mione não ligou, ela mesma comprou os ingressos.

Mas nem dentro do cinema ele parou de reclamar. Quando passou um desconhecido e olhou para ela, Draco implicou dizendo que ela dava bola para todo mundo. Ao terminar o filme, os dois se pegaram em discussão. Ele acusando-a de cabeça-oca, namoradeira. Ela chamando-o de irresponsável, filhinho-de-papai, que não tinha coragem para assumir-se. Depois, havia tomado aquele ônibus entupido e. . .

As ruas vazias e assombreadas por árvores frondosas devolveram-lhe a tranqüilidade. A multidão deixava-a nervosa; por isso, detestava ir ao centro da cidade.

Um pardal passou voando baixo. Mione viu uma criança jogando bola no jardim, e um pequinês latiu quando ela passou. Tinha olhos toa pretos e latia tão fanhoso que a menina não pôde deixar de rir.

Mais adiante, a rua bifurcava e formava uma ladeira. Lugar sossegado. Muitas árvores nos pomares dos casarões elegantes. A calçada cimentada tinha, junto ao muro recoberto por hera, uma faixa onde pendoavam as vermelhas coroas-de-cristo. Ela escutou uma cigarra ensaiando o cântico e, com isso, o coração bateu mais leve. Mione, então, diminuiu os passos para melhor apreciar o sol filtrando-se através do vaivém das folhas empurradas pelo vento. Semicerrando os olhos, viu a claridade transforma-se em mil pontos estrelados que emprestavam um movimento mágico ao mundo.

“Indo e vindo com a brisa de verão, meu coração bate e confessa como a cigarra sonolenta: ‘Estou cansado... estou cansado! ’” - Pensou ela, lembrando-se dos versos que havia escrito em seu diário dias atrás. Mione gostava de poesias, adorava longas horas de meditação e, mais que ninguém amava a natureza.

Outro ponto de atrito com o Draco! Ele sonhava em ser engenheiro nuclear, só falava de ciências exatas, dizia ser burrice gastar a cabeça com poesia, com a natureza, com as flores e com a alma. Para ele, a única coisa importante era o dinheiro. Talvez, por isso vivia mal dentro de casa, brigando com os pais porque a mesada diminuía toda a vez que o preço dólar subia...

Encolhendo os ombros ela apressou os passos e virou na esquina próxima.


A casa ficava escondida atrás de um muro de pedra forrado de avencas. Ali, uma placa dourada: Dr. Rui Granger – Médico. Mione tirou a chave da bolsa, abriu o portão e entrou. Lá dentro outro mundo. Ela reconhecia cada árvore, cada flor. O quintal crescera com ela, pois o pai havia mandado plantar as árvores. De quem tinha Mione herdado o amor pela natureza? Do pai, naturalmente! Pois a mãe, sempre que olhava para as plantas, era para criticar dizendo: “Se eu fosse você Rui, mandava cortar todas essas porcarias e cimentar o chão. Árvores só servem para jogar folhas no chão e dar trabalho para a limpeza!” Dr. Rui dava uma risada e nem respondia. Adiantava contestar o espírito árido da mãe, igual ao do Draco?
Aproximaram dois gatos.

- Ei, parado aí, Bichento! Sossegue Mirabel! - disse ela, dali a pouco entrando com os dois gatos no colo.

- Mione.... Sua mãe não gosta que fique com esses bichos! – desaprovou Alice, a empregada magricela.

Mione fez que não escutou. Alice era um robô da mãe falava exatamente tudo o que a mãe falava ordenava, era pontual como um despertador. Uma boa pessoa, porém. De cabelos grisalhos, mulata, olhar doce, trabalha para a família desde o nascimento de Mione. Isso queria dizer que a conhecia a menina como a palma da mão, isto é, não adiantava bronquear, porque Mione continuaria deixando os gatos no colo.

- Cadê mamãe?
- Ela...
-... Foi fazer massagem para perder os dois centímetros da celulite na cintura!-emendou Mione, soltando os gatos.

-Não caçoe de sua mãe, sua mal criada!-Disse Alice fingindo-se zangada.

-Eu não estou caçoando. Estou só dizendo a verdade e isso não é crime algum! Sabe o que eu vou fazer agora, Alicinha do meu coração? Tomar um banho de duas horas. E se Draco telefonar, diga a ele que MORRI.

Saiu correndo para a sala, enquanto Alice movia negativamente a cabeça. Dali a pouco, Mione voltou a aparecer na mesma porta por onde tinha saído e acrescentou:

-Não, não diga que eu morri, não. Diga só que não quero ver nunca mais a cara dele em minha frente! A desculpa é cafona, mas serve. Diga que não quero ver esse sujeito... Nem pin-ta-do de ouro!

Dando uma piscadinha, subiu correndo a escada para o quarto.













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