As dores de cabeça de dona Jan

As dores de cabeça de dona Jan



Deitada na rede branca de algodão, Mione lia um livro e tomava refresco. Para não ter de ficar segurando o copo, ela deixava-o no chão e tomava o refresco por um comprido tubo plástico. Assim, podia ler tranqüilamente e, de vez em quando, beber um golinho.

O livro era de Jorge Amado.
Quando chegou ao fim do capítulo, naquela tarde quente de começo de fevereiro, Mione fechou o livro e ficou olhando para um pedaço azul do céu.

-Os gênios não deviam morrer, nunca! –Disse, estalando os dedos para Mirabel, que, sem esperar o segundo convite, pulou na rede.

Nisso, o telefone tocou. Mais que depressa, Mione endireitou o corpo. Aquela campainha a deixava com os nervos á flor da pele. Na terceira tocada, ouviu que Alice entrava resmungando na sala.

-Já sabe, hein? –Gritou Mione da rede- Se for Draco, não estou em casa!

Revirando os olhos, a empregada pegou o fone e emitiu um alô contrariado. Sim, era a voz masculina que Mione não queria escutar. Alice deixou o rapaz falasse por alguns minutos e, depois arrematou:

-Não, ela não está não sei onde foi e nem a que horas volta!

Mione pôs a mão na boca para segurar a risada, pois, quando mentia, Alice fazia uma cara muito feia. Segundos depois, carrancuda, a empregada desligava o telefone:

-Sujeitinho malcriado, bateu telefone na minha cara!
-Na cara, não: no ouvido Alice –respondeu Mione- Viu só como ele, é? E, depois disso, ainda quer que eu namore um cara desses?

-Eu não quero coisa nenhuma! –Alice empinou o nariz - Você é quem sabe de sua vida, não eu! –e voltou para a cozinha.

O relógio da sala continuou tiquetaqueando. Dali a pouco ouvi-se um ronco de automóvel. Era dona Jane que entrava com o carro novinho em folha, cinza-pérola, estofamento claro. “Mamãe nasceu para usar coroa!” – pensou Mione, acompanhando o movimento do carro até estacionar. “Por que ela não é bonita por dentro como é por fora?”

Em seguida, Jane entrou pelos fundos, passando pelo alpendre onde Mione estava. Elegantíssima vestido de cor champanhe, sapatos e bolsa claro, e o penteado impecável. Mione forçou um sorriso:

-Oi mãe, estava boa a festa?

-Uma droga! Oh, que dor de cabeça...! Lendo?

-É passando o tempo...

-Vou tomar um comprimido e cair na cama –disse Jane, desaparecendo pela porta.

Mione continuou olhando para aquela direção. Por que não conseguia sorrir descontraída para a mãe como sorria para o pai? Era difícil! Entre elas havia uma barreira. Quando tentava rir franco para ela, tinha medo, sentia-se ridícula. Por que a mãe também não ria largo para a filha? Elas pareciam duas sombras com medo de se cruzarem.


Chateada com aqueles pensamentos, Mione tentou concentrar-se na leitura, mas não conseguiu. Então o telefone tocou de novo


-Eu não vou atender! – gritou Alice, lá da cozinha.- Não quero mentir para mais ninguém!

-Também não atendo porque não quero falar com ele! – respondeu a garota cruzando os braços.

O telefone continuou tocando, tocando, fino, irritante. Até que abrindo de supetão a porta do banheiro, Jane saiu irritada pisando forte:

-Vocês duas estão surdas? Por que eu que tenho de atender o telefone? Será que não tenho filha nem empregada?

Ergue o fone, colocou-o no ouvido e, ao reconhecer a voz do outro lado, a expressão sereno. Com os olhos fechados, foi respondendo mais com acenos de que com palavras:

-... Sim... Sim... Amanhã de manhã? Ótimo! Rui vai esperá-la no aeroporto. Não, não é incômodo algum, será um grande prazer, claro. Até logo!


Depois de desligar, Jane dirigiu-se até a cozinha.

-Alice! – disse decidida. –Vamos deixar bem claro que nesta casa a empregada é você. Isso significa que eu não quero atender telefonemas, entendeu?

Alice, porém, não era de escutar sermões. Botando as mãos na cintura, rebateu:

-Pois fique a senhora sabendo que eu não gosto de mentir!

-Mentir?

-Aquele tal de Draco quase derrete essa droga de telefone, tocando de cinco em cinco minutos! E a Mione não quer conversar com ele. Então, eu tenho de mentir, dizendo que ela não está em casa!

Ouvindo aquilo, as têmporas de Jane latejaram ainda mais. Dando meia-volta, foi até ao alpendre, onde Mione continuava se balançando na rede

-Vamos acertar definitivamente um ponto, Mione – disse enérgica- Ou você conversa com o Draco a respeito desse namoro ou...

-Eu já acabei com esse namoro! – declarou a filha, cortando a frase da mãe. – Você também já sabe disso. Então, que quer mais que eu faça? O Draco continua telefonando, telefonando, não tenho mais nada para conversar com ele!

-Os Santamaría são gente fina, educada, de tradição. Será que você não entende menina?

-Entender o que mamãe? – desafio Mione, fechando o livro com um estrondo. – Gente fina, educada e de tradição devia saber aceitar um não! Que diabo!

-Não seja grosseira, Mione!

Mione coçou a cabeça e respirou fundo:

-Mamãe, por favor, não vamos discutir! Você está com dor de cabeça, e você mesma vive dizendo que sou outra dor de cabeça em sua vida. Por favor, entenda: eu não quero mais nada com Draco por mais fino, educado e importante que ele seja. Já falei isso diretamente, mais ele não quer entender!

Por alguns momentos, Jane continuo em pé, imóvel. Estava pálida, mordia os lábios, abria e fechava as mãos nervosamente. Depois, levando as mãos a testa, começou a gemer.

-Estou mal... Estou me sentindo muito mal... Minha cabeça vai arrebentar.

Mione sabia que era pura chantagem. Quando não conseguia impor sua vontade através da força, sua mãe sempre apelava para alguma encenação do tipo. Quando criança, ficava impressionada e cedia. Mas, com passar do tempo parou de ceder.

-É melhor você deitar-se e descansar um pouco, mamãe – sugeriu sem levantar-se da rede. - Tome um bom analgésico que, hoje à noite, você estará nova em folha!Não se esqueça que hoje a noite tem aniversário na casa do Dr. Mangabeira!

Ao ouvir aquilo, olhou firme para a risadinha de sua filha. Sim, sim tinha passado horas no cabeleireiro preparando-se especialmente para a festinha e não podia, agora, permitir uma simples dor de cabeça arruinasse todos seus planos.

Desapontada pela derrota, Jane virou nos pés e desapareceu.




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