Lobisomem



Era a segunda vez que caia naquele dia. O rosto foi a primeira parte do corpo a sentir o baque do chão duro e frio, coberto de alguma coisa que, incrivelmente, parecia mais dura e desconfortável ainda. Logo em seguida, o odor fétido de morte dominou suas narinas, quase tão rápido quanto a adrenalina em suas veias a fez levantar e impor as mãos logo a frente do corpo, num claro sinal de defesa. Girou a cabeça para observar a silhueta de Harry ao seu lado quando uma risada gélida ecoou na escuridão, fazendo com que um arrepio eriçasse todos os pêlos de seu corpo.

Foi então empurrada contra uma espécie de parede de pedra ao mesmo tempo em que o salão no qual estava se coloria de uma estranha luz esverdeada. Archotes nas colunas de pedra entrelaçadas com cobras em relevo se acenderam por magia, e o teto alto projetou longas sombras negras nas paredes enegrecidas do salão. A luminosidade era fraca, mas ela percebeu sobre o que havia caído antes: algo semelhante a presas.

- É inacreditável, não é mesmo? – a voz capaz de fazê-la congelar de medo soava naquele momento tão confiante, tão cheia de si, praticamente feliz. Uma felicidade suja, cruel, o mais próximo de um sentimento bom que ele poderia chegar. Era uma felicidade recheada da mais pura maldade – Depois de tantos anos, voltamos a nos encontrar, Potter. Eu poderia jurar que você estava morto, mas não... Mais uma vez você usou escudos para se safar. Quem será desta vez, Potter? Deixe-me fazer as contas... Black, Dumbledore, Tonks, a filha de sua amada traidora do sangue com Draco Malfoy. Talvez a pequena cria dos Weasley, dessa vez?

- CALE A BOCA! – Harry gritou. – Hoje somos só você e eu, e vou destrui-lo de uma vez por todas.

A risada encheu novamente a sala, e desta vez foi acompanhada pelo chiado estridente de Belatriz. Ao lado do Lorde das Trevas, ela acariciava a barriga aparente com orgulho, o olhar enlouquecido de quem não tem nada a perder.

- Tsc, tsc, tsc. Pobre menino fraco, esse Potter. O sangue ruim da mãe afetou a mente dele. Já descobriu como se lança uma Maldição Imperdoável, Potter? – sem esperar pela resposta, o tom de ironia deu lugar à ira. – Está desafiando o maior bruxo de todos os tempos, mestiço imundo?

- O maior bruxo de todos os tempos foi Alvo Dumbledore – cuspiu Harry com raiva, segurando firmemente a varinha apontada para Voldemort.

Mia acompanhava o debate sem saber o que fazer. Sentia que Harry estava tentando ganhar tempo com aquela conversa, mas para quê? Foi então que a ponta da varinha de Harry emitiu um lampejo que rapidamente tomou a forma de um veado prateado para, em seguida, tornar-se um borrão ao iluminar o salão, cavalgando por um longo corredor até sair do campo de visão. No entanto, a luminosidade repentina deu a chance de Mia perceber que ela estava, na verdade, aos pés de uma estátua enorme que ocupava o centro da câmara de teto alto. Olhou para cima a procura da cabeça da estátua, e deparou-se com um rosto antigo e simiesco, com uma barba longa e rala que caía quase até a barra das vestes esvoaçantes de um bruxo de pedra. A fisionomia era agourentamente parecida com as figuras antigas de Salazar Slytherin em Hogwarts, uma História.

- Para onde irá mandar esse patrono, Potter? – perguntou Voldemort, e o barulho de seus passos ecoando pelo salão. - Quem poderia te ajudar agora? É provável que seus inúteis amigos estejam mortos, destruídos pelos meus Comensais. Acha que dragões serão úteis? Meus seguidores conhecem feitiços dos quais vocês jamais ouviram falar, e sequer seriam corajosos o bastante para usar. Também tenho comigo a força de criaturas que vocês não podem enfrentar. Francamente, Potter, qual a chance do seu exército de fracos expatriados com varinhas remendadas? Além disso, quem acharia a Câmara de meu antepassado? Só aquela estúpida Ordem de Resistência dos Renegados, ou seja lá como vocês a chamam, seria tola o bastante para achar que Hogwarts não protegeria o único que a fez ser uma escola descente, para os verdadeiros bruxos de sangue puro e não para a escoria de mestiços e sangues ruins?

- Se está tão confiante, porque não acaba logo com isso, Tom Riddle?

Por detrás de seu precário esconderijo, Mia viu os olhos de cobra de Voldemort brilharem ainda mais vermelhos, e um pequeno desconforto passou por seu rosto ofídio.

- Não me chame pelo nome de meu asqueroso pai trouxa! – Voldemort parecia estar perdendo o controle da situação. Mas Mia ainda não conseguia enxergar para onde Harry levaria aquela conversa, enquanto ambos se moviam sem deixar de apontar as varinhas para o adversário. Belatriz soltava interjeições de raiva ou surpresa e risos maldosos de tempos em tempos, mas permanecia alheia a discussão, assim como Mia. O palco central da tragédia ali ensenada era ocupado apenas por seus tradicionais protagonistas de toda uma vida.

– Vou acabar com você, agora, Potter. Para que enrolar mais? Você não passa de um velhote fraco. Minha vida será eterna, Potter, e você morrerá aqui!

Um barulho de passos ecoou pela extensão do corredor e, por uma fração de segundo, fez Harry girar o pescoço para observar de onde vinha o som. Mia olhou na mesma direção e observou a silhueta de Daniel se delinear à frente, os tênis batendo no chão de pedra e espalhando água para todos os lados, a capa preta esvoaçando nas costas enquanto ele corria. Ia em direção ao pai, o rosto assustado, quando um clarão de luz verde e a voz inumana encheram o salão.

- Avada Kedavra!

- NÃOOOOOOOOOOOOOOOOOO!

Mia gritou, e a sua voz se juntou a outra, que ela conhecia tão bem. Os passos ficaram mais rápidos ao longo do corredor. O feitiço pegara Harry de surpresa e agora seu corpo caia, como num filme em câmera lenta, os olhos eternamente abertos numa expressão de estranha paz. O baque surdo aconteceu no momento em que a silhueta dos outros recém-chegados ficou nítida.

Daniel alcançou o pai quando seu corpo já estava estendido no chão num ângulo torto. O menino sequer se importou com o fato de que o Lorde das Trevas ainda empunhava a varinha naquela direção. Jogou-se sobre aquele que fora seu pai, protegendo a massa inerte com seu corpo que pulsava vida e ódio. O Senhor Malfoy chegou logo em seguida e torceu o nariz, mas postou-se diante dos dois, a varinha em riste, encarando Voldemort, embora tremesse ligeiramente. Ao seu lado, Hermes parou e impôs as mãos, o rosto desafiador, mas divertido ao mesmo tempo, como se tudo não passasse de uma grande aventura. Em seguida, Gina chegou apoiando Lúthien, o tornozelo enrolado por uma tala precária, cuja gaze estava empapada de sangue. Mesmo assim, ela parou ao lado do senhor Malfoy e assumiu a mesma posição de ataque que Hermes. Com lágrimas no rosto, Gina abaixou ao lado de Daniel e apertou delicadamente seu ombro, num silêncio mudo que fazia o coração de Mia doer.

Sem conseguir se mexer, ela apenas observava a cena, incrédula. Não, não era possível, aquilo não estava acontecendo. Não naquele momento, Harry morto depois de chegarem até ali? Não, não podia ser. Foi a voz de Belatriz que a fez despertar.

- O que significa isso, Draco? – perguntou a bruxa, apoiada ao ombro de Voldemort. – Quer ser o próximo? – disse ela, o comentário obviamente carregado de ironia.

O desdém ensandecido de Belatriz fez Mia se mover, levando-a a parar ao lado do senhor Malfoy, as lágrimas tomando conta de seu rosto involuntariamente. Seus olhos queriam procurar os de Daniel, mas ele mantinha a cabeça baixa, e tentava em vão conter os soluços que escapavam de seus lábios. Então, palmas ecoaram pelo salão.

- Comovente – disse Voldemort, aproximando-se e provocando uma reação imediatamente defensiva dos oponentes. Porém, ele estancou a alguns passos de distância e riu mais uma vez, o orgulho claro em sua voz. – Deveria prever que Potter mandaria o maldito Patrono para a Weasley, a única que, além dele, conhece a localização da Câmara Secreta de Hogwarts. O que me supreende, porém, não é que a traidorazinha tenha conseguido chegar até aqui, mas é inacreditável que ainda existam renegados que queiram desafiar o poder do Lorde das Trevas. Mas não fiquem preocupados, pois eu trouxe mais convidados para participar de nossa festinha!

Voldemort gargalhou e o rosto de Belatriz se cobriu de triunfo. Mia sentiu o salão esfriar rapidamente, e uma sensação esquisita se aninhou no fundo de seu peito. As luzes esverdeadas da Câmara diminuíram quando as figuras encapuzadas alcançaram o corredor, e o coração de Mia falhou uma batida: dementadores.

Os seres que roubam a alegria e a esperança das pessoas até que lhes possam sugar a alma avançavam para aqueles que ainda a possuíam. Alimentavam-se da dor da perda e do horror das batalhas e ficavam fortes, enquanto o grupo se sentia cada vez mais fraco.

- Finalmente não há mais ninguém que se atreva a cruzar o meu caminho. Mais alguém vai querer me desafiar? Pois meus dementadores sugarão suas almas, e depois vou matá-los todos, um por um. Não cometerei o mesmo erro novamente.

A ansiedade cruel de Voldemort esperava pelo espetáculo dos dementadores e fez com que ele percebesse a movimentação uma fração de segundo tarde demais. Daniel levantou-se de repente e o leão prateado da Grifinória explodiu de suas próprias mãos, procurando afastar os dementadores que se avolumavam ao redor do grupo. Com a esperança renovada pelo feitiço do amigo, Mia, Lúthien e Hermes também recorreram a seus patronos, a águia, o texugo e a serpente. O senhor Malfoy e Gina também lançaram o feitiço tradicional, por meio de suas varinhas, e aos quatro patronos dos herdeiros de Hogwarts se juntaram mais uma serpente e um belo alazão.

Pego de surpresa, Voldemort viu a combinação dos feitiços dos quatro herdeiros de Hogwarts, somados à magia tradicional de Malfoy e Gina, se transformar numa imensa figura prateada, que afastou os dementadores.

- Milorde, o que está acontecendo? – questionou Belatriz, um misto de surpresa e medo aparente em sua voz.

Estavam novamente diante do patrono-dragão, porém aquele era muito maior e mais potente. O animal fantasmagórico girava em torno dos renegados, protegendo-os contra qualquer feitiço que pudesse atingi-los.

Sem se dar conta disso, porém, Voldemort preparou o golpe final. Não deixaria que eles fugissem, não daquela vez, não após derrotar de uma vez por todas o famoso Harry Potter. Precisava acabar com todos, limpar o mundo bruxo de qualquer escória, deixar que a magia pertencesse apenas aos que tinham o sangue puro para recebê-la. Não existe o bem e o mal, apenas o poder e aqueles que são fracos demais para possuí-lo. Ergueu a varinha e, com toda a força que conseguiu reunir, bradou a plenos pulmões:

- Avada Kedavra!

O jorro de luz verde esbarrou na cauda do dragão. A força do patrono fez com que a varinha escapasse das mãos do Lorde das Trevas e flutuasse no ar, envolvida por uma luz prateada que cegava. Boquiabertos, todos acompanhavam o trajeto da Varinha de Ravenclaw, que subia em direção ao teto do salão. Da varinha indestrutível começaram a surgir outros tipos de figuras prateadas, desta vez humanas.

O primeiro a aparecer foi Harry, que se aproximou do filho:

- Não desista. Riddle não é forte o bastante para vencer. Falta a ele o que sobra em vocês: amor e união, os poderes que o Lorde das Trevas desconhece.

Em seguida, o corpo de Wyrda emergiu da varinha no teto da Câmara, aproximando-se de Mia.

- Esse é o poder que a fará vencer. O sacrifício da alma de Harry fez com que o amor que existia em vocês se tornasse ainda mais forte. Use-o a seu favor. Use-o para destruir a varinha.

Outras figuras continuavam se desprendendo da varinha de Ravenclaw, e um a um aqueles que foram mortos pelo Lorde das Trevas em seus anos de tirania apareciam para confundir os dementadores. Diante de tantas almas cheias de sentimentos, ficava difícil saber quem era realmente humano.

Foi assim que os dementadores se aproximarem sem que ele pudesse fugir. Desarmado, Voldemort tentou usar a mente para obrigá-los a obedecê-lo novamente, depois tentou aparatar e até mesmo voar, mas tudo foi em vão. Os seres cobertos de feridas se aproximaram dele e lhe aplicaram o beijo do dementador, sugando o pouco que restava da alma partida pelas horcruxes e deixando apenas uma casca extremamente parecida com uma pele de cobra envelhecida pelo tempo.

Foi a vez de Belatriz gritar, mas ela não se jogou aos pés daquele que então era apenas Tom Riddle, sem horcrux ou poder. Ela simplesmente agarrou com mais força a varinha, girou ao redor de seu próprio corpo e aparatou, levando consigo no ventre o filho do Lorde das Trevas. Ele não seria imortal, visto que o ritual havia sido interrompido pelos membros da OdRR, porém, Belatriz ainda tinha sua horcrux, e talvez tentasse reerguer o exército das trevas um dia.

O dragão dissipou os dementadores que restavam e então desapareceu, fazendo a varinha de Ravenclaw cair ao lado do corpo inerte de Voldemort, os olhos antes vermelhos, mas naquele momento negros como noite sem estrelas. O instrumento mágico vibrava, o pedaço da alma do mestre encerrado dentro de si clamava pela volta ao corpo, mas a casca inerte não se mexia. Não havia mais vida pela qual lutar. Há coisas piores que a morte.

O silêncio se instalou e pesou sobre os presentes. Ainda havia uma batalha para vencer, e, infelizmente, corpos a enterrar. Com o rosto lívido e coberto de lágrimas, Daniel não deixou que ninguém o ajudasse a carregar Harry para fora da Câmara. Ele sequer permitiu que Mia se aproximasse, envolvido como estava por sua própria dor. Até mesmo o senhor Malfoy parecia abalado, e segurava a mão de Gina com tanto carinho que sequer lembravam um casal brigado. Com a varinha, conduzia o corpo sem alma do Lorde das Trevas, um símbolo a ser mostrado a seus seguidores para que percebessem que a batalha findara.

Lúthien seguia apoiada no ombro de Hermes, mas Mia ia só. Seus pensamentos vagavam e ela ainda tentava engolir a força os últimos acontecimentos. Carregava consigo a varinha de Ravenclaw, a última horcrux pulsando de raiva em sua mão, exigindo voltar ao seu dono. Tinha agora a obrigação de destruí-la. O preço da vitória, contudo, era muito alto: a vida de Harry Potter.

Ao cruzar a enorme porta de madeira do Castelo, Mia caminhou com passos vacilantes, os olhos correndo o campo de batalha e se deparando com diversos corpos que jaziam ali, muitos já sem vida. Outros ainda lutavam contra os Comensais, mas, ao verem o corpo do Lorde sendo carregado pelo feitiço de Malfoy, a maioria de seus Comensais fugiu desesperada para dentro da floresta. Não tinham qualquer organização ou controle sem as ordens e manipulações do ditador que tudo controlava. Os dragões haviam pousado e Hagrid já começara a avaliar os estragos aos exemplares de plantas nativas de Hogwarts.

Mas alguns ainda lutavam. Hermes fez com que Lúthien se sentasse no degrau da escada e correu para ajudar a espantar os remanescentes. O senhor Malfoy e Gina também se afastaram, deixando Daniel e Mia acompanhados apenas dos corpos de Voldemort e Harry, ligados até mesmo no fim da vida, embora de maneiras diferentes para cada um. Como seria quando tudo aquilo acabasse? Quantas pessoas mais teriam de enterrar? Seria possível contabilizar as perdas e, principalmente, juntar forças para reconstruir toda uma vida?

Mia abriu a boca para falar com Daniel, talvez proferir uma palavra de conforto, mas estancou. Lúthien havia se deitado no degrau da escada e fechado os olhos diante da dor que ainda pulsava em seu tornozelo e coração, por isso jamais poderia ter visto a criatura sedenta de sangue que se aproximava. Talvez o odor sujo que emanava dele tivesse despertado seus instintos, fazendo com que ela abrisse os olhos e gritasse. Mia e Daniel correram, mas foram barrados por Hemes, que surgiu não se sabe de onde. O loiro jogou seu corpo diante de Lúthien no exato momento em que a criatura pulava em cima dela, as garras afiadas, a mandíbula aberta num ataque mortal.

O grito de dor ecoou por toda Hogwarts. Quem ainda lutava parou naquele exato momento. Mia lançou uma labareda potente e conseguiu afastar o animal que atacara o amigo. O ser gigantesco fugiu para a Floresta Proibida sem que ninguém conseguisse acertá-lo.

Tomada pelo pânico, Mia respirou fundo e piscou várias vezes, sem coragem para se aproximar mais da cena. Hermes estava caído sobre Lúthien, que não tinha forças suficientes para retirar o amigo dali. Seu rosto estava desfigurado pela mordida, e o sangue escorria, empapando a camisa branca por debaixo da capa. Seus olhos estavam fechados e ele não se movia.

Sentiu vontade de correr, mas suas pernas impediram que desse um passo sequer. Seus olhos se encheram de uma névoa sufocante quando seu coração, batendo descompassado no peito, gritou-lhe que tudo havia acabado.

- Não, por Deus, Hermes não! Hermes não!

Foi a única coisa que conseguiu dizer antes de desabar no gramado.





N/A: Não me matem, por favor. Só falta o epilogo e eu juro que tudo terá acabado. Só não posso garantir que tudo acabe bem. Há coisas piores que a morte, não é mesmo?

Obrigada por me aturarem até aqui. Em breve postarei o último.

E para aqueles que tiveram paciência comigo, o meu muito obrigada!

Bjooo!

Mia

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