A morte não é o fim



Um gemido baixo fez com que Mia despertasse de seu sono leve. Pulou da cadeira desconfortável na qual estava sentada e imediatamente debruçou-se sobre o corpo debilitado que estava na cama.

- Lúthien... não... Lúthien...

Calou-se novamente e a expectativa diminuiu. Estava assim há três infinitos e angustiantes dias. Em seu leito cinzento, Hermes murmurava o nome de Lúthien como se revivesse a cada instante o momento em que salvara a vida da amiga, e o que aquilo lhe havia custado.

Hermes não era alguém que costumava agir sem pensar detalhadamente nas conseqüências que seus atos trariam para si, Mia sabia. A extrema coragem com que se comportara ao enfrentar a situação ainda a surpreendia.

Mas naquele dia o murmúrio não era apenas uma alucinação inconsciente. Os olhos do jovem começaram a se mover antes que Mia pudesse voltar a seu desconfortável acento. Instintivamente, ela agarrou a mão gelada de Hermes e pediu, em voz baixa:

- Por favor...

Uma voz rouca, baixa e fraca, como se há muito não fosse utilizada, respondeu:

- Só porque você pediu com tanta gentileza...

Um dos olhos cinzentos, naquele momento opaco e com pouco brilho, abriu-se lentamente, e uma espécie de sorriso tentou acompanhá-lo, mas foi interrompido por um repentino acesso de dor.

- Um daqueles dragões passou desembestado por cima de mim? – Hermes esforçou-se para perguntar, mas Mia não estava prestando atenção. Deixara a enfermaria de Hogwarts, os passos ainda ecoando pelo corredor, e voltara momentos depois com Lúthien e Daniel em seu encalço.

- Queria chamar seus pais também, mas todos estão no Ministério da Magia agora. Precisamos mandar uma coruja para eles e...

- Quero ver – interrompeu Hermes, uma expressão sombria, uma das mãos percorrendo o rosto com cuidado.

- Hermes... eu... – começou Lúthien, os cabelos compridos roçando nos braços do amigo quando ela ficou na ponta dos pés para olhá-lo. – Eu te agradeço muito pelo que fez, mas acho melhor você esperar mais um pouco para ver seu rosto. Está horrível – disse simplesmente.

Diferentemente do que Mia pensou ao ouvir estas palavras, o ambiente tornou-se subitamente mais leve, como se a sinceridade de Lúthien pudesse trazer um pouco de paz a todos os sofrimentos pelos quais haviam passado nos últimos meses. Como se ainda fosse possível ter esperanças de que, em breve, a ferida, incluindo a de Hermes, estaria completamente curada, tanto no sentido físico quanto no psicológico. Porém, há marcas que permanecem por uma eternidade, Mia sabia disso.

Daniel, sorrindo com um ar de tristeza que provavelmente o acompanharia pelo resto da vida, foi até a mesinha de cabeceira e pegou um espelho, entregando-o ao amigo.

- Talvez seja bom ele ver agora – disse, um pouco mais sério, mas ainda segurando o espelho entre os dedos enquanto Hermes tentava puxá-lo.

- Ah, qual é, Daniel? Me dê logo essa droga de espelho e deixe-me ver o galã que me tornei – brincou Hermes, mas sua voz falhou um pouco, como se quisesse demonstrar nas palavras o temor do que viria a seguir.

Vacilou um milésimo de segundo antes de pousar o olhar na imagem refletida pelo espelho de moldura descascada. Sua expressão desmontou, como se traduzisse todos os medos que guardara até aquele momento, consciente ou inconscientemente. A imagem era a expressão perfeita do horror que lhe ia à alma: o olho esquerdo estava fechado por um amplo ferimento, sem possibilidade de um dia abrir-se de novo. A ferida esverdeada começava no alto da sobrancelha esquerda e se estendia até o lábio, deixando-o torto e explicando a dor que sentira ao tentar sorrir.

Como se adivinhasse o momento exato, Severo Snape irrompeu pela porta da enfermaria, usando a tradicional capa negra e a expressão mal humorada. Nas mãos, carregava um vidro pequeno que borbulhava, bufava e expelia fumaça, quase como se estivesse vivo.

- Se quiser melhor, senhor Malfoy, precisa descansar. Não recomendo ficar discutindo com seus amigos qualquer coisa nesse momento, mas se quiserem que a recuperação dele seja mais lenta, fiquem a vontade.

Snape virou as costas, mas Hermes, largando o espelho em seu colo, perguntou em voz alta:

- Eu vou ficar assim para sempre?

O rosto de Snape pareceu anuviar-se por um breve instante, mas depois retomou a expressão carrancuda de sempre. Deixando o frasco na cabeceira do leito, tomou uma das cadeiras que estavam ao lado dos jovens e então prosseguiu:

- A mordida de um lobisomem, senhor Hermes, é uma das coisas mais difíceis de se curar. Existem antídotos e poções que podemos usar para aliviar a dor, mas nada acelera o processo de cicatrização, ou impede as transformações. Você simplesmente terá de aprender a lidar com sua nova condição.

O ar tornou-se pesado. Hermes franziu a testa, fechou o único olho que ainda podia abrir e parecia profundamente absorto nas palavras de Snape.

Lobisomem.

Quando uma pessoa comum como ele pensaria em chegar a isso? Há pouco tempo, Hermes era apenas um menino normal cursando a escola secundária. A partir daquele momento, no entanto, tornara-se definitivamente um homem amaldiçoado.

Snape ainda falava, a voz soando extremamente enfadada:

- No entanto, senhor Malfoy, o senhor salvou a senhorita Longbottom. Para uma mulher, o veneno de um lobisomem seria infinitas vezes mais letal. Ela provavelmente não resistiria.

Hermes abriu o olho e o cinzento encontrou o azulado de Lúthien. Os olhos dela, como sempre, estavam esbugalhados e tinham aquele mesmo ar distraído, mas também refletiam uma dor cheia de culpa.

- Você deveria ter me deixado morrer – disse, sem rodeios. – Desculpe...

- Pare com isso, sua lunática! Eu faria tudo de novo!

Lúthien jogou-se em seus braços com um sorriso torto e sincero estampado no rosto, enquanto Hermes fazia caretas de dor, mas retribuía o carinho da melhor maneira que podia. Uma lágrima solitária rolou pela bochecha de Mia, que pegou a mão de Daniel ao seu lado e apertou-a, brincando com os dedos gelados do menino. Afinal, mesmo que Hermes tivesse se tornado um lobisomem, e mesmo que a guerra tivesse provocado perdas irreparáveis para todos, ainda eram amigos.

Snape, que não era dado a sentimentalismos, virou as costas e saiu da enfermaria, não sem antes dizer:

- Tome a poção, senhor Malfoy. Seus amigos não vão gostar de ser devorados por você na próxima lua cheia.

Hermes soltou-se dos braços de Lúthien para pousar seu olhar de tempestade no verde de Daniel, como se de repente lembrasse que não era a única pessoa cuja vida mudara drasticamente. O amigo, embora sem nenhuma cicatriz aparente, trazia o rosto marcado pela dor da perda.

- E você, cara? Está bem?

- Na medida do possível estou – respondeu Daniel, sem jeito em falar de si quando o amigo se encontrava naquela situação. – Recebi muito apoio de todos, acho que aos poucos poderei sentir um pouco mais de orgulho e um pouco menos de tristeza pelo feito de meu pai. Ele morreu pela causa que o prendeu e o libertou, morreu por aquilo em que acreditava. Sei que ele será sempre lembrado com um exemplo. Ao menos é assim que eu vejo as coisas...

- E o que diabos aconteceu lá dentro, Mia? Você estava lá antes de chegarmos, o que foi que Voldemort fez exatamente que nos permitiu vencer?

Mia já pensara muito naquilo. Havia tentado discutir com tia Gina e o senhor Malfoy, que lá estavam, e até mesmo levara as dúvidas aos outros membros da OdRR. Porém, era complicado entender a extensão da magia poderosa que se fizera naquela noite em Hogwarts, magia capaz de derrotar o pior dos inimigos do mundo bruxo.

- Pelo que eu entendi – disse ela - o elemento capaz de vencer a última horcrux de Voldemort não era, afinal, uma varinha, mas sim a união da magia natural canalizada em uma varinha comum, que se tornaria a Escolhida, como havia dito o mestre Olivaras. Sendo assim, acho que o papel dos seus pais foi indispensável, e, sem eles, de nada valeria o trabalho dos quatro elementos juntos. Porém, o sacrifício de Harry também entrou na conta do amor, que acabou agindo como uma espécie de quinto elemento em nossa magia. O fato de Harry ter morrido para nos salvar criou uma espécie de proteção, talvez a mesma que permitiu que ele não morresse quando bebê ao ser atingido pela Maldição de Voldemort. Porém, há determinadas coisas que serão para sempre um mistério. Podemos apenas imaginar como foram, mas talvez a luz completa nunca se faça.

Hermes apenas deu de ombros. Parecia cansado demais para analisar tantas informações ao mesmo tempo. Tomou a poção, não sem reclamar que o gosto era horrível, e logo pegou no sono outra vez.


***

- Será que ele vai ficar bem? – perguntou Mia.

Ela e Daniel estavam na sala comunal da Grifinória, instalados nas confortáveis poltronas próximas da lareira. Lúthien havia saído do Castelo para ajudar Hagrid com os dragões. Carlinhos voltaria para a Romênia ainda aquela noite e precisava se certificar de que os animais mágicos tinham todo o necessário para a longa viagem.

- Acho que ele vai se recuperar – disse Daniel, respondendo a pergunta da jovem. – Hermes é forte, mas reconheço que será uma vida complicada. Ele precisará de todo o nosso apoio, e de todo o talento do professor Snape com Poções.

Mia baixou os olhos, sem coragem de encará-lo. Sentia-se quase culpada pela condição de Hermes, mesmo sabendo que não teria como mudar o destino do amigo. Mas parecia que, no fim de tudo, quem mais havia sofrido era ele e daria tudo para estar em seu lugar, se pudesse.

Daniel deu um salto de sua poltrona e sentou-se no braço daquela ocupada por Mia. Ela levantou a cabeça para observá-lo e os lábios de ambos ficaram próximos. Mia sentia o hálito quente de Daniel, a boca convidativa, e não foi capaz de se conter ao juntar seus lábios com os dele num beijo terno, diferente do último que haviam trocado, tão urgente, tão amedrontado pela possibilidade de que nunca mais se vissem. Aquele era calmo, certo, e selava o destino de ambos. Ao descolarem os lábios, Mia abriu os olhos e encontrou a mesma tristeza no semblante de Daniel, mas ela parecia menor perto da alegria que o dominava enquanto ele dizia:

- Eu te amo! Eu te amo, tanto, Mia, tive tanto medo de perdê-la! Eu não suportaria tantas perdas ao mesmo tempo, seria demais para mim! Só consigo me manter de pé porque você está comigo!

Mia deixou que as lágrimas rolassem quentes e abundantes por seu rosto enquanto o abraçava. Os herdeiros de Corvinal e Grifinória estavam enfim juntos, como tinha de ser. Fogo e água, opostos e perfeitamente iguais. E para sempre.


***


George e Fred Weasley tornaram-se os primeiros Ministros da Magia duplos da história do mundo bruxo, eleitos após a ditadura Voldemort, por meio de voto popular entre os membros da OdRR.

Além de preparar poções para Hermes, Severo Snape assumiu o lugar de diretor interino de Hogwarts e reabriu a Escola sem que houvesse divisões de casas. Todos os alunos eram iguais e conviviam em harmonia (ou quase, já que algumas brigas e rixas são inevitáveis entre jovens bruxos cheios de energia). Hagrid voltou a ser o professor de Trato das Criaturas Mágicas, enquanto Neville Longbottom tornou-se mestre em Herbologia e a esposa Luna, professora de feitiços.

Ronald Weasley tornou-se chefe do departamento de Aurors, enquanto Hermione Weasley assumiu o departamento de feitiços. Gina garantiu a retomada do Profeta Diário e levantou o nome do jornal, fazendo-o voltar a ser o veículo mais confiável do mundo bruxo. Draco ficou ao seu lado, embora sem gostar muito da idéia.

A última horcrux foi destruída após a saída de Hermes da enfermaria. A tarde estava ensolarada e Daniel, acompanhado dos três amigos, foi o responsável por exterminar o último pedaço da alma do Lorde das Trevas com a ajuda de um dente de basilisco. O silêncio era total.

Os restos de madeira inanimados da varinha foram despejados sobre o túmulo de Harry Potter em Godrics Hollow, como uma espécie de lembrança de seu sacrifício, um tributo eterno ao seu nome.




N/A:
Talvez esse não seja exatamente o fim que eu imaginei no início da Trilogia. Talvez eu tenha deixado a desejar em algum momento, mas coisas da minha vida se tornaram muito mais urgentes do que aquilo que eu realmente gosto de fazer: escrever.

Obrigada a todos que tiveram paciência para acompanhar a história até aqui. Sei que posso ter decepcionado alguns, mas também sei que proporcionei momentos de diversão e boas leituras para vocês. Concluo isso a partir das reviews, sempre carinhosas, algumas dando puxões de orelha pela demora (é, eu demorei nos últimos tempos). Mas foram longos 3 anos de Trilogia dos Feitiços que vou guardar para sempre no coração!
Críticas são muito bem vindas!

Beijos a todos e até a próxima!

Mia





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