O Casamento Sagrado
Lúthien estava muito bonita, embora o corpo não fosse seu. Os olhos de Mia não conseguiam se despregar da pele morena, decorada com pinturas rústicas indecifráveis e coberta com couro de gamo. Todo o trabalho da pintura era mérito de Snape, que havia utilizado a varinha em estranhos arabescos para reproduzir o que vira no corpo adormecido de Liene. Era estranho e assustador olhar duas figuras exatamente iguais, uma ao lado da outra, enquanto o velho professor de Poções de Hogwarts reproduzia seu trabalho.
Embora Mia soubesse das preocupações de Lúthien em relação àquele plano mirabolante, já que eram tal e qual as suas, admirava a maneira da amiga de permanecer calma, com uma expressão branda e serena no rosto.
Enquanto o momento do Casamento se aproximava não precisaram fazer muitas coisas, algo que as deixava livres para pensar demais, e neste caso não havia vantagem. Mia observava a amiga e não conseguia definir o que poderia ser pior: ser capturada pelo Lorde das Trevas ou forçar Lúthien a ter sua primeira vez com um completo estranho.
Cada participante do ritual demonstrava saber exatamente o seu papel. Parte das mulheres acendia as fogueiras, enquanto o novo gamo era preparado pelos homens do vilarejo para a caçada. Sua identidade era uma incógnita, mas acreditavam que se tratava de alguém do próprio povoado, escolhido a dedo pelas mulheres.
Outro grupo foi responsável pela organização da caverna na qual Lúthien estava, e para onde Mia deveria atrair a atenção de Voldemort para que ele as raptasse. Apesar de ter o plano em mente, acreditava que ele não se arriscaria pessoalmente a comparecer ao ritual, misturando-se àqueles a quem chamava de trouxas imundos. Mia pensou com certo gosto que até mesmo o Lorde das Trevas se surpreenderia se fosse capaz de sentir a energia que os trouxas eram capazes de fazer circular durante o Casamento Sagrado. Ela a sentia em cada poro e na pele arrepiada de seu corpo. Tinha certeza de que aquilo não era somente nervoso, tão pouco frio.
- Emengard, o gamo está pronto – disse uma mulher, com aparência de matrona orgulhosa do vilarejo, à entrada da caverna. Ela fez uma ligeira reverência para Mia, que se sentiu absolutamente sem graça. A mulher, no entanto, pareceu não notar. – Pode trazer Liene para que o abençoe antes que ele parta para a floresta. A lua cheia logo estará no céu.
Mia fez um aceno de cabeça, sentindo-se esquisita naquele corpo grande e largo que pertencia à Emengard. Olhou para Lúthien, que já se levantava, desajeitada por conta do peso do couro de gamo. Ao se aproximar de Mia, ela sussurrou ao ouvido da amiga:
- Estou praticamente nua.
- Está escuro aí fora – disse Mia, como que para tentar consolar a amiga.
- Isto não facilita as coisas, mas vamos lá – murmurou Lúthien, dando de ombros e seguindo para a luz do lado de fora das paredes de pedras, pronta para enfrentar o que o destino pusesse em seu caminho.
Era impossível ver o rosto do jovem gamo, escondido por detrás da máscara com chifres naturais. As fogueiras de Beltane já estavam acesas, e pela floresta ecoava o batuque de milhares de tambores.
Como se soubesse exatamente o que estava fazendo, Lúthien tomou para si as mãos do gamo e disse-lhe algo próximo ao ouvido que ninguém foi capaz de escutar. Mia olhou ao redor e respirou aliviada quando percebeu que não haviam estranhado a atitude de Lúthien. Em seguida, a loirinha beijou a testa sob a máscara e, com um gesto, autorizou que ele partisse, voltando então à caverna na qual deveria esperar pelo seqüestro.
A ruiva passou então a andar ao redor da caverna, espreitando à procura de qualquer sombra suspeita e cautelosa demais para ser um participante do ritual. Seu coração, no entanto, estava distante: vagava pelo passado, como se pudesse sentir a respiração ofegante de outro gamo. Um gamo que ela conhecia muito bem...
A dama de vermelho estava nua. Aquele não era o seu homem, não era o que ela esperava. Mas tinha se guardado para a deusa, e era assim que as coisas deveriam ser. Diferentemente de Mia, a dama de vermelho aceitava seu destino porque confiava no poder de um ser maior. Mia tentou se reconfortar com isto enquanto imagens do passado e do presente se fundiam, e era invadida e inebriada pela fumaça das fogueiras e pelo cheiro das ervas aromáticas.
O gamo ainda corria, e ela não conseguia dizer se o que via era aquele que pertenceu à dama de vermelho ou o atual, destinado à Liene, mas abençoado por Lúthien. Mesmo assim podia ver, como se tivesse os olhos do deus, que ele alcançava com rapidez o bando do gamo-rei.
Uma sombra cruzou por detrás de um grupo de árvores próximo à caverna e o coração de Mia deu um salto. Tentou focar a visão e identificar do que se tratava, mas o gamo continuava correndo em seu pensamento, estava cada vez mais próximo do objetivo. Ele ofegava, coberto de suor e perto o suficiente para desafiá-lo. Uma dor lancinante invadiu o peito de Mia quando ele finalmente atacou seu rival, e os chifres se enroscaram numa luta em que apenas um poderia sobreviver. Não foi capaz de identificar quem a tomava nos braços, nem tampouco o momento em que adentrara na caverna e Lúthien soltara um grito de pavor. Mia estava absolutamente em transe, o gamo vencia, suado, valente, mas o gamo não teria seu prêmio, a Deusa o abandonaria e a Terra seria engolida pelas trevas...
Gritou. Mas a voz havia morrido na garganta, e a visão se enevoava.
***
Moveu-se lentamente. Estava deitada sob algo fresco, com cheiro de terra molhada e grama. Sentiu os pulsos e tornozelos doerem. Abriu os olhos e percebeu que estavam atados por cordas brilhantes, muito provavelmente mágicas. Tentou enxergar além, mas não sabia onde estava. Tudo era completa escuridão e silêncio, apenas o brilho claro das cordas ao redor de seus membros quebravam o breu opressor.
Pensou em arriscar chamar por Lúthien e a culpa a corroeu por dentro. Se algo tivesse acontecido com a amiga, jamais se perdoaria. Afinal, aceitara aquele plano maluco, mesmo prevendo todos os riscos. Era certo que havia tentado persuadir a todos, mas seus amigos pareciam absolutamente convencidos do sucesso da empreitada. Então, era tarde demais para pensar em desistir. Precisava seguir adiante, mesmo que aquilo significasse sua própria morte. Se ao menos pudesse salvar aqueles a quem amava.
Vários estalos interromperam seus pensamentos e luzes de varinhas foram surgindo ao longo do que Mia percebeu ser uma clareira. Fechou os olhos rapidamente, fingindo estar desmaiada, mas não precisava mantê-los abertos para saber o que se passava: estava na Floresta Proibida, na companhia do grupo de Belatriz e Voldemort e, esperava, de seus amigos também.
Sem saber exatamente o porquê, lembrou-se de tia Gina. Ela, que ainda não havia feito as pazes com o senhor Malfoy desde que ele retornara, havia se prontificado a trabalhar ao lado dele para o bem maior. À imagem de Gina seguiu-se à de Harry, que mesmo tendo passado por tudo o que passara ainda tinha coragem para enfrentar seu destino e lutar para destruir Voldemort. Um a um os rostos e razões daqueles que batalhavam a seu lado apareceram em sua mente, Hermes, Daniel, Lúthien, os tios Fred e Jorge, seus pais, o senhor e a senhora Longbottom, até mesmo Snape e Draco, por mais que fossem adeptos de meios não tão corretos para alcançar seus objetivos. Foi como se estas imagens a inflassem de coragem para enfrentar o que quer que estivesse por vir. Seguido ao último estalo, um feitiço irrompeu dos lábios de uma das bruxas:
- Levicorpus!
Mia assustou-se enquanto seu corpo levantou no ar, ficando de ponta cabeça, as mãos e os tornozelos ainda atados. Ouviu o feitiço ser repetido na mesma entonação mais nove vezes e imaginou que todas as mulheres seqüestradas para o ritual haviam sido alçadas logo acima do chão, exatamente como ela. Uma parte de si queria abrir os olhos, mas sua razão ainda a comandava e fazia suas pálpebras permanecerem fechadas, sem que soubesse exatamente o motivo.
Sua cabeça começava a pesar quando uma risada estridente e insana cortou o ar, seguida do farfalhar de uma capa, como se a pessoa rodopiasse entre os corpos flutuantes numa estranha dança macabra.
- Mestre, meu amado mestre! Chegou o momento em que vamos conceber nosso herdeiro, aquele que dominará o mundo bruxo eternamente, imortal até o fim dos tempos com a transferência destas 13 almas! Assim seu domínio estará consolidado e ninguém será capaz de vencê-lo, meu Lorde!
- Calada, Belatriz – sibilou uma segunda voz, e o corpo de Mia arrepiou-se por completo. Aquilo não era humano, não parecia ter um pingo de sentimento. Ele continuava – Poupe-me de seus discursos baratos e ande logo com isso. Tenho negócios a administrar. Vou retomar Hogwarts e destruir um por um dos sangues-ruins e traidores do sangue que ali estiverem. Fui benevolente no passado – e Voldemort assumiu um fingido tom de bondade -, apenas quebrando varinhas e permitindo que eles continuassem a viver como trouxas. Mas não, não repetirei este erro novamente. Garantirei que todos sejam mortos. Mortos!
Um estranho comichão tomou o corpo de Mia, como se uma cãibra estivesse por vir. Achou que deveria arriscar abrir os olhos naquele momento, apenas para se certificar de onde Lúthien estava. Arrependeu-se no momento em que percebeu a presença de dezenas de Comensais da Morte, que rodeavam o círculo formado pelas 10 mulheres no centro da clareira.
Eles estavam de costas para ela, e Mia agradeceu intimamente por isto, e pela escuridão que fazia com que não percebessem imediatamente que seus olhos estavam abertos. No entanto, a presença de tantos seguidores do Lorde das Trevas dominou os pensamentos da jovem, que perdeu novamente a coragem e tornou a fechar os olhos, tentando organizar suas idéias em busca do que fazer.
A clareira caiu novamente no silêncio, mas era possível ouvir passos no centro dela, onde Belatriz deveria estar caminhando a fim de organizar o ritual. A cabeça de Mia girava e começava a latejar, e já se tornava difícil continuar virada para baixo, embora não tivesse muita opção. Viu-se pensando quanto tempo mais demoraria até que sua alma fosse arrancada à força pelas palavras mágicas de Belatriz. Além disso, sabia que o efeito da Poção Polissuco estava por terminar, pois se lembrava de Snape avisá-las para que aproveitassem o máximo o tempo disponível, já que possuíam apenas algumas poucas horas. Torcia para que Voldemort não tivesse meios de reconhecê-las, já que jamais haviam se confrontado diretamente.
Mesmo de olhos fechados, Mia percebeu que a claridade aumentava e deduziu que a lua cheia deveria estar no ponto alto do céu. Chegara a hora. Era tudo ou nada. Se houvesse alguma chance para os Renegados, seria apenas naquele momento, antes que o mundo bruxo caísse totalmente nas trevas.
A voz de Belatriz irrompeu novamente na clareira:
- Se no corpo agora descansa, longe dele ficará. Esta alma que aqui habita, em duas se partirá. Pelo sangue, pela morte, este pedaço libertará. Ao mestre que serve se unirá, para assim a terra dominar – a voz de Belatriz ser tornava cada vez mais inflamada enquanto ela continuava a entoar as rimas de seu ritual. A pulsação de Mia estava acelerada, a lua brilhava no céu, os Comensais se mantinham silenciosos e a voz da esposa do mal ecoava, cada vez mais ensandecida, como se ampliada para toda a floresta. – VENHAM, 13 ALMAS, VENHAM NESTA CRIATURA HABITAR. VENHAM HONRAR SEU NOME E SERVIR PARA SEMPRE AQUELE QUE AS LIBERTARÁ!
Era um mantra, Mia sabia, e precisava ser repetido. Ela começou a sentir um calor estranho no peito, uma sensação física que imaginava ser semelhante a um estrunchamento, algo que tentava separá-la em duas partes por dentro, como se ela fosse uma simples folha de papel que se pudesse rasgar ao meio. Somada a esta sensação sentia ainda a mutação proporcionada pela Polissuco se aproximar do fim, e seu rosto se contorcia em espasmos de dor e pavor.
Misturada à repetição constante e inflamada começaram a ecoar gritos de desespero, e Mia sabia que vinham daquelas mulheres, berros provocados pela dor lancinante do feitiço maldito da divisão das almas. Para criar aquelas horcruxes internas para seu filho, Belatriz e o Lorde das Trevas se aproveitavam da morte daquelas mulheres, fornecendo assim os pedaços de alma ao bebê ainda protegido pelo ventre da mãe e tornando-o absolutamente imortal. Para o Voldemort e sua concubina, apenas o fato de abrigar suas almas divididas em objetos não traduzia a essência do mal. Aquele bebê representava o avanço das artes das trevas, e mostrava que Voldemort estava disposto a tudo para alcançar o pleno domínio do mundo bruxo.
Ao menos haveria luta. E Mia teve certeza disso no exato momento em que estava a ponto de desistir. Porém, como se renovasse o fluxo de sangue que corria por seu corpo e lhe desse forças para lutar, seu ouvido foi invadido pelo rugido inconfundível de Norberta, o dragão fêmea de Hagrid. Quase que ao mesmo tempo sentiu o calor de sua baforada. Belatriz teve de interromper o mantra para se proteger das labaredas e, no segundo seguinte, Mia sentiu seu corpo desabar no chão fofo de folhas secas, os pulsos e tornozelos agora livres da magia que os prendiam. Então, abriu os olhos.
Feitiços ribombavam por todos os lados e ela não conseguia encontrar Belatriz e Voldemort. Olhou para cima e percebeu que Norberta não estava sozinha, mas vinha acompanhada de dois grandes dragões, um de escamas negras e outro de escamas vermelhas, este último muito parecido com aquele que Mia vira em sonhos e fora utilizado pela dama de vermelho para fugir de sua prisão na torre do castelo. Árvores pegavam fogo, assim como as vestes de alguns Comensais, que rolavam pelo chão para tentar apagá-las enquanto outros corriam e apontavam as varinhas para o alto sem sucesso.
- Mia! MIA!!!
Lúthien estava caída no chão logo adiante, parecendo transtornada pela primeira vez na vida, pelo menos do que Mia se lembrava. Já havia recuperado sua forma natural e nada mais nela lembrava o corpo de Liene, apenas as pinturas e o fato de não estar vestindo absolutamente nada. Seu rosto estava contorcido e, quando se aproximou, a ruiva percebeu que o tornozelo da amiga sangrava, com uma fratura exposta como resultado da queda depois do feitiço desfeito de Belatriz.
- Está doendo muito! – reclamou ela, os olhos repletos de lágrimas. – Faça alguma coisa, por favor, Mia, faça alguma coisa!
Ela não sabia o que fazer. Seu poder não permitia reconstituir ossos, e sabia que este procedimento mágico só seria possível com muito tempo de repouso e uma poderosa poção. Fez o que estava a seu alcance: rasgou a barra do vestido que usava, agora comprida demais para se ajustar em seu corpo. Com um pedaço menor, enrolou o tornozelo de Lúthien, enquanto outra parte do tecido era utilizada para cobrir o corpo da jovem da menor maneira possível.
Então, em meio ao caos, jogou Lúthien nos ombros e tentou afastá-la o máximo possível da confusão, enquanto continuava tentando avistar Belatriz e Voldemort. Porém, o que encontrou em sua corrida desajeitada sob o peso extra foi um par de olhos verdes que lutava bravamente com um Comensal logo adiante, os cabelos negros mais espetados do que nunca, as mãos impostas num jato de água congelante que tentava imobilizar a varinha do oponente. Não pensou duas vezes: impôs as mãos e o fogo atingiu o inimigo pelas costas, fazendo-o correr aos pulos para longe dos dois, provavelmente em busca de reforços. O barulho da confusão era ensurdecedor e Mia precisou gritar:
- DANIEL! PELO AMOR DE DEUS ME AJUDE! LÚTHIEN! - neste momento Mia notou que a amiga havia desmaiado de dor. Com um peso enorme nos ombros, tomou a decisão: - Fique com ela, eu preciso encontrar Voldemort.
Mia sequer escutou os protestos inflamados de Daniel e correu, correu pela clareira, atacando aqui e ali quem passasse por seu caminho e desviando dos feitiços que ricocheteavam das varinhas de ambos os lados. Precisava desviar também dos corpos caídos, e sequer havia tempo para reparar se eram amigos ou inimigos. Precisa encontrá-los, não podia deixá-los fugir, não naquela hora.
Seu coração pareceu falhar uma batida quando os olhos pousaram sobre o casal. Estavam próximos a um visgo do diabo que crescia encostado em uma caverna ao sul da clareira. Ninguém os via, iriam fugir. Desesperada, começou a correr em direção a eles, disposta a enfrentá-los mesmo que isto significasse a morte. No meio do caminho, no entanto, notou que não havia sido a única a vê-los: Harry também corria naquela direção, o rosto determinado e enfurecido, a varinha em riste na mão, como se não tivesse nada a perder. Mia obrigou suas pernas enfraquecidas a correrem com toda a velocidade que podiam e, no segundo seguinte, lá estava ela rodopiando, descontrolada, os rostos de Harry, Belatriz e Voldemort se fundindo, feitiços cortando o ar para todos os lados como fogos de artifício coloridos e a incrível sensação de ser sugada por uma mangueira apertada e desconfortável. A tudo isso se somou uma dor lancinante no braço esquerdo, como se alguém o estivesse cortando fora.
Concluiu três coisas: estava aparatando, estrunchando, e não fazia idéia de onde iria parar.
N/A: É, eu estou aqui! As coisas estão mudando de novo, perspectivas de novo emprego, alguns meses meio conturbados. De qualquer forma, pessoal, feliz 2009 para vocês e espero que ainda não tenham desistido dessa autora chata que demora tanto pra postar!
O próximo está a caminho, como sempre... espero não demorar muito...
Beijo grande!
Mia
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