O Jantar
Eu já fui à Casa Branca um montão de vezes. Tipo assim, se você mora na região de Washington D.C., mais ou menos na segunda série você passa a fazer uma visita praticamente anual à Casa Branca, e depois precisa escrever um relatório idiota a respeito do passeio. Sabe como é, MInha visita à Casa Branca. Esse tipo de coisa.
Já visitei todas as salas que eles mostram no tour: o Salão da Prataria Dourada, a Biblioteca, o Salão das Louças, o Salão dos Mapas, o Salão Leste, o Salão Azul, o Salão Vermelho, blablablá.
Mas, no domingo á noite, foi a primeira vez que eu visitei a Casa Branca não em excursão, mas como convidada de verdade.
Foi bem esquisito. Minha família inteira estava sentindo toda aquela esquisitice, menos, talvez, a Rebecca. Mas como ela havia acabado de receber um carregamento novinho de livros de Jornada nas estrelas da Amazon , com isso já era de se esperar.
Além disso, eu desconfio que a Rebecca seja, secretamente, um robô e, por isso, imune às emoções humanas.
O resto de nós, no entanto, estava totalmente atordoado. Dava para ver que a minha mãe estava particularmente nervosa, porque colocou o tailleus mais distinto que tinha no armário e também suas pérolas, um visual que só usava quando tinha que comparecer no tribunal, e arrancou o celular e o Pam Pilot do meu pai, para que ele não tentasse usar nenhum dos dois durante o jantar. A Molly (que, como parte importante da nossa família, também tinha sido convidada) usava sua melhor roupa de missa, que incluía sapatos de salto alto roxos com fivelas cintilantes, e não gritou conosco nem uma vez, nem quando o Manet entrou correndo como um louco lá de fora e sacudiu o corpo, espalhando água de chuva no tapete da sala, em que tinha acabado de passar aspirador.
Até mesmo a Lucy gastou umas duas horas a mais na sua rotina de beleza e saiu do banheiro com cara de quem ia apresentar um programa de televisão cheio de gente famosa, e não como alguém que ia jantar com uma família que morava quase no mesmo bairro que nós, se você parasse para pensar no assunto.
-Então, seja lá o que você fizer, Mione, não vai ficar tentando escolher a comida de que você não gosta embaixo do prato - disse Lucy enquanto saíamos da garagem com o carro, algo que não era nada fácil, já que ainda havia hordas de repórteres por ali, tentando fotografar cada movimento nosso. Eles gostavam de fazer coisas do tipo mergulhar no capô da minivan para tirar uma rapidinha do meu pai quando ele está a caminho da loja de conveniência para comprar leite. Dar ré na entrada da casa se transformou em uma ação perigosa porque sempre tinha uns dois ou três caras saindo à toda de trás do carro.
-Lucy! - eu já estava bem nervosa sem ninguém me encher. Não precisava mesmo que ela piorasse a situação ainda mais. - Caramba, eu sei como me comportar em um jantar, tá bom? Não sou criança.
O negócio é que, em casa, quando tem alguma comida de que eu não gosto no jantar, eu pego tudo e dou para o Manet por debaixo da mesa, e ele come qualquer coisa... cenoura, berinjela, ervilha, melão, salsicha , tudo o que você quiser. A primeira-família não tem cachorro. Eles são uma gente felina. Os gatos são legais e tal, mas não ajudam em nada pessoas frescas para comer como eu. Eu duvidava totalmente de que o primeiro-gato se dispusesse a mastigar qualquer pedaço de couve-flor que eu colocasse embaixo da mesa.
Então, a questão era: o que é que eu ia fazer se eles servissem brócolis (por favor, alguém me amordace) ou, pior ainda, qualquer coisa com tomate ou peixe, duas coisas que eu não suporto e que sempre aparecem em refeições chiques? Eu sabia que não dava para esconder coisas embaixo do prato. Supondo que alguém o pegasse e visse tudo aquilo ali embaixo? Isso seria quase tão vergonhoso quanto ter desenhado um abacaxi.
Foi esquisito virar na Pennsylvania Avenue. Normalmente, a parte da rua que fica na frente da Casa Branca é totalmente fechada para os carros. A única maneira de passar na frente da cerca que protege a casa do presidente é a pé.
Mas, como éramos convidados especiais, pudemos atravessar a enorme barreira que bloqueia a rua. Um monte de policiais estava ali, e eles conferiram a placa do nosso carro e a carteira de motorista do meu pai, daí abaixaram a barreira e nós passamos por cima dela.
E daí ficamos na frente do número 1600 da Pennsylvania Avenue, que é o endereço da Casa Branca.
Mas a gente não era, de jeito nenhum, as únicas pessoas que estavam por ali. Para começar, o lugar estava lotado de guardas, a cavalo ou de bicicleta e também a pé. Eles estavam todos por ali, conversando entre si. Olharam para o nosso carro com curiosidade quando passamos. A Lucy acenou. A maior parte deles respondeu com outro aceno.
Mas não eram só guardas que estavam ali pela frente da Casa Branca. Tinha uns caras vendendo camisetas e bonés do FBI e uns caras com display de cartolina do presidente em tamanho real; você podia sentar ao lado das figuras e tirar uma foto, na frente da Casa Branca.
E, apesar de já estar escuro lá fora, tinha um monte de turistas, famílias inteiras, todos pedindo uns aos outros que tirassem fotos deles na frente da enorme cerca de ferro batido preto que circundava a casa do presidente.
Também tinha manifestantes. Alguns estavam ali havia obviamente muito tempo, já que tinham até construído uma favelinha de barracas e de cabanas de compensado, com faixas esticadas na frente, mostrando a causa que defendiam. CHEGA DE ARMAS NUCLEARES, dizia uma. Outra, mostrava: VIVA COM A BOMBA, MORRA COM A BOMBA. Preciso reconhecer que, no que diz respeito a radicais, eles não pareciam formar uma turma muito impressionante.
E além do mais, estava bem frio e chovia um pouquinho. Quem é que vai querer fazer uma manifestação na garoa?
Finalmente, tinha repórteres. Tinha um montão de repórteres. Quase tantos quanto na frente da nossa casa quando saímos. Só que a Casa Branca tinha reservado um lugar especial no gramado para os jornalistas se aglomerarem no jardim. Eles tinham luzes enormes e um monte de microfones a postos, um para cada rede de televisão. Quando viram nossa minivan se dirigindo para o Portão Noroeste de Compromissos (para onde tínhamos sido enviados pelos guardas da primeira barreira) os repórteres começaram a se projetar em nossa direção, e o pessoal das câmeras começou a virar suas luzes fortíssimas para nós.
-Ali está ela! – eu os ouvia dizer, apesar de todas as janelas estarem fechadas. – É ela! Tira a foto! Tira a foto!
E não eram só os repórteres que estavam tentando tirar fotos do nosso carro, conosco lá dentro. Todos os turistas que estavam parados na frente da cerca de ferro batido se viraram quando perceberam a confusão e também começaram a tirar fotos de nós. Foi tipo encostar uma limusine na entrada do Oscar, ou qualquer coisa assim. Só que a gente estava em uma minivan Volvo, e não tinha mesmo nenhuma atriz famosa por ali.
Uns caras de uniforme saíram da guarita atrás do portão e olharam para as hordas de repórteres em disparada por cima do ombro. Um deles deu um passo à frente para bloquear o caminho que eles estavam usando para chegar até o carro, enquanto o outro fez sinal para que entrássemos pelo portão que se abria lentamente.
Enquanto tudo isso acontecia, minha mãe virou-se do assento direito dianteiro e mandou, com uma voz grave e em tom de súplica:
-Lucy, eu apreciaria imensamente se, pelo menos desta vez, você não ficasse falando de roupas durante toda a refeição. Rebecca, eu sei que você tem algumas perguntas para fazer ao presidente a respeito do que aconteceu em Roswell, mas estou fazendo um pedido pessoal para que você as guarde para si. E Hermione. Por favor. Estou implorando: não comece a brincar com a comida. Se você não gostar de alguma coisa, simplesmente deixe no prato. Não vai ficar lá meia hora só mudando a disposição das coisas.
Achei que isso foi injusto. Quando você muda a disposição da sua comida, a maior parte das pessoas acha que você comeu pelo menos um pouco.
E daí entramos pelo portão aberto, deixando para trás os repórteres, os flashes das câmeras e as lâmpadas fortíssimas, em direção à porta da frente da Casa Branca.
Quando você está na frente da casa do presidente, mesmo que seja da cerca de ferro, na Pennsylvania Avenue, a casa onde o presidente mora parece meio pequena. Isso porque a rotunda, que é aquela coisa redonda cheia de pilares que sai do meio da Casa Branca, na verdade é a parte do fundo da casa. A frente, onde fica a entrada, não é nem de perto tão impressionante. Na verdade, sempre que eu via aquilo, ficava me perguntando como é que conseguiam enfiar tantos salões em um lugar tão pequeno.
Mas daí, quando você vê uma foto dos fundos da casa, que é o lugar que sempre aparece nas notícias, nos filmes e nessas coisas, você fica tipo: Ah, ta, já entendi.
Quando estacionamos na frente da casa, um homem de uniforme que estava parado na frente da porta se retesou em uma pose de total atenção enquanto um outro veio abrir a por ta da minha mãe.
Daí nós todos pisamos em um tapete vermelho e a porta da frente se abriu, e lá estava a primeira-dama nos cumprimentando e nos convidando para entrar. Bem atrás dela estava o presidente, que apertou a mão do meu pai e disse:
-Como vai, Richard?
Ao que meu pai respondeu:
-Muito bem, obrigado, senhor Presidente.
Então o presidente e sua mulher nos conduziram para dentro da Casa Branca tão casualmente como se apenas tivéssemos dado uma passadinha ali para um churrasco no quintal ou qualquer coisa assim. Só que, obviamente, ninguém usa meia-calça fina nem tailleur da Ann Taylor para um churrasco no quintal. Preciso reconhecer apesar de todo mundo estar sendo tão atencioso e tal, que me sentia bem desconfortável. E não era só por causa do meu gesso idiota, nem porque a Lucy tinha me obrigado a usar o condicionador de cavalo de novo, de modo que o meu cabelo parecia macio fora do normal, nem mesmo porque eu sabia, simplesmente sabia, que de um jeito ou de outro ia acabar aparecendo couve-flor no meu prato. Mas eu estava entrando em pânico porque, por mais à vontade que o presidente e sua mulher parecessem, a gente estava na Casa Branca.
E nem era naquelas partes que você vê no tour público, mas sim na parte da família, que ninguém nunca vê, a não ser na TV, e mesmo assim sempre é mostrando a idéia que um diretor qualquer faz de como são os aposentos reservados da família, e não a coisa como é de verdade. A decoração de fato parecia como a de uma pousada, para mim, tipo uma em que nos hospedemos uma vez em Vermont. Mas daí eu achei que talvez não estivesse sendo justa, porque o presidente e a família dele só moravam lá havia pouco mais de um ano e talvez ainda não tivessem tido tempo de se acomodar.
E, além disso, esta aqui não era a casa de verdade deles.
Daí entramos na sala e a primeira-dama nos mandou sentar e ofereceu algo para bebermos, e eu me sentei, e o Harry entrou..
.
E estava exatamente igual àquele dia no ateliê da Susan Boone! Estava usando uma camiseta da Big Fish em vez da Save Ferris. Mas, fora isso, era como se aquele outro Harry, com as calças de pregas, nem mesmo existisse.
-Ah, Harry – disse a mãe, desolada, ao vê-lo. – Achei que tinha mandado você se trocar para o jantar.
Mas o Harry só sorriu e esticou o braço para pegar um pouco de mix de castanhas no potinho que estava sobre a mesinha de centro na minha frente.
-Eu me troquei para o jantar sim – respondeu.
Percebi que ele só pegou as castanhas de caju salgadas e deixou as castanhas-do-pará no potinho. Eu entendia perfeitamente. Castanhas-do-pará são horríveis.
Daí o jantar ficou pronto. Comemos em uma das salas de jantar formais. Dava para ver que a Lucy ficou muito feliz com isso, já que a roupa dela, que era azulão, combinava melhor com a decoração da sala de jantar formal do que com a da particular. A Molly também ficou animada com o serviço de jantar. Era a louça formal da Casa Branca, com a borda de ouro de verdade. Molly disse que não se pode colocar pratos com bordas de ouro no lava-louças, é preciso lavar tudo na mão. A idéia de que alguém iria lavar a mão o prato em que Molly estava comendo a deixava muito feliz.
Eu era provavelmente a única pessoa infeliz na sala. Isso porque, assim que nos sentamos, percebi que estava encrencada, já que a primeira coisa que serviram foi uma saladona com tomates-cereja gigantescos. Por sorte, o molho era OK, do tipo normal de iogurte, de modo que eu comi toda a alface em volta dos tomates e fiquei torcendo para ninguém perceber que eles continuavam ali.
Só que, infelizmente, eu estava sentada no lugar de honra, bem do lado do presidente, e ele reparou total. Ele se inclinou para mim e mandou:
-Sabe que esses tomates aí foram importados da Guatemala? Se você não comer, vai causar o maior incidente internacional.
Eu tinha certeza de que ele estava brincando, mas não foi nada divertido para mim. Eu não queria que ninguém pensasse que eu não estava apreciando totalmente o fato de eles oferecerem um jantar tão bacana para a gente, ou qualquer coisa assim.
De modo que o que eu fiz foi colocar os tomates dentro do guardanapo dobrado no meu colo quando ninguém estava olhando.
Isso funcionou surpreendentemente bem. Tão bem que, no prato seguinte, que era sopa de marisco tipo New England, eu comi toda a sopa e daí, de novo quando ninguém estava olhando, coloquei todos os pedacinhos de marisco no guardanapo.
Quando a sobremesa estava para ser servida, já tinha meio quilo de comida no meu guardanapo, inclusive um pedaço de linguado recheado de caranguejo; uma seleta de legumes com ervilhas, cenouras e cebolinhas; algumas batatas coradas e um pedaço de focaccia de cebola.
Foi muito fácil para mim esconder toda essa comida, já que os adultos estavam envolvidos em uma conversa muito animada a respeito da situação econômica na África do Norte. A única coisa que eu não consegui me esquivar de comer foi o tomate cortado para parecer uma rosa, que foi servido como guarnição das batatas coradas, e que a primeira-dama colocou no meu prato, toda gentil.
-Uma rosa para uma rosa – disse, como um sorriso simpático.
O que eu podia fazer? Tinha que comer. Todo mundo estava olhando para mim. Engoli o melhor que pude em uma única bocada e tomei por cima mais ou menos a metade do meu copo de chá gelado, que foi a bebida destinada para o pessoal menor de 21 anos. Quando coloquei o copo na mesa, vi que a Rebecca, que tinha começado a me observar com extrema atenção no minuto em que a primeira-dama colocou o tomate no meu prato, fez uma coisa muito estranha: ergueu as mãos e fingiu que estava aplaudindo. Às vezes ela faz umas coisas fofas assim, que me fazem desconfiar que talvez ela não seja um robô, no final das contas.
Foi mais ou menos a essa altura que percebi uma coisa terrível: meu guardanapo estava vazando. Aquele monte de comida lá dentro ainda não tinha manchado a minha saia, mas isso ia acontecer já, já. Eu não tinha outra saída além de pedir licença e fingir que ia ao banheiro. Então, bem sorrateira, levei o guardanapo comigo, todo amassado na mão, como se tivesse esquecido que ele estava lá.
Para todo lado que se vai na Casa Branca, tem agentes do Serviço Secreto de olho em você. Na verdade, são uns caras e umas moças bem legais. Quando saí da sala de jantar, perguntei a uma delas onde ficava o banheiro mais próximo e ela me acompanhou até lá.
Quando estava trancada lá dentro, em segurança, joguei o jantar na privada e dei a descarga. Eu me senti meio mal, desperdiçando toda aquela comida, quando tem um monte de gente morrendo de fome, sabe como é, tipo o pessoal que mora nos Apalaches.
Mas o que mais eu podia fazer? Teria sido muita falta de educação ter deixado tudo aquilo no prato.
O problema do guardanapo, ensopado de caldinho de carne de caranguejo, foi resolvido com muita facilidade pois o banheiro, que era muito chique, tinha um monte de toalhas de mão para os visitantes, e uma cesta dourada para joga-las depois de usar. Lavei as mãos, usei algumas toalhinhas e as joguei na cesta, em cima do guardanapo. Quem esvaziasse a cesta ia achar que eu simplesmente tinha me distraído e jogado o guardanapo ali.
Eu estava me sentindo muito bem com aquilo tudo (menos com o fato de que, sabe como é, eu estar quase morrendo de fome, já que não tinha nada no estomago além de uma guarnição de tomate) quando, no caminho de volta até a sala de jantar, eu praticamente deu um encontrão no Harry, que parecia estar indo em direção ao banheiro do qual eu acabara de sair.
-Ah – exclamou quando me viu. – E aí?
-Tudo certo – respondi. Daí, porque aquilo era estranho, por ele ser o filho do presidente e tudo mais, tentei me desviar dele e sair fora o mais rápido possível.
Só que não fui rápida o bastante, já que ele me deu aquele sorrisinho dele e mandou:
-Então. Você não jogou o guardanapo na privada também, jogou?
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