Ai Meu Deus
Eis o que acontece quando você impede que um loco mate o presidente dos Estado Unidos.
De repente, todo mundo (todo mundo, no mundo inteiro) quer ser seu amigo.
Falando sério.
E não é só gente que envia balões desejando melhoras e ursinhos de agradecimento (tudo foi doado para a ala infantil antes de partirmos). Quando cheguei em casa do hospital, no dia seguinte àquele pequeno incidente na frente da Capitol Cookies, tinha 167 mensagens na nossa secretária eletrônica. Só umas vinte eram de pessoas que eu de fato conheço mais ou menos e tipo, de gente como a minha avó ou a Luna ou alguém assim. Todo o resto era de repórteres e de gente igual à Gina Weasley, que parecia ter esquecido tudo a respeito daquele negócio de fonoaudiologia.
-Oi Mione – ela cantou com aquele voz falsa de Gina Weasley. – Sou eu, a Gina! Só estou ligando para saber se você quer vir à minha festa no próximo sábado à noite. Meus pais vão estar em Aruba, então a gente vai detonar! Mas só vai ser legal se você vier.
Não dava para acreditar. Tipo assim, é de se pensar que a Gina pelo menos tentaria ser um pouco mais sutil do que isso. Ela não me convidava para ir a uma festa na casa dela desde a segunda série, e lá estava ela, fazendo as pazes como se nunca tivéssemos deixado de ser amigas. Era irreal.
Mas a Lucy não dividia minha revolta. Ela só mandou:
-Que legal, festa na Gina. Vou levar o Draco.
Ao que meus pais responderam, em uníssono:
-Ah, não, não vai não – e logo aproveitaram para falar também que não tínhamos permissão para ir a festas onde não houvesse pelo menos um adulto responsável. Principalmente se fosse na companhia de Draco, que fora pego nadando pelado na piscina do Clube de Campo de Chevy Chase, no último baile de Natal. (Como os Malfoys eram sócios, o incidente foi abafado. Mas, por azar, não tão abafado a ponto de os meus pais não ficarem sabendo. Acho que eles ficariam mais felizes se a Lucy saísse com um cara que nunca questionasse a autoridade e aceitasse docilmente tudo o que fosse despejado em cima dele, como a maior parte dos integrantes da nossa geração, em vez de alguém que pensa por si, como o Draco.)
A Lucy não pareceu muito preocupada com o fato de nossos pais dizerem que ela não podia levar o Draco à festa da Gina. Em vez disso, foi até a janela para acenar mais um pouco para os repórteres que estavam estacionados no nosso gramado.
Mas o recado da Gina Weasley nem era o mais inacreditável de todos. Também recebemos ligações de metade dos repórteres que tinham estado na coletiva de imprensa, querendo saber ser era possível marcar entrevistas exclusivas comigo. Todos os programas de notícias da TV (tipo 60 minutos, 48 hours, Dteline, 20/20) queriam fazer uma reportagem comigo, e pediram que entrássemos em contato assim que possível.
Fala sério. Como se desse para ficar uma hora falando de mim. A minha vida não passa de uma série de humilhações, uma seguida da outra. Se eles quiserem se aprofundar na minha língua presa e em como eu me curei do meu desejo irracional de xingar a Gina Weasley com todos os palavrões com S que existiam, bom, então que ótimo para eles. Mas, de certo modo, eu suspeitava que eles estavam atrás de alguma coisa mais na linha do triunfo da alma humana.
Depois, foram as ligações das empresas de refrigerante. Fala sério. A Coca-Cola e a Pepsi queriam saber se eu estava interessada em assinar contratos de propaganda. Tipo assim, como se eu fosse ficar parada na frente de uma câmera e mandar: “Beba Coca-Cola, como eu faço. Daí você também pode se jogar em cima de um fã maluco da Christie Brinkley e quebrar o pulso em dois lugares.”
Finalmente, o recado mais perturbador de todos, era aqueles que eu mais temia. Cheguei mesmo a esperar, contra todas as possibilidades, que essa mensagem não tivesse mais lá quando ouvimos todos os recados de novo. Mas eu estava errada. Super errada.
Porque o recado número 164 continha o seguinte texto, falado por uma voz bastante conhecida:
-Hermione? Oi, aqui é a Susan Boone. Sabe como é, do ateliê. Hermione, eu gostaria muito que você me ligasse assim que receber este recado. Precisamos conversar a respeito de algumas coisas.
Ao ouvir isso, é claro que eu entrei em pânico. Pronto. Todas aquelas súplicas para os caras do Serviço Secreto tinham sido em vão. Meu segredo estava destruído. Eu estava morta.
Precisei retornar a ligação de Susan Boone em segredo (assim, ninguém ia ouvir por acaso o que eu achava que seria um monte de humilhação da minha parte), e por isso precisei ficar rodeando o meu pai e esperando ele terminar de falar com a companhia telefônica para que trocasse o número, por um que não estivesse na lista. Tivemos de fazer isso porque algumas das 167 mensagens tinham sido um pouco efusivas demais, você sabe do que eu estou falando. Uns caras tipo o Lary Wayne Rogers (agora o Lary Wayne Rogers estava enfiado em alguma cela de prisão de segurança máxima, esperando pela audiência preliminar com o juiz) que queriam mesmo, mesmo, me conhecer. Aparentemente, para eles, minha foto pavorosa da carteirinha de estudante não era nada desanimadora.
Os Caras do Serviço Secreto sugeriram que mudássemos o número do nosso telefone e talvez instalássemos um sistema de alarme na casa. Eles continuavam por ali, no geral mantendo as pessoas afastadas, enquanto alguns guardas municipais controlavam o trânsito na nossa rua, que de repente começou a receber tráfego quatro ou cinco vezes maior do que o normal: as pessoas que tinham descoberto onde eu morava passavam na frente de casa bem devagarzinho, tentando me ver, nem que por um segundo (mas não me pergunte por quê). É muito raro eu estar fazendo qualquer coisa interessante, A maior parte do tempo eu só fico no meu quarto comendo tortinhas doces e desenhando retratos do Draco ao meu lado, mas tanto faz. Acho que o pessoal só queria ver como era a cara de uma heroína nacional de verdade.
Porque é isso que eu sou agora, goste ou não. Uma heroína.
E isso é só um nome diferente, parece, para alguém que estava no meu lugar errado, na pior hora possível.
Bom, quando o papai acabou de falar com a companhia telefônica, eu retornei a ligação da Susan Boone (mas só depois de pedir conselhos a Luna).
-Jantar? – foi tudo o que ela conseguiu dizer. – Você leva uma bala pelo presidente dos Estados Unidos e tudo o que ganha é um jantar?
-Eu não levei bala nenhuma por ele – lembro a ela. – E é um jantar na Casa Branca. E podemos por favor não nos desviar do assunto em questão? O que é que eu vou falar para a Susan Boone?
-Qualquer um pode jantar na Casa Branca se pagar bem – Luna parecia verdadeiramente revoltada. – Eu achei que você ia ganhar algo melhor do que um simples jantar. Você deveria receber pelo menos uma medalha de honra, ou qualquer coisa assim.
-Bom – respondi. – Talvez eu receba. Talvez eles me dêem uma no jantar. Mas me fala, o que é que eu vou dizer quando ligar para a Susan Boone?
-Hermione – disse Luna com uma voz mais próxima de impaciência que eu jamais a escutara falar. – Eles não entregam medalhas durante jantares. Fazem uma cerimônia especial para isso. E você salvou a vida do presidente. Sua professora de desenho nem vai ligar que você cabulou aquela aula idiota.
-Não sei, Lu – respondi. – Tipo assim, a Susan Boone é muito séria quando se trata de arte. Ela deve estar ligando para me expulsar do curso ou algo assim.
-E daí? Eu achava que você queria ser expulsa da aula. Eu achei que você odiasse aquilo, não estou certa?
Pensei sobre o assunto. Será que eu tinha odiado? Bom, não a parte de desenhar. Isso tinha sido bem divertido. E também gostei da parte em que o Harry disse que gostava da minha bota.
Mas o resto (a parte em que a Susan Boone tentou acabar com o meu direito à expressão criativa e impedir que eu desenhasse com o coração, fazendo com que eu me sentisse humilhada e envergonhada na frente de toda aquela gente, inclusive, agora eu sabia, o filho do presidente dos Estados Unidos) tinha sido um vexame.
No geral, concluí, ser expulsa da aula de arte da Susan Boone até que não seria nada mau.
Assim que terminei de falar com a Luna, disquei o número da Susan Boone, ansiosa para acabar com aquilo de uma vez.
-Hum, oi – falei, hesitante, quando ela atendeu. – Aqui é a Hermione Granger.
-Ah, olá – respondeu Susan Boone. Ouvi um grasnado conhecido no fundo. Então o corvo Joe não morava no estúdio, ele ia e voltava de lá com a dona. Que vida boa para um pássaro grande e feio daqueles, que ainda roubava cabelo. – Obrigada por retornar a minha ligação, Hermione.
-Hum, não tem problema – respondi. Daí, depois de respirar bem fundo, arrisquei: - Olha, peço mil desculpas pelo outro dia. Não sei se a senhora soube o que aconteceu...
Susan Boone me surpreendeu quando começou a rir.
-Hermione, não existe ninguém ao sul do Pólo Norte que não saiba o que aconteceu com você na porta do meu ateliê, ontem.
-Ah – fiz eu. – Então me apressei para falar logo a mentira que tinha inventado. Se eu fosse o Draco, teria simplesmente contado a verdade; sabe, que eu tinha ficado ofendida com a tentativa dela se subjugar a minha integridade artística.
Mas já que não sou o Draco, simplesmente articulei a primeira coisa que veio à minha cabeça.
-O negócio é que... é, eu não fui á aula porque estava chovendo muito, sabe como é, e eu fiquei muito molhada, sabe como é, então dei uma parada na Static para me secar, sabe como é, antes da aula, e daí eu não sei o que aconteceu, mas acho que tipo perdi a noção do tempo, e quando eu percebi, já...
-Isso não tem a mínima importância, Hermione – Susan Boone, para a minha grande surpresa, interrompeu. Reconheço que não foi a melhor mentira de todas, mas foi a melhor que eu consegui inventar. – Vamos conversar a respeito do seu braço.
-Meu braço? – olhei para o gesso. Já estava ficando tão acostumada com ele que era como se sempre estivesse estado lá.
-Isso mesmo. Você quebrou o braço que usa para desenhar?
-Hum. Não.
-Que bom. Então, vejo você na aula de terça-feira?
Foi então que um pensamento nada generoso em ocorreu. Penseu que a Susan Boone, igual à Coca-Cola e a Pepsi, só queria que eu continuasse na escola de arte dela para usar a minha celebridade para se promover.
Bom, e por que é que eu não deveria ter pensado isso? Tipo, ela não tinha se esforçado nem um pouco para dizer que eu era ótima artista nem nada na única vez que apareci na aula.
-Veja bem, Sra. Boone - comecei, imaginando como é que eu ia falar o que eu tinha para dizer (aquele negócio de ela reprimir minha criatividade, e onde estaríamos se alguém tivesse feito isso com o Picasso) de maneira a não ofendê-la. Porque, sabe como é, ela parecia uma senhora bem legal, tirando a coisa de não ter gostado do meu abacaxi e tal.
-Susan - corrigiu ela.
-Como?
-Pode me chamar de Susan.
-HUm. Está bem. Susan. Acho que não vou ter muito tempo para ir à aula de desenho agora - e daí que isso não tinha a menor chance de funcionar? Valia a pena tentar. E era melhor do que falar a verdade. E, tipo assim, era totalmente razoável, com todos aqueles repórteres no nosso gramado, os pescoçudos percorrendo nossa rua de cima a baixo e todos aqueles dementes deixando recados na nossa secretária eletrônica, que os meus pais bem que podiam esquecer totalmente daquele negócio de aula de arte. Sob aquelas circunstâncias, aquela minha nota baixa em alemão até que não era tão pavorosa.
-Mione - interrompeu Susan Boone, com ruim tom de voz muito franco. - Você tem muito talento, mas nunca vai aprender a desenhar bem mesmo se não parar de pensar tanto e começar a enxergar. E você só vai conseguir fazer isso se se dedicar a aprender.
Aprender a enxergar? Fala sério. Talvez a Susan Boone pensasse que os meus olhos, e não o meu braço, tinham sido afetados pelo pequeno embate de que participei na porta do ateliê dela.
Tarde demais, percebi o que ela estava tentando fazer. Exatamente aquilo contra o que Draco tinha me alertado! Queria fazer com que eu começasse a desenhar com os olhos, não com o coração!
Mas antes que eu pudesse dizer algo do tipo: “Não, obrigada, Sra. Boone, não estou interessada em ser transformada em mais um dos seus robôs pintores”, ela mandou:
-Vejo você na aula de terça-feira, ou então vou ter que dizer aos seus pais como todos sós sentimos a sua falta ontem.
Uau. Isso sim que era ser ríspida. Ríspida demais. Principalmente para a rainha dos elfos.
-Hum – engasguei. Desisti de lutar contra o sistema. Todo o espírito de luta instantaneamente me abandonou. – Tudo bem. Acho.
-Muito bem – respondeu Susan Boone, e desligou o telefone. Logo antes de eu ouvir o estalo do telefone no gancho, Joe grasnou, no fundo: “Corvo lindo. Corvo lindo.” E daí, mais nada.
Ela tinha me pegado. Tinha me pegado na curva, totalmente e, pior de tudo, ela sabia disso. Ela sabia! Quem pensaria que uma rainha dos elfos tinha a capacidade de ser tão maldosa?
E daí eu ia ter que voltar lá... voltar para a aula da Susan Boone com todo mundo da classe sabendo que eu tinha cabulado a última aula. E provavelmente sabendo também por que eu tinha cabulado. Sabe como é, por causa daquele negócio de ser humilhada publicamente na sessão de crítica da aula anterior.
Caramba! Que sacanagem!
Eu estava ali parada, sacudindo a cabeça, quando a Lucy entrou no meu quarto sem bater na porta, como ela sempre fazia.
-Pronto – declarou.
Naquele instante eu já devia ter percebido que estava encrencada, porque a Lucy estava munida de uma prancheta e uma caneta. Além disso, estava usando a roupa com mais cara de executiva que tinha, a minissaia xadrez verde com uma blusa branca e um colete de lã.
-Amanhã, programei para você almoço e compras com as garotas, em Georgetown – disse, consultando a prancheta. – Depois, amanhã à noite, você, o Draco e eu vamos ver o filme novo do Adam Sandler. Você vai ter que fazer uma aparição tanto na sessão de cinema quanto na pizzaria Luigi’s depois. Daí, no domingo, temos um brunch com a equipe de animadoras de torcida, depois do jogo. Daí, no domingo à noite, é o jantar com o presidente. Não dá para escapar desse aí, eu já tentei. Mas talvez, depois do jantar, alguém possa nos levar rapidinho até a Luigi’s de novo, só para ver o que está rolando. Algumas pessoas da turma apareceram por lá no domingo à noite para fazer a lição de casa em grupo. Daí, na segunda-feira... presta muita atenção agora, Mione, porque é importante... na segunda-feira a gente ai lançar o seu novo visual. Além do mais, você também vai ter que acordar mais ou menos uma hora antes do normal.Tipo assim, não dá mais para você sair da cama e vestir a primeira coisa que vê na frente e ir para a escola como se estivesse fazendo algum trabalho comunitário e ninguém fosse prestar atenção em você, ou qualquer coisa assim. Você vai mesmo precisar começar a se esforçar. Além disso, vai demorar pelo menos meia hora, todo dia, para arrumar o seu cabelo.
Fiquei olhando para ela, atônita.
-Quê? O que é que você está... dizendo? – falei bem devagar porque a minha língua de repente parecia um peso morto.
A Lucy parecia impaciente. Daí, ela se jogou na minha cama, entre mim e o Manet.
-Bobona, agora você tem uma agenda social – informou Lucy. – A partir de agora, eu organizo todas as suas aparições públicas, ta bom? Você nem precisa se preocupar. Não que vá ser fácil. Não me leve a mal. Tipo assim, vamos encarar, sua cotação está meio baixa. E o fato de você andar com a Luna não ajuda em nada... ela é bem legal e tal, mas tem problemas sérios com a moda. Dá para superar se você, sabe como é, parar de falar com ela na escola, ou qualquer coisa assim. Mas bom, a única coisa que eu preciso saber é se você tingiu todas as suas roupas de preto? Tem certeza de que não sobrou nadinha?
-Lucy – murmurei. Não dava para acreditar que aquilo estava acontecendo. Não mesmo. – Sai do meu quarto.
A Lucy jogou em cima de mim todo aquele cabelo comprido e sedoso dela.
-Ah, Mione, dá um tempo. Não faz isso. Uma oportunidade dessas não aparece todo dia. A gente precisa aproveitar quando vem. É igual àquela história grega da felicidade com cabelo na testa, que o papai vive contando. A gente tem que agarrar pelo cabelo quando chega, e se deixar passar já era, porque atrás é careca. Se bem que, se eu fosse ficar um careca, deixava passar, porque aí não dá, né.
-LUCY! – gritei com toda força, pegando um sapato e jogando na direção dela. – SAI DO MEU QUARTO!
A Lucy desviou do sapato e, com ar de ofendida, levantou-se para sair.
-Credo – reclamou. – A gente bem pode tentar fazer um favor para alguém. Você vai ver se algum dia vou ajudar você de novo.
Então, para meu imenso alívio, ela saiu do quarto batendo o pé, deixando-me sozinha com minha falta de popularidade.
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