Capítulo 11
Cap. 11 Mais explicações e coisas que não deveriam acontecer
Fazem três dias que eu fiquei sabendo o que Anny realmente é, e três dias também que eu vi Marrie Therisford morta em campo. Tudo ocorreu como Anny tinha dito, o dia amanheceu cinzento, nublado, sem sol. Todas as plantas que estavam na casa (apenas alguns vasos) murcharam e adquiriram uma cor feia, acinzentada, sem vida. Eu fui tomar café no Caldeirão Furado (coberto com uma capa e sem mostrar o rosto), e não havia o barulho habitual, burburinho e conversas. Até mesmo o atendente, um homem chamado Tom, eu acho, parecia triste. Ele comentou:
-Hoje o dia está fechado... - provavelmente ele esperava um outro comentário de volta da minha parte, mas este não veio. Ele então continuou. - Me sinto até um pouco preocupado, acordei hoje prevendo que o dia não iria dar muito lucro, e veja como eu estou certo... Que desânimo... Que desânimo. - Ele se afastou sussurrando após deixar a comida na minha mesa. E anotei o fato mentalmente, ele encarava o vazio no peito e a sensação de tristeza como desânimo pelo bar vazio. Era tudo verdade, eu ainda podia sentir dentro de mim, como na noite anterior. Votei para casa mesmo, acho que esperava encontrar alguém lá, alguém que conseguisse sorrir enquanto todos estavam daquele jeito.
Então foi ao descer pelo túnel que eu percebi que a pessoa a quem eu esperava era Marrie, mas eu nunca mais veria ela, os cabelos claros e os olhos verdes intensos, e de repente aquela sensação se intensificou no meu peito. A chuva já caia lá fora e um vento cortante entrava pelas janelas encantadas. Eu fiquei apenas sentindo o efeito que aquilo tinha sobre mim, como eu poderia chamar aquilo? Seria... saudade? Estaria eu tornando-me fraco e exposto a esse tipo de sentimentalismo? Amizade? Sim talvez... talvez eu estivesse me tornando um tolo sentimental, mas o que eu posso fazer? Eu me levantei do sofá onde eu havia me atirado logo que cheguei. Dei alguns passos na direção daquela porta, do quarto dela, eu não via Anny há dias.
Detesto admitir, mas aquilo me preocupava, ela conseguiu me balançar com todo aquele jeito, tudo, tudo nela lembrava um pouco de mim. Não sei porque, aliás já faz algum tempo que eu não sei “o porque” de nada.
O mistério dela me envolvia, mas... As lembranças do seu beijo estavam frescas em minha memória, de tudo que eu senti e principalmente do que ela me disse. Fowl era uma mulher cheia de mistérios e cativante, mas totalmente diferente de Helena. Ela nada me lembrava Virgínia. Helena tinha uma vivacidade diferente e admirável, Anny era envolvente de uma forma solitária.
Eu continuava parado em frente a porta com a mão pousada na maçaneta. Eu abri. A atmosfera do quarto era a mesma da noite há três dias, fria, triste, cinzenta e chuvosa. Nada havia mudado ali, e nenhum sinal de Anny, continuava vazio. Eu dei alguns passos em frente e olhei pela milionésima vez o espelho do quarto. Parecia um espelho normal. Será que Anny voltaria? Quando? Estas duas perguntas eu vinha me fazendo desde que eu vira ela desaparecer ali. Eu andei mais um pouco e me sentei na cama e pus a cabeça nas mãos. Quanta coisa tinha acontecido... Eu era apenas apaixonado por uma certa ruiva e por motivos de força maior me vejo sem ela e hospedando uma morena estranha, que possui hábitos estranhamente parecidos com os da ruiva que supostamente deveria estar longe de tudo. Mas de repente eu me vejo totalmente atraído pela morena e durante uma batalha no meu leito de morte eu vejo Helena se tornar Virgínia e ser afastada brutalmente de mim. Acordo algum tempo depois na casa de uma francesa e de uma irlandesa pelas quais eu fui salvo. Descubro que a minha noiva, a ruiva que se transformou na morena mas que no fim era a ruiva, está novamente morena com o cara que eu mais odeio na vida. E ah, claro, acha que eu estou morto. A francesa que me salvou da morte tem que fazer uma viagem inesperada e algum tempo depois eu fico sabendo que ela morreu com duas flechas no peito. Tomo conhecimento de que tanto ela como a Irlandesa são transcendentes que viajam por dimensões, entram em espelhos, (fato no qual não sei se acredito) e penetram em mentes. Ela conta que para me salvar ela meio que sacrificou uma parte dela e então ela desaparece no espelho do seu quarto murmurando palavras irreconhecíveis. Parece uma novela, se eu contar pouca gente acredita, mas foi por isso tudo que eu passe e estava cansado de tantas complicações.
Acho que ninguém nunca teve uma vida tão louca, parece um labirinto, e agora eu estava lá sozinho, pensando que “realmente, eu sou um sujeito de sorte”. Durante todo o dia eu passei ali dentro como se esperasse ela, mas ela não veio, nem um sinal, nem uma nova ondulação no espelho, nem a sensação de alguém entrando na minha mente, absolutamente nada.
Eu estava tão aturbulado que eu até parei de tentar achar um jeito de contar tudo para Virgínia, era tanta coisa ao mesmo tempo que eu simplesmente parei, fiquei estático. De noite eu demorei a pegar no sono, e quando finalmente consegui dormir, foi um sono cheio de sonhos desconexos e sem sentido. Acordei cedo no outro dia, e totalmente sem fome, eu fui ao banheiro e me olhei no espelho. Levei um susto com o que eu vi refletido ali.
Uma criatura pálida e com olheiras profundas, o cabelo grande demais, e muito, muito magro! Eu estava num estado deplorável! Isso é porque eu sou uma pessoa altamente egocêntrica e sem modéstia. O que estava acontecendo comigo? Lavei o rosto e fui para a cozinha, forcei a mim mesmo a comer qualquer coisa ali. E não tinha a mínima vontade de sair de casa. Sentei e fiquei olhando para o tempo, o Sol já havia despontado, o céu não estava mais tão nublado, tudo parecia estar se recuperando. Mas eu continuava a sentir aquela coisa no meu peito, então eu me levantei de um pulo. Eu ouvi um barulho, parei para escutar de onde vinha, mas não, tudo no absoluto silêncio. Quando eu há estava pensando que havia sido apenas impressão, eu ouvi novamente. Desta vez parecia um vaso quebrando, e eu ouvi claramente alguém dizer “Droga!”. Eu fiquei paralisado, conhecia aquela voz, mas antes que eu pudesse me lembrar eu vi. Ela apareceu, vestida com roupas de couro e com uma coisa peluda como capa, a primeira vista eu não reconheci, mas depois eu vi. Anny estava lá, vestida com um vestido de couro marrom claro tão apertado que eu não sei como ela respirava, e coberta por algo que parecia... Pele de urso?
Seus cabelos estavam presos com um atira também de couro, e tinha uma pedra azul no pescoço que se destoa em uma corrente de prata. Resumindo, ela estava o pesadelo dos ambientalistas e defensores da natureza em pessoa.
-Ah, você está aqui. - Foi tudo que ela disse e tirou a pele de urso das costas colocando em cima de uma cadeira e sentando exausta.
-Onde você esteve? - Eu perguntei. Ela não respondeu de imediato, seu olhar estava preso em algo sobre a mesa. Se levantou com dificuldade e foi até a mesa. Ela estava com óbvia dificuldade para respirar, isto era mais do que visível. Seu peito subia e descia com dificuldade, aquele vestido parecia no mínimo quatro números menor que o numero que ela usava. Fowl estava espremida ali dentro, pegou a faca que ali estava e golpeou a barriga. Eu não entendi nada e quase a impedia. O primeiro pensamento eu que tive foi “ela vai furar a própria barriga!”, achei que ela tinha ficado louca e estava pronta para tentar suicídio. Afinal o que eu poderia pensar de alguém provavelmente deprimida, com uma faca na mão que quase acerta o abdome com a própria?
Foi apenas quando eu vi uma pontinha da blusa azul marinho que ela estava vestida quando entrou espelho afora que eu percebi o que ela queria fazer. Anny enfiou a faca no rasgo feito no vestido e foi levantando até chegar no decote do vestido. Ela tinha rasgado o couro apertado.
-Graças a Merlim, ar! - Ela disse respirando arfante. Eu não poderia imaginar forma mais estranha para ela chegar, e repeti a pergunta:
-Onde você esteve? - Ela olhou para mim e disse ainda arfante.
-Mithrrell.
-O que é isto?
- Um lugar onde todos usam muito couro. - Ela disse cética. - É em outra dimensão, onde eles estão em guerra; era lá que Marrie estava. Estava cuidando para que ela tivesse as honras finais.
-Eu... Eu ainda não entendi direito, como isto tudo está acontecendo... - Ela suspirou, como se estivesse exausta, olhou durante algum tempo par mim sem dizer nada, como se estivesse alheia àquilo tudo que estava a sua volta. Então deu outro suspiro mais profundo que o primeiro, seus olhos se encheram daquela antiga angústia, e disse:
-É, parece que eu estou lhe devendo algumas explicações, afinal é culpa minha você estar metido nisto tudo. Vou começar do início verdadeiro, como descobri que sou o que sou. Assim você entenderá melhor o que é um transcendente. - Eu não disse nada, apenas acenei com a cabeça e a encarei profundamente. - Eu tinha seis anos, quando eu percebi como eu conseguia entrar nos sonhos das pessoas. Minha família era uma família tradicional Irlandesa. Uma noite eu acordei com o barulho da voz do meu pai dentro da minha cabeça. Eu não conseguia entender o que era aquilo, eu podia ouvir mas ele não estava ali, no meu quarto. Eu fui, sem fazer barulho, até o quarto de meus pais e espiei pela porta; meu pai suava e soltava palavras desconexas pelos lábios, e minha mão procurava alguma coisa no armário de poções. Logo eu percebi que ele delirava de febre. Eu queria chegar mais perto e não podia, sabia que minha mãe brigaria se me visse acordada, foi então que eu senti uma sensação estranha, como se parte de mim não estivesse mais ali, como em um sonho. E foi justamente isso que aconteceu, eu tinha entrado no sonho de meu pai. Me assustei e achei que estivesse praticando magia negra sem saber, quebrei a conexão imediatamente, voltei a me ver de pé na porta do quarto de meu pai. Vi minha mãe entrando no banheiro e fechando a porta por dentro; aproveitei a chance e entrei no quarto. Fui direto a cama onde meu pai jazia, um homem tão velho. Toquei sua testa para sentir a temperatura: ardia em febre. Eu percebi que era sério, pois a febre estava realmente alta, eu não queria vê-lo assim, afinal era meu pai, eu apenas deixei a minha mão na sua testa e fiquei ali, apenas olhando como o rosto dele se contraia com o sonho e os lábios formavam palavras sem sentido. Quando ouvi a fechadura do banheiro estalar eu me assustei. Tirei a mão de meu pai e sorri até a porta rápido, para que minha mãe não me visse. Eu tinha ficado meio tonta do nada, fiquei com sono e apenas ouvi minha mãe sussurrar: “Graças a Deus, a febre está muito mais baixa!”.
-Deste dia em diante eu percebi do que eu era capaz de fazer, tomei conhecimento sobre estes ‘dons’ e soube o nome que se dava a quem os possuía, soube também que não era só estes. Se eu estivesse certa em minhas associações de lendas, casos a parte, contos e antigas histórias (boatos), eu também poderia viajar através das dimensões e entrar em mentes. Com o passar do tempo eu fui percebendo que quando uma pessoa está muito sobrecarregada de emoções ela simplesmente não consegue manter aquilo tudo e exala ao seu redor. Por exemplo, eu podia sentir quando alguém estava muito nervoso, ou triste, ou feliz. Todos são assim, exalam sentimento ao seu redor quando são em excesso, mas quase ninguém é capaz de sentir isto. Eu era. Na escola era o pior de tudo, pois eu sempre sentia quando alguém que estava triste ou com raiva chegava perto de mim, e eu sabia o que eu tinha que fazer. Mas isto era horrível, pois não se pode absorver nada sem dar algo, era uma troca. Eu pegava aquilo que fazia mal e passava a sensação de conforto, felicidade etc... Ás vezes era uma perda tão grande para mim que eu desmaiava, ou ficava com dor de cabeça... Mas era isso que eu tinha que fazer, eu cresci e não podia falar isso para ninguém, é perigoso e assim eu colocava em risco outras pessoas. Quando eu fiz quinze anos eu e uma amiga fomos em uma antiga vidente que fazia profecias, na minha terra isso era muito respeitado. Ela viu as folhas de chá da minha amiga e disse um futuro normal com algumas dificuldades mas com felicidades também. Mas quando ela me olhou ela arregalou os olhos e se espantou, deu dois passos e falou alguma coisa em uma língua que eu não conhecia. Pediu para a minha amiga sair e quando estávamos a sós ela disse: “Eu sei o que você é...” ela leu nas folhas de chá, na minha mão, nas cartas, na bola de cristal e em alguns outros que eu não recordo no momento. Mas no fim ela sempre parecia chegar ao mesmo ponto, então ela anunciou: “Nunca tive a honra de prever o futuro de alguém assim. Pessoas como você são raras, e destinos como o seu também, pois você nunca alcançará a plenitude.” Foi tudo, eu não entendi e perguntei o que significava aquilo: “É simples, criança, você nunca conseguirá ser feliz, porque você sempre terá que abrir mão disso em nome de outra pessoa, esse é o seu maior dom.” Eu entendi desta vês. Eu sempre teria que fazer a troca, eu sempre teria que abrir mão e passar o que tinha de bom em mim para outro alguém, a fim de manter o equilíbrio.
-Deste dia para a frente eu jurei que eu nunca, eu iria ser normal. Vi pessoas morrendo e não fiz nada. Vi sofrimento e não movi nenhum de meus dons para aplacar aquilo. Mas mesmo assim eu não conseguia ser feliz, eu estava apenas fugindo. E a noite aquilo tudo voltava para em atormentar. Quando resolvi entrara para o treinamento de híbrida eu conheci Marrie, eu não sabia que ela também era uma, mas uma tarde o nosso mestre nos chamou e esclareceu tudo, a partir daí nós tínhamos um treinamento diferente. Eu aprendi a transferir o meu espectro para o corpo de outra pessoa, viajar entre várias dimensões, entre outros. O mestre nos explicou que nunca poderíamos criar laços com nada ou com ninguém, pois nós somos guardiões, temos que fazer com que tudo esteja equilibrado, todas as dimensões acessíveis. Sendo assim tínhamos que estar viajando, nos mudando com freqüência, e ninguém pode saber o que somos, pois ainda existem aqueles que desejam ter-nos como prisioneiras, usufruindo dos nossos dons. Ultimamente nós tínhamos passado bastante tempo aqui, devido aquela guerra. Marrie sempre foi a boa menina, sempre atendia quando alguém precisava dela, já comigo as coisas eram muito diferentes, eu nunca aceitei estas maldições que alguns chamam de dons, afinal não tinha sido ela que com quinze anos ficou sabendo que provavelmente não seria feliz. As vezes eu apenas sinto falta de tudo que me foi negado e tento resistir a tudo que me foi destinado, sempre fui mais arredia. De quantas coisas eu já não tive que abrir mão! E recentemente eu não venho seguindo o que eu tenho que fazer, e isso me custou mais caro do que eu imaginei. Me custou a única pessoa com a qual eu pude manter algum tipo de relação forte na vida. Quando te encontramos nosso plano era curar você e só, mas Marrie mesmo contra a minha vontade insistiu em se certificar de que você ficaria bem e que acharia o seu caminho. Mas aconteceram coisas que não deviam acontecer, Draco, eu me liguei a você, e eu me recusei a ir com ela na páscoa. Outra dimensão precisava de nós, eu não me importei; que se fudesse! Ao menos uma vez na vida eu faria o que eu queria. E Marrie sempre passiva, foi, eu implorei para que ela fizesse como eu e deixasse isto para lá, mas ela nunca foi como eu, e eu não queria me desfazer de tudo que eu sinto. Então ela foi só, e prometeu que voltaria, logo que conseguisse. Mas ela não pôde cumprir sua promessa. É essa toda a verdade, e agora eu apenas quero que amanhã você não me evite com o olhar, ou se torne frio e distante de mim. Eu agradeceria se você não tentasse me prender e tentar usar os meus malditos dons, não me obrigue a te matar, não é isto que eu quero. - Ela terminou de falar e foi como se um peso tivesse saído de suas costas. Tudo que eu disse, ou melhor, que pulou da minha boca involuntariamente foi:
-E o que você quer? - A resposta dela não veio de forma verbal... E desta vez não vieram flashes de memórias nos meus olhos... Nenhum durante todo o tempo.
N/A: Vocês já viram como o desespero tava enorme né? E quanto eu demorei para atualizar o capítulo. Desculpem pela demora!
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