Música para um coração gelado

Música para um coração gelado



Os garotos já estavam no segundo dia de viagem e tudo transcorria relativamente bem. “Bem” por que o mapa de Slytherin era tão ranzinza quanto o dono, e dava chiliques histéricos todas as vezes que eles resolviam pegar um atalho ou distraidamente se desviavam da estrada. Já o “relativamente” se devia ao fato de que Rony e Draco não perdiam uma oportunidade se quer de trocar insultos, e Hermione já estava a ponto de seguir a sugestão de Slytherin e colar a língua dos dois no céu da boca.
As estradas estavam desertas, e durante muitas horas só os pássaros e animais silvestres passavam pelas estradas. Nas poucas ocasiões em que os garotos cruzaram com outros viajantes, tinham sido tomados por simples aldeões, e isso era muito bom para manter o sigilo de sua missão. Contudo, a comida preparada por Helga se tornava escassa, e as moringas não eram cheias desde a noite anterior.
― Já está quase anoitecendo – disse Harry para Hermione que cavalgava ao seu lado – E os cavalos precisam descansar e beber água.
Hermione abriu o mapa e acompanhou os sete pontinhos que se moviam rumo ao norte. Não muito distante deles, se encontrava o grande rio Limcaro, um dos mais importantes afluentes do Anduim, e às suas margens havia um pequeno povoado. Hermione checou a flâmula que indicava as condições da estrada, e as palavras “caminho seguro” brilhavam em tinta vermelha.
― De acordo com o mapa tem uma cidadezinha bem a nossa frente – disse a garota – O caminho está seguro, e devemos chegar lá em aproximadamente uma hora.
Os garotos continuaram cavalgando até se aproximar da aldeia indicada pelo mapa, e já se preparavam para apear quando se deram conta de que o lugar estava completamente deserto. Muitas árvores tinham sido arrancadas, as casinhas de pedra e palha tinha as chaminés arrancadas, e muitas tinham sido completamente demolidas. No meio da aldeia, haviam ainda grandes sulcos na terra que tinham o formado de pés gigantescos, e a união de todos eles formavam uma grande trilha para o leste. Os sinais da destruição estavam por todo lado, e os garotos examinavam a aldeia com expressões desoladas.
― Acho que nós estamos na aldeia de Lim – disse Gina – Aquela que os gigantes destruíram três noites antes de nós partirmos.
― E pelo visto ninguém teve coragem de voltar para cá! – exclamou Rony – Parece completamente deserta.
Desmontando de seu cavalo, Hermione aproximou-se então da entrada de uma das casas, e pegou um pequeno caixilho de madeira em que uma pequena toalha de linho semibordada estava pregada. Ao lado da peça, encontrava-se um pequeno cesto de vime contendo linhas e agulhas, e uma maçã mordida tinha rolado para o interior da cesta.
― Parece que as pessoas fugiram deixando tudo do jeito que estava – disse Hermione mostrando aos outros o bastidor de bordado – Acho que se fizermos uma busca pela aldeia vamos encontrar alguma coisa para comer.
― Você está sugerindo que nós roubemos a comida das casas? – perguntou Neville horrorizado.
― Ou isso ou nós vamos acabar passando fome – respondeu Hermione – Além do mais, os aldeões estão em segurança no castelo, e não vão voltar para cá tão cedo.
Dito isto o garoto pareceu se conformar com o trabalho de ave de rapina que estavam prestes a desempenhar, e todos se separaram para vasculhar os escombros. Em mais ou menos quinze minutos Rony e Harry apareceram trazendo uma grande vasilha de frutas frescas, e Hermione e Anne tinham encontrado boas porções de pão, que mesmo não estando apetitosos pareciam adequados para o consumo. Gina, Draco e Neville tinham se encarregado dos cavalos, e depois de atar os animais na beira do rio, encheram todas as moringas com água fresca e limpa.
A destruição que se via na cidade deixou os garotos um tanto deprimidos, e todos concordaram que seria mais adequado procurar um lugar menos opressor para fazer a refeição. Encontraram uma clareira na entrada de um pequeno bosque, e organizaram um pequeno dormitório estendendo seus mantos num lugar protegido pelas árvores. No centro da clareira acenderam uma pequena fogueira, e imediatamente se sentiram reconfortados pelo calor do fogo.
― Tomara que não chova esta noite! – exclamou Harry olhando para o céu.
― Acho que não temos com o que nos preocupar – retrucou Anne com um sorriso amável – O céu está sem nuvens e cheio de estrelas, não me parece que vá chover.
Anne era sempre muito gentil com Harry, e isso deixava o garoto um pouco constrangido. A garota não era o tipo de pessoa que fala ou sorri com freqüência, e o fato dela estar sempre disposta a conversar com ele parecia um pouco estranho. “Deve ser mais uma dessas pessoas que passou a vida inteira ouvindo falar de mim” – pensou ele com desanimo. Harry detestava quando as pessoas ficavam olhando para ele, esperando a primeira oportunidade para perguntar sobre a cicatriz. Contudo, a forma como Anne olhava para ele era diferente, e Harry sentia alguma coisa se contorcer dentro dele todas as vezes que ela se aproximava. Não era uma sensação ruim, ou coisa do tipo, mas parecia lhe dizer que aquela garota era diferente dos outros.
― Tomara que o tempo continue assim até chegarmos a Lórien – disse Hermione fazendo com que Harry despertasse de seus devaneios – Eu não gostaria da atravessar o rio no meio de um temporal.
― Eu tão pouco – disse Rony com desanimo – Depois daquela vez no quarto ano, em que nós ficamos no fundo do lago para a segunda tarefa do Torneio Tribruxo, eu me sinto bem desconfortável no meio de muita água.
― Deve ser por isso que você não tem sentido muita falta de um bom banho – retrucou Draco.
― Cala a boca, Malfoy – disse Rony enfiando um grande pedaço de pão na boca – Pelo menos eu não paro na frente de cada poça d’água para ajeitar o cabelo!
― Claro que não – respondeu Draco com desdém – Não ia fazer muita diferença mesmo...
― Dá pra vocês dois pararem com isso – disse Hermione firmemente – Parecem duas crianças se provocando o tempo todo!
― Foi o Malfoy quem começou! – disse Rony apontando para o garoto do outro lado da fogueira – Você não espera que eu fique quieto enquanto ele me insulta...
― O que eu posso fazer se a sua simples presença faz aflorar a besta-fera que há em mim – disse Draco com sarcasmo – Deve ser o seu magnetismo animal, Weasley! Pena que não funciona com as garotas, não é mesmo?
― Agora você foi longe demais Malfoy! – gritou Rony cuspindo farelos para todos os lados e apontando a varinha para Draco.
― Não de atenção a ele – disse Hermione segurando Rony pela túnica – Ele só quer te provocar! É claro que você é atraente para as garotas... pelo menos pra mim você é muito atraente!
Hermione corou imediatamente, e todos os garotos olharam para ela com ar de surpresa. Rony que até aquele momento estava vermelho de raiva passou a um tom rosado como se fosse um camaleão, e permaneceu alguns minutos olhando para a garota sem dizer uma só palavra.
― Muito bem – disse Draco se levantando – Depois dessa, eu acho melhor sair para dar uma volta. O sex appeal do Weasley é a última coisa sobre a qual eu quero ouvir!
Dizendo isso Draco pegou uma das maçãs que estava no cesto de frutas e rumou em direção as ruínas da cidade. Os outros garotos permaneceram em silêncio enquanto ele se afastava, e Rony e Hermione ficaram incomodamente imóveis com os olhos fixos na fogueira.
― Acho que já está na hora de deitar – disse Gina se levantando .
― Tem razão – respondeu Anne – Amanhã nós temos que seguir viagem bem cedo.
Neville, que comia distraidamente uma grande fatia de pão, pareceu não entender que Rony e Hermione deveriam ser deixados a sós, e Harry foi obrigado a dar-lhe um grande safanão ao dizer:
― Eu e Neville também estamos indo! Não é verdade, Neville?
― Au! – gemeu o garoto esfregando as costelas com uma das mãos – Claro! Eu nem queria comer mais nada, mesmo...
Em poucos minutos, os quatro tinham se deitado nas camas improvisadas na entrada do bosque, e Draco parecia ter ido para algum lugar nas ruínas do vilarejo. Rony e Hermione ficaram sozinhos ao lado da fogueira, e um silêncio constrangedor ainda pairava sobre os dois, até o garoto finalmente se manifestar.
― Então – balbuciou ele – você realmente acha que... que....
― Acho – respondeu Hermione tentando poupá-lo do constrangimento – Sempre achei.
― Ah! – disse Rony sem olhar para ela – Eu nunca imaginei. Sempre pensei que você e o Harry... você sabe...
― Eu e Harry? – indagou a garota – Não seja bobo, Rony. Eu e Harry sempre fomos apenas bons amigos.
― Mas vocês sempre ficavam juntos na sala comunal – disse ele sem graça – E mudavam de assunto toda vez que eu chegava. Eu pensei que vocês estivessem juntos e ainda não tinham tido coragem de me contar, ou coisa assim...
― Nós falávamos de você as vezes – disse Hermione estalando os dedos nervosamente – Ele acha que você gosta de mim, mas ainda não se deu conta.
Rony ficou muito tempo em silêncio olhando para as pequenas labaredas que dançavam na fogueira. Acompanhar o movimento das chamas era a melhor forma de evitar olhar para Hermione, e ele não sabia se seria capaz de encará-la naquele momento. Hermione, por sua vez, sempre soubera que ela e Rony um dia teriam aquela conversa, mas agora que eles finalmente estavam falando sobre aquilo, uma onda de pânico lhe percorria a espinha. E se ele dissesse que não gostava dela? E se ele achasse que era melhor os dois não se falarem mais? Será que ela saberia lidar com a rejeição? Será que valia a pena perder a amizade de Rony?
― Mione – disse Rony finalmente – Eu e você somos amigos a muito tempo e eu...
― Você não precisa dizer nada – interrompeu Hermione – Nós sempre fomos amigos e é assim que as coisas devem ser.
Neste momento Rony olhou para ela, e viu que Hermione estava empenhando toda sua força de vontade para se manter calma e continuar a falar, por isso decidiu que seria melhor não interrompê-la.
― Se algum dia você tiver alguma coisa a me dizer sobre isso eu vou estar aqui para ouvir – concluiu ela – Mas eu quero que você pense bem antes de dizer qualquer coisa. Afinal, antes de mais nada nós somos amigos, e eu não quero que você se sinta desconfortável perto de mim.
― Obrigado – disse Rony olhando para a garota, e os dois permaneceram lado a lado sem dizer uma só palavra.

***
Deitada sobre a manta de lã, Anne observava as estrelas na tentativa de cair no sono, enquanto Gina, Harry e Neville ressonavam tranqüilamente a seu lado. Desde que tinham sido transportados pela chave de portal ela vinha tendo terríveis pesadelos, e cansada de rolar de um lado para o outro a garota finalmente decidiu se levantar. Rony e Hermione ainda conversavam em voz baixa ao lado da fogueira, e para não incomoda-los Anne tomou o caminho do bosque que se estendia a suas costas. Tinha andado uns poucos metros quando sua atenção foi atraída pelo som de um instrumento musical acompanhado de uma voz límpida e melodiosa que vinham de um ponto além das árvores.

Je crois entendre encore
(Eu creio escutar ainda)
Caché sous les palmiers
(Eu creio escutar ainda)
Sa voix tendre et sonore
(Sua voz macia e sonora)
Comme un chant de ramiers
(Como um canto de rameiros)
Anne reconheceu os versos imediatamente. Era a primeira estrofe de uma de suas áreas favoritas da ópera Os pescadores de pérolas. A garota se lembrou claramente da primeira vez que a ouvira quando ainda era uma garotinha: a sala de consertos com seus tapetes vermelhos, as mulheres elegantes usando brincos de pérola e casacos de pele, os cavalheiros de casaca, a grandiosidade da orquestra, tantas coisas maravilhosas sobre as quais ela não pensava a anos.

O nuit enchanteresse
(Ó noite encantada)
Divin ravissement
(Divina beleza)
O souvenir charmant,
(Ó lembrança agradável)
Folle ivresse, doux rêve!
( Louca embriaguez, doce sonho!)

O terreno parecia elevar-se gradativamente, e não fosse o fabulos preparo físico, Anne certamente estaria ofegante quando chegou ao topo da pequena colina. O canto prosseguia, e a garota se sentia cada vez mais atraida por ele. Em parte por que as lembranças da infancia trouxa traziam consigo um pouco da ingenuidade daquele tempo, e em parte por que a curiosidade de saber quem naquele fim de mundo seria capaz de conhecer uma área de Bizet era incontrolável.

Aux clartés des étoiles
(Pela claridade das estrelas)
Je crois encor la voir
(Eu creio ainda vê-la)
Entr’ouvrir ses longs voiles
(Entreabir seus longos véus)
Aux vents tièdes du soir
(Na brisas mornas da noite)

Deixando o abrigo das árvores Anne pode ver que a lua incindia diretamente sobre uma figura masculina, que sentada sobre a relva tocava um violino primitivo. O bardo solitario não se deu conta da chegada da garota e continuou cantando suavemente sobre a dor de estar só. Não sobre a simples solidão de estar sozinho, mas sobre a solidão de estar só e cercado de pessoas que não sabem quem você é. De pessoas que nunca sabem realmente como você se sente. Caminhar na multidão como se fosse um fantasma: esta era a vida de Anne ha anos, e ao que tudo indicava mais alguem sentia-se assim.

O nuit enchanteresse
(Ó noite encantada)
Divin ravissement
(Divina beleza)
O souvenir charmant
(Ó lembrança agradável)
Folle ivresse, doux rêve!
(Louca embriaguez, doce sonho!)
Charmant Souvenir!
(Agradável lembrança!)

A voz finalmente se calou, e o silêncio repentino trouxe Anne de volta de seus pensamentos. A garota ainda estava tão intrigada com a musica que esqueceu o bom senso e caminhou na direção do desconhecido sem se preocupar com os gravetos que estalavam sob seus pés. O som dos passos de Anne fez com que o rapaz se virasse, e só então ela pode ver que tratava-se de Draco Malfoy tocando uma viela de arco que certamente encontrara nos escombros.
Draco viu a garota se aproximando, e sentiu-se um pouco incomodado com o fato de que ela o tinha visto cantando. Ele não era o tipo de pessoa que se deixava ver sem a proteção habitual do sarcasmo. Contudo, ele mesmo a tinha surpreendido em um momento íntimo como aquele, e se o universo realmente era justo, aquele era o acerto de contas.
― Desde quando você espia escondida atrás das árvores – disse Draco sorrindo para ela.
― Desde que escuto uma ópera que só vai ser composta daqui a três mil anos – respondeu ela se sentando ao lado dele.
― Boa resposta Crofft.
― Me chame de Anne – disse a garota – Eu detesto esse sobrenome...
― Como quiser – disse ele – Agora que tal você me dizer como foi que reconheceu o que eu estava cantando? Eu não conheço um bruxo se quer que ouça ópera trouxa.
Anne repentinamente se calou e pareceu considerar por um instante o que dizer. Seu semblante tornou-se vazio e sua voz parecia distante quando finalmente respondeu:
― Fui criada como trouxa – disse ela – E costumava ir à opera quando era mais nova. Os pescadores de Pérolas era a minha favorita, e reconheci no momento em que ouvi você cantando.
― Então seus pais eram trouxas? – perguntou Draco em tom casual.
― Não – disse ela com os olhos fixos no chão - Meus pais eram bruxos, mas morreram pouco depois que eu nasci. Eles eram herbologistas e contraíram um tipo de doença estranho na Nova Guiné. Os medibruxos fizeram de tudo para descobrir uma cura para a tal doença, mas eles morreram bem antes que um antídoto fosse desenvolvido. Meus pais eram minha única família, e depois da morte deles fui criada pelo mordomo, que era uma pessoa de total confiança de meus pais mesmo não tendo manifestado seus poderes mágicos.
― Ele era um aborto? – indagou ele.
― Não gosto dessa palavra – disse Anne muito seriamente – Ela é grosseira e injusta. O fato de Anthony ter nascido sem poderes mágicos em uma família bruxa, não o torna melhor ou pior do que os outros.
― Então você acha que ser bruxo ou trouxa não faz a menor diferença? – perguntou Draco.
― Faz toda a diferença – respondeu ela finalmente encarando o garoto – Eu tenho muito orgulho de ser uma bruxa, mas acho que bruxos e trouxas tem qualidades, cada um a sua maneira.
― Com isso eu tenho que concordar – respondeu ele deitando-se na relava e observando o céu noturno.
― Você concorda? – perguntou Anne incrédula – Você não é o famoso Draco Malfoy, que tem verdadeiro desprezo por trouxas e sangues-ruins?
― Esse é o lema da família – disse ele – Mas acho que meu desprezo pelos trouxas e sangues ruins é um pouco menor do que as pessoas acreditam, e um pouco maior do que eu mesmo gostaria. Acho que o que eu realmente acredito é que tudo na vida tem o seu lugar, e o lugar dos trouxas é fora do mundo mágico.
― Um ponto de vista interessante para um Malfoy – ponderou a garota – Mas quais exatamente são as qualidades dos trouxas para você?
Draco subitamente sentou-se de novo. Seus olhos percorreram a garota por um momento avaliando-a, e pela primeira vez em toda a sua vida sentiu-se confortável para falar sobre suas crenças com alguém. Talvez fosse porque Anne o fazia lembrar de si mesmo, ou talvez por que a noite fazia com que tudo parecesse um devaneio. Mas isso não importava, só o que importava era que finalmente alguém o escutaria.
― O que eu realmente aprecio neles e a paixão com que vivem – disse ele olhando para Anne fixamente – Nós bruxos sempre estivemos conscientes de que alguma coisa nos torna especiais, e que a mágica que existe em nós faz com que quase tudo seja possível. Eles, no entanto, nascem na simplicidade do comum, e passam suas vidas inteiras lutando para aprimorar o mundo em que vivem.
Anne olhava para ele com tanto atenção que Draco sentiu-se convidado a prosseguir com seu pequeno discurso.
― Desde tempos incontáveis nós conjuramos luzes de nossas varinhas, e eles foram obrigados a passar séculos na escuridão até inventarem a eletricidade. Nós aparatamos de um lado para outro e eles a muito custo inventaram das bigas romanas até os jatos supersônicos. Você percebe a grandiosidade de um espírito como este? Nós bruxos sempre fomos, e sempre seremos, superiores aos trouxas, mas justamente por conquistar tudo com mais dificuldade eles vivem de forma mais intensa do que nós. Amam com mais violência, odeiam com maior ferocidade, tudo neles é mais intenso, e isso fica muito visível em todas as suas manifestações artísticas.
― Vem daí, então, seu amor pela ópera? – perguntou Anne encantada.
― Não só pela ópera – respondeu ele - Pela literatura, a pintura, a arquitetura. Tudo isso me fascina.
Anne deitou-se sobre a grama rindo como raramente costumava fazer.
― Quem bom – disse Draco – Você acabou de me fazer parecer um idiota. Eu fico aqui falando e falando e você me responde com uma gargalhada.
― Você não é idiota – respondeu ela ainda rindo – Mas desde que entrei em Hogwarts sempre ouvi as pessoas comentando quão desprezível você era, e acabei de me dar conta de que você não é um terço do que dizem.
― Então estamos quites – respondeu Draco – Eu nunca tinha te visto rir, ou falar mais do que meia dúzia de palavras, e no entanto, acabo de me dar conta de que você pode rir e falar bastante as vezes, mesmo que...
Por alguns minutos os dois se olharam fixamente. Anne deitada no gramado e Draco ao seu lado, apoiando-se em um dos cotovelos.
― Mesmo que o que? – perguntou ela.
Draco se arrependeu instantaneamente do descuido, mas agora a única saída era levar até o fim o assunto que vinha lhe intrigado desde o momento em que deixaram Isengard.
― Mesmo que Harry não esteja por perto – disse ele tentando soar o mais casual possível – Eu reparei que você parece mais a vontade quando fala com ele. Seus olhos brilham, e esses são os únicos momentos em que você costuma sorrir.
Anne sentou-se abruptamente, de forma que Draco não pudesse ver seu rosto, e por um momento o garoto pensou ter ido longe demais. Contudo, já que ela não tinha se levantado ou feito qualquer menção de sair correndo, era melhor acabar com as dúvidas de uma vez, antes que os pensamentos confusos que vinham lhe passando pela cabeça nos últimos dias tomassem proporções ainda maiores.
― Você gosta dele não é? – perguntou Draco.
Anne olhava perdidamente para a paisagem a sua frente. Do alto da pequena colina era possível ver o céu que coroava a noite com suas estrelas, e lá em baixo o rio Limcaro corria eternamente verde, vagaroso e inescrutável, guardando os encantamentos milenares dos elfos e de todas as raças que já haviam passado por ali. Anne sentia-se um pouco deprimida e sem vontade de responder e finalmente voltou-se para encarar Draco, que olhava para ela esperando por uma resposta. Anne aproximou-se um pouco mais dele, e lançou-lhe um olhar triste e enigmático exatamente como aquele da noite no balcão, e respirou profundamente tomando coragem para voltar a falar quando o ruído de um grito de pavor que vinha do acampamento desviou sua atenção.
― O que foi isso? – perguntou Anne sentindo o sangue gelar em suas veias.
― Parece a voz da Gina – respondeu Draco – É melhor nós voltarmos, eles podem estar precisando de ajuda.

***

Com o acordo tácito de não tocarem mais no assunto, Rony e Hermione permaneceram lado a lado diante da fogueira. Nenhum dos dois sentia vontade de falar sobre outra coisa qualquer, mas também não estavam inclinados a simplesmente se levantar e ir para suas camas. Seria inútil tentar dormir de qualquer forma. O vento da noite movimentava as chamas da fogueira, que criavam sombras fantasmagóricas diante deles e ao longe, o ruído dos cavalos relinchando e escoiceando o ar fez com que Hermione ficasse subitamente arrepiada sentando-se um pouco mais perto de Rony.
― Os cavalos estão muito inquietos – disse ela nervosamente – Será que tem alguma coisa no lago?
― Não sei – respondeu Rony - Acho melhor dar uma olhada no mapa.
Mais do que depressa, Hermione foi até sua mochila de viagem e trouxe o mapa para junto da fogueira. Ela e Rony olharam apreensivos para a flâmula no pergaminho, e como confirmação de seus temores, a legenda em letras vermelhas dizia “perigo”.
― É melhor acordarmos os outros – disse Hermione colocando o pergaminho no chão e correndo para o pequeno acampamento com Rony ao seu lado.
Harry, Gina e Neville dormiam tranqüilamente, e as camas de Draco e Anne estavam vazias.
― Onde será que esses dois se meteram! – vociferou Rony.
Os três garotos foram acordados imediatamente pelo grito de Rony, e Neville sentando-se como quem acaba de acordar de um pesadelo indagou nervosamente.
― O que aconteceu? Estamos sendo atacados?
― Ainda não – respondeu Rony sem perder tempo – Mas os cavalos estão inquietos no rio, e o mapa indica perigo. Nós temos que sair daqui o mais rápido possível.
― Mas e a Anne e o Draco? – perguntou Hermione apreensiva.
― Vamos nos separar para procurar – sugeriu Harry.
― Má idéia! – murmurou Gina – Nós vamos acabar nos perdendo mais do que nos encontrando. Acho melhor irmos todos para o mesmo lado.
― Que seja – disse Rony – Mas é melhor não perdermos tempo.
Todos assentiram com a cabeça e adiantaram-se em direção às ruínas da aldeia. Mal tinham se aproximado mais uma vez da fogueira, e o som de patas batendo pesadamente contra o chão sinalizou que o perigo indicado no mapa estava cada vez mais próximo deles. Gina, que ia um pouco mais a frente foi a primeira a avistar a fera saindo dos arbustos, e parou de chofre diante da terrível aparição com uma expressão de horror e sentindo um profundo mal-estar.
A criatura tinha um par de longos chifres retorcidos sobre um semblante bestial, que misturava as feições de um homem rude com as de um animal selvagem. Seu torso era musculoso e exatamente como os de um ser humano, e da cintura para baixo era como um bode de pelo negro e com cascos pesados que fazia o chão tremer a medida que avançava. A pele da monstruosidade era negra como os pelos, e ele tinha presas e garras como as de um leão, bem como a calda que chicoteava a sua volta. O monstro bufava na direção dos garotos, e sem se conter, Gina gritou de pavor, fazendo com que a criatura viesse na direção deles.
Tentando se defender da fera que avançava como um touro, os garotos saltaram cada um para um lado, e o animal pareceu ficar confuso, dando-lhes tempo de sacar suas varinhas.
― Estupefaça! – gritaram Harry e Hermione sem sucesso, pois a parte humana da fera parecia ser feita de um couro tão rígido que os feitiços simplesmente ricochetearam.
― Estupefaça! – gritou Rony obtendo o mesmo efeito e fazendo com que o monstro viesse em sua direção.
Os olhos da fera eram vermelhos como rubis, e Rony sentiu de súbito o odor forte de umidade e terra revolvida que exalava da criatura.
―Impedimenta! Impedimenta! – gritava o garoto em desespero tentando impedir o avanço da criatura, que já estava perigosamente próxima dele quando Anne e Draco apareceram na entrada do bosque.
― Locomotor Mortis! – gritou Draco na tentativa de paralisar as pernas da criatura, fazendo com que ele perdesse o equilíbrio por tempo suficiente para Rony fugir.
― Petrificus Totalus! – gritou Anne, e vendo que sua magia também não surtia efeito disse para Draco – Acho que o couro é muito grosso, nosso feitiços estão ricocheteando.
Neste momento, Harry que estava a pouca distância do monstro apontou sua varinha e gritou:
― Incarcerous!
Muitas cordas grossas saíram de sua varinha enrolando-se no corpo da criatura, e vendo que esta tentativa tinha surtido algum efeito, todos os outros lançaram simultaneamente o feitiço de encarceramento.
― Para o bosque. Rápido! – gritou Hermione.
Todos correram o mais rápido possível para a entrada do bosque onde se encontravam Draco e Anne, e já se sentiam um pouco mais seguros, quando Harry parou de súbito.
― O mapa – disse ele – Eu preciso voltar para buscar o mapa! Nós não vamos chegar a Lórien sem ele.
― Não Harry! – gritou Gina – É perigoso demais!
Harry já estava a meio caminho da criatura quando a garota lhe pediu que ficasse, e de onde estava já podia ver o pergaminho caído a alguns metros da fogueira. O monstro urrava e se retorcia entre as grossas cordas que a prendiam, e Harry avançou em direção ao mapa o mais rápido que pode, prendendo-o com firmeza no cinto de prata. O garoto já tinha iniciado o caminho de volta quando repentinamente a criatura conseguiu libertar-se e lançou-se sobre ele interceptando o caminho. O corpanzil da fera chocou-se com o do garoto e fez com que ele voasse alguns metros para longe.
Harry sentia o gosto de sangue na boca, e a dor escruciante da perna fraturada. Ficou atordoado por um instante, e quando conseguiu sentar-se o animal bufava em sua direção. Harry tentou mais uma vez o feitiço encarcerante, mas a fera já estava preparada, e livrou-se das cordas com suas garras afiadas. Desta vez ele estava perdido e já esperava ser atingido pela monstruosidade quando Anne saltou subitamente entre ele e a fera empunhando sua espada.
O animal investia contra a garota com as garras e os chifres, e Anne movimentava-se rapidamente de um lado para o outro esperando o momento apropriado para atacar. Repentinamente, o animal ergueu o braço esquerdo bem acima da cabeça para desferir um poderoso golpe contra a garota, que prontamente aproveitou a oportunidade para investir com sua espada diretamente no coração desprotegido da fera. O golpe foi certeiro, perfurando a carne do animal profundamente, contudo, o contragolpe foi ainda mais terrível, e Anne foi lançada a mais de um metro de distancia rolando inerte no chão.
Uma onda de pavor percorreu Hermione, que observava a cena ao lado dos outros, e por um momento ela teve certeza de que Anne estava morta. Seus olhos voltaram-se então para Harry, que tentava erguer-se do chão sem sucesso, enquanto o monstro aproximava-se cada vez mais. Iluminado pelo luar, Hermione viu a expressão de dor e ódio no rosto do animal e só então percebeu que a lâmina de Anne tinha aberto uma grande ferida no peito da fera, de onde emanava um brilho estranhamente vítreo. Repentinamente as aulas de Defesa Contra as Artes das Trevas do professor Lupin passaram como um filme diante de seus olhos, e a garota finalmente reconheceu o monstro. “Um Wendigo”- pensou ela – “Só pode ser um Wendigo”.
― O coração dele é de gelo! – gritou Hermione – Você precisa derreter o coração dele, Harry!
Herry ouviu os gritos da garota com alguma dificuldade, e tentou manter-se o mais firme possível apontando a varinha para a criatura. Àquela distancia, ele só teria uma chance de acerta-lo, e concentrando-se ao máximo na ferida feita pela espada Harry gritou:
― Incêndio!
A varinha imediatamente irrompeu em chamas, que atingiram o alvo com perfeição. Um líquido translúcido escorreu então da ferida aberta e a fera rolou pelo chão contorcendo-se em agonia. Repentinamente todo o corpo da criatura foi consumido pelas chamas que afloravam do peito mutilado, e em pouco tempo a monstruosidade tinha sido resumida a pó.
Mais do que depressa, os garotos correram em direção a Anne, que parecia morta, caída sobre a espada com o rosto virado no capim. Draco a ergueu delicadamente, deitando-a próximo a fogueira e tirando-lhe o cabelo do rosto, enquanto Hermione analisava o mapa ansiosamente.
― O lugar está seguro – respondeu Hermione – E de acordo com o mapa Anne ainda está viva, mas...
― Mas o que? – perguntou Harry.
― Mas diz aqui que ela está mortalmente ferida – respondeu a garota.
Três cortes profundos atravessavam o braço de Anne da altura do ombro até o cotovelo, e a garota estava banhada em sangue. Seu rosto estava pálido como a morte, e uma quentura doentia começava a se espalhar, partindo do braço ferido e se estendendo por todo o restante do corpo.
― Ela foi atingida pela garra da criatura – disse Draco desolado – E está ardendo em febre.
― E agora? – gemeu Gina – O que nós vamos fazer?
― Antes de mais nada – respondeu Draco voltando-se para Hermione – Nós precisamos saber que raio de monstro era aquele.
Hermione estava visivelmente descontrolada, e se movimentava e torcia as mãos enquanto andava de um lado para outro.
― Eu tenho certeza de que era um Wendigo! – exclamou ela.
― Um mendigo? – perguntou Rony – Não me parecia um mendigo!
― Claro que não, Rony – respondeu a garota contrariada – Eu disse Wen-di-go!
― E o que é esse tal Wendigo? – perguntou Harry antes que Rony fizesse mais algum comentário inútil.
― Diz a lenda que o primeiro deles era um senhor de terras muito rico que se apaixonou por uma camponesa, e para obrigá-la a se casar com ele, matou o homem que ela amava. Só que ele não sabia que a camponesa era uma bruxa poderosa que lhe lançou uma terrível maldição no momento em que encontrou o corpo do amante.
― Então – perguntou Rony coçando a cabeça – Esse monstro que o Harry acabou de matar era um fazendeiro amaldiçoado?
― Acho que não – respondeu Hermione – O primeiro Wendigo surgiu muito antes da época dos fundadores, e já deve ter sido eliminado. Acontece que a mordida dele é contagiosa como a do lobisomem, e com Thalion tentando organizar um exército de monstros já deve existir milhares de Wendigos por aí.
Instintivamente, todos olharam ao redor como se esperassem ser atacados mais uma vez.
― Foi uma burrice acender a fogueira – disse Harry finalmente – Foi praticamente um convite para os inimigos...
― Não foi a fogueira que atraiu ele – disse Hermione olhando para o chão nervosamente - Quando fez a maldição a camponesa disse que a partir daquele dia, o assassino de seu amado se tornaria tão monstruoso por fora quanto era por dentro, e que dia e noite vagaria espalhando sua maldição e se alimentando do amor dos outros sem contudo saciar seu coração gelado.
Os meninos se entreolharam por um momento e Gina perguntou angustiada.
― E o que isso quer dizer?
― Isso quer dizer – respondeu Hermione olhando constrangida para Rony – Que o Wendigo se alimenta do coração ainda quente da vítima e é atraído por sentimentos como paixão, amor, desejo e coisas desse tipo.
― Então – murmurou Rony – ele foi atraído por...
Hermione ficou muito vermelha e lágrimas escorriam de seu rosto incontrolavelmente. A garota sentia-se absurdamente culpada, pois desde que tinha reconhecido o monstro tinha certeza de que seus sentimentos por Rony tinham atraído o Wendigo.
― Não importa o que atraiu o Wendigo – disse Gina amparando Hermione com carinho – O que importa agora é salvar a Anne.
Neville ajoelhou-se então ao lado da garota desacordada, e tirando a pequena faca do sinto, cortou delicadamente a manga do vestido deixando exposto o ferimento. Todos olhavam para ele apreensivos e espantados com a presença de espírito do garoto.
― Aguamenti! – murmurou ele apontando a varinha para o corte.
Um filete de água escorreu da ponta da varinha de Neville, e o garoto habilmente limpou todo o sangue e terra que se encontravam no local. Com a ferida limpa os garotos puderam ver que os três cortes em formato de meia lua eram profundos, e a carne parecia levemente esverdeada.
― É pior do que eu imaginava – disse Neville – A garra do Wendigo deve ter algum tipo de veneno. Eu não posso simplesmente fazer um feitiço para cicatrização. Se eu tivesse mais algumas ervas, poderia fazer um emplastro, mas nessas condições...
― E se nós chegássemos a Lórien? – perguntou Hermione soluçando – Dizem que os elfos tinham grande poder de cura, e se a rainha Arwen já foi uma elfa, talvez possa nos ajudar.
― Talvez você tenha razão – respondeu Neville avaliando com cuidado a possibilidade – É melhor nós a prepararmos da melhor forma possível para suportar a viagem e partir o quanto antes.
Hermione voltou a chorar com a cabeça enterrada nos braços de Gina por sentir-se terrivelmente culpada e os garotos acompanhavam a movimentação de Neville praticamente sem respirar.
― Você trouxe aquela toalhinha bordada presa no bastidor, Mione? – perguntou repentinamente o garoto.
― Trouxe – respondeu ela ainda soluçando.
― Ótimo – disse ele decididamente – Traga para mim a toalha e uma das mantas de lã.
Hermione e Gina dispararam em direção ao acampamento, e em poucos minutos voltaram com o que Neville tinha pedido. Usando mais uma vez a faca, o garoto despregou a pequena toalha do bastidor e depois de encharcá-la com a água que saia da varinha, fez uma compressa e colocou-a sobre a testa da garota. Depois, estirou a manta de lã sobre o corpo febril de Anne que já dava alguns sinais de convulsão.
― Não sei quanto tempo ela vai resistir – disse ele – É melhor nós nos prepararmos para partir imediatamente. Temos que chegar a Lórien o mais rápido possível.
― Tudo bem – disse Rony – Eu, Gina e Mione, vamos arrumar as coisas para partir, enquanto o Malfoy toma conta da Anne. Você acha que pode dar um jeito na perna do Harry enquanto isso, Neville?
― Acho que sim – disse Neville aproximando-se do garoto.
Todos se afastaram decididamente, e Draco finalmente ficou sozinho ao lado de Anne. O rosto da menina contorcia-se como se ela estivesse sendo perseguida em seus pesadelos, e por duas vezes Draco ouviu-a murmurar em delírios, odiando-se por aquilo. Draco acreditava que, independente de Hermione sentir-se terrivelmente culpada, ele era o único responsável pelo estado de Anne, afinal, ele tinha saído pela aldeia destruída pensando sobre os acontecimentos dos últimos dias, e ao encontrar o violino rústico nos escombros de uma das casas, havia se lembrado imediatamente daquela área dos Pescadores de Pérolas em que o miserável apaixonado cantava suas desventuras para a lua. “Pela claridade das estrelas eu creio ainda vê-la”, dizia a musica, e de fato a noite estava exatamente como aquela em que o garoto surpreendera Anne caminhando pelos jardins. Draco pensava em Anne, ansiava por ela, e no alto da colina sua voz a chamava, atraindo a criatura. Graças a ele a “noite encantada” de que falava a canção subitamente tinha se transformado em pesadelo, e Anne tinha se sacrificado para salvar a vida de Harry, e esta era uma verdade amarga com a qual ele teria que conviver.
Em pouco tempo todos estavam prontos para partir, e Draco apontou sua varinha para Anne e murmurou:
― Wingardium Leviosa!
Anne foi erguida do chão suavemente, e saiu flutuando ao lado de Draco a medida que o grupo tomava mais uma vez o caminho da estrada. Os cavalos tinham se libertado e sumido na noite com a aproximação do Wendigo, e agora eles seriam obrigados a caminhar o mais rápido que pudessem para chegar a Lórien a tempo de salvar a amiga.

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