Presença
Capítulo 5 – Presença
5. Você a quer. E espero que já tenha demonstrado isso, depois de todas aquelas recomendações nos outros capítulos. Ela provavelmente já percebeu, pois garotas tem um sentido muito mais apurado para esse tipo de coisa (Você já viu alguma edição de ‘Doze maneiras seguras de encantar bruxos’ à venda? Garotas não precisam disso, foi um prejuízo imenso). Então, continue assim. Pode parecer uma dica idiota de se dar no meio do caminho, mas você vai perceber que ela é a mais preciosa até agora. É muito fácil cometer erros estúpidos sem querer, voltar a agir como um imbecil e perdê-la para sempre. Acontece com os melhores bruxos (não estou dizendo que você seja um, mas lembre-se de que a confiança é fundamental). Mantenha-se confiante e atento, e não a deixe escapar, porque não aceitamos devoluções.
Havia um novo calor queimando em seu peito. A ardência era intensa, incômoda, apertada. Seu corpo tremia e ele sabia que se não falasse o que se expandia dentro de si, explodiria.
- Meus pais estão mortos! – o grito de Harry soou como um rugido. A raiva dentro de Ron o fazia ignorar os pensamentos lógicos que sua mente tentava formar. Ele precisava se livrar daquele peso, aquele aperto que comprimia seu corpo como se fosse esmagá-lo.
- E os meus podem ir pelo mesmo caminho! – ele gritou, e suas mãos tremeram ainda mais. Nunca ele havia se sentido daquela maneira. Os últimos dias foram como uma escalada naquela direção. Pouco a pouco, toda vez que ele colocava o medalhão de prata ao redor de seu pescoço, ele sentia o peso em seu peito aumentar. Pequenas coisas o irritavam mais do que o normal, ele se recusava a disfarçar sua insatisfação. E alguns minutos antes, por fim, ele havia permitido à angústia que crescera dentro dele por todo esse tempo explodir em acusações irritadas direcionadas aos amigos.
Uma parte dentro de Ron não ficou tão surpresa quando as palavras secas e ríspidas saíram de sua boca - a parte que sempre se alterava ao ver Hermione e Harry tão próximos, tão unidos pelo extraordinário. Tão distantes da mediocridade que cobria Ron de uma maneira incômoda, odiosa e irreversível.
O resto de Ron queria provar a si mesmo que ele era tão capaz quanto os amigos, que sua presença junto a eles era indispensável e suas habilidades tão necessárias quanto as deles. Então ele usou o medalhão gelado em volta de seu pescoço em todas as vezes que deveria. A pequena parte de sua alma que sabia de suas capacidades e limitações se calou, e passou a se alimentar do calor envolvente que o medalhão irradiava perto de seu peito.
- Então VÁ! – as palavras de Harry foram como uma sentença que ele já havia antecipado. Ron sabia que sempre fora uma questão de tempo e que ele, por mais que tentasse se convencer do contrário, não pertencia àquele universo dos extraordinários de cuja luta o mundo bruxo dependia.
Ele havia sido tolo em pensar que poderia lutar, e que isso seria de alguma maneira relevante.
- Volte para eles, finja que você se curou da sua spattergroit e a Mamãe poderá te alimentar direito…
Ron sentiu o calor de seu corpo guiar suas mãos; tentou alcançar sua varinha e viu Harry fazer o mesmo. Mas antes que pudesse tirá-la do bolso, sentiu um forte impulso empurrá-lo para trás. Forçado a recuar alguns passos, ele continuou a encarar o amigo, através de uma camada transparente de Feitiço Protetor. Havia ódio nos olhos verdes de Harry.
Hermione estava ao seu lado, a varinha erguida mantendo o feitiço e os olhos arregalados em terror. Uma forte barreira transparente a separava de Ron, mas seus olhos se mantiveram fixos no ruivo. Ele encarou os orbes castanhos por alguns segundos; eles brilhavam de lágrimas e miravam Ron como se o vissem pela primeira vez na vida.
Ron sentiu sua respiração acelerar, e os movimentos fortes de seu peito doeram ao encontrar o peso do medalhão que o queimava. Apesar de incolor, a barreira parecia tão visível quanto os dois jovens que o encaravam através dela. Por alguns segundos foi a única coisa que ele pôde ver – como uma grande muralha que o separava dos amigos - afastando-o daqueles olhos castanhos que o miravam atônitos.
- Deixe a Horcrux – Harry falou, novamente, com a voz fria e seca. Ron tirou o medalhão do pescoço e jogou-o numa poltrona próxima, sem hesitar.
O peso em seu peito diminuiu, mas o calor continuou o mesmo. Seu corpo ainda tremia, mas ele não tinha dúvidas do que deveria ser feito.
- O que você vai fazer? – Ron voltou a encarar Hermione através do feitiço. Ela arregalou ainda mais os olhos, como se recebesse a confirmação de que seus medos haviam se concretizado.
- O que você quer dizer? – ela perguntou, com a voz aguda. O tom carregado atravessou a barreira protetora e chegou até Ron causando uma dor quase física. Mas ele continuou:
- Você vai ficar, ou o quê?
Ele já sabia a resposta. Soube desde o momento em que ela escolhera ficar ao lado de Harry enquanto realizou o Feitiço Protetor. Era por isso que ele sabia que precisava ir – jamais estaria do outro lado da barreira. Jamais seria bom, inteligente ou forte o suficiente para isso.
- Eu… Sim… sim, eu vou ficar.
Ainda assim, ouvir a voz dela e ver a confirmação em seus olhos castanhos fez o peso em seu peito retornar como se o metal gelado do medalhão ainda estivesse em contato com a sua pele – a mesma sensação que, embora fria, irradiava calor por todo o seu corpo, comprimiu seu pulmão e ele precisou desviar os olhos do rosto aterrorizado da garota.
- Ron, nós dissemos que iríamos com o Harry, nós dissemos que iríamos ajudar…
Ele já não ouvia mais. O barulho da chuva batendo no teto da barraca abafava as palavras de Hermione, e ele se forçou para não escutá-las.
- Eu entendo – sua voz passou pela garganta como se a rasgasse. Ele não olhou nos olhos da garota antes de se dirigir à saída da barraca. - Você está escolhendo ele.
Ela ainda disse algo, mas ele não compreendeu. A chuva fria arranhou seu rosto e a lama molhada sujou sua calça quando ele deu vários passos rápidos em direção às árvores que cercavam a clareira onde a barraca estava montada.
- Ron!
A voz dela o chamou uma última vez – não havia raiva, frustração ou decepção. Através do barulho forte da chuva pesada, ele reconheceu um apelo sofrido que soou ensurdecedor aos seus ouvidos.
Lágrimas finas se misturaram à chuva quando ele fechou os olhos e apertou a mão em volta da varinha, visualizando qualquer lugar distante dali, distante da escolha que ela havia feito para si.
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- Não, Ron… por favor… volta, volta!
Antes que pudesse pensar em qualquer coisa, Hermione se adiantou na direção da saída da barraca. O Feitiço Protetor que ela mesma havia lançado a fez ir de encontro a uma barreira invisível e ela precisou recuar vários passos, aos tropeços.
Os últimos minutos haviam se passado como um borrão confuso, e sua mente ainda zunia quando tentava entender o que havia acontecido. Os cabelos ruivos haviam desaparecido na noite escura e o barulho da chuva batendo no teto da barraca a ensurdecia. Hermione repetiu seu nome, mas nada aconteceu.
Ela conseguiu desfazer o feitiço e disparou para fora da barraca. A chuva caía pesadamente e em pouco tempo suas roupas e seu cabelo estavam encharcados pela água gelada. Além da escuridão, ela tentou avistar o emaranhado de cabelos vermelhos que haviam, sem olhar para trás, desaparecido pela porta da tenda. Ela chamou novamente o nome dele, mas sentiu que o som de sua voz era abafado pela chuva torrencial.
Hermione deu alguns passos, sem direção. Aproximou-se das árvores que envolviam a clareira onde estava a barraca. Apertou os olhos e pensou ter visto, de relance, uma mancha laranja se movimentar por trás da folhagem.
- Ron! – ela correu em direção às árvores e gritou com toda a força que conseguiu reunir, tentando se fazer ouvir através do barulho da água encharcando o solo. Após alguns passos, no entanto, seu sapato afundou na lama mole quando ela se deteve repentinamente.
Um barulho distante, mas inconfundível, quebrou o silêncio que a chuva monopolizava. O estalo seco e intenso ecoou nos ouvidos de Hermione por vários segundos até ela perceber o que tinha acontecido. Ron havia desaparatado.
A noite continuou a ressoar o barulho da chuva forte, mas ele se tornou cada vez mais distante e abafado. O estalo alto continuava a repercutir nos seus ouvidos, como um eco atordoante. Passaram-se alguns minutos até que ela ouvisse o barulho de seus soluços misturados ao nome dele.
- Ron…
Era um sussurro cansado e tremido, inaudível em meio à chuva forte. Ela sabia que ele não ouviria, mas não conteve seus lábios de repetir seu nome. Cada vez foi necessária para que ela realmente acreditasse no que havia acontecido, e em cada uma das vezes o sentimento de desamparo crescia mais um pouco dentro de si.
Ron havia ido embora. Havia deixado os amigos, havia se afastado da missão que os unira desde o início. Havia abandonado Hermione.
Ela inspirou fundo com dificuldade, interrompida por soluços, e viu que estava tremendo. O frio tomava conta de seu corpo molhado e, com passos vagarosos, ela voltou até a barraca.
Harry a recebeu com o rosto impassível. Ela não agüentou encará-lo por muito tempo. A imagem daqueles olhos verdes irritados fazia o eco da discussão de minutos antes ressoar em sua mente com força renovada. A visão do interior da barraca, o canto escuro onde até pouco tempo Ron sentava, o medalhão jogado no sofá, imóvel; tudo fazia sua cabeça reviver os últimos momentos, como um pesadelo aterrorizante que insistia em se repetir.
- Ele… foi embora – ela disse, e sua voz soou como a de uma estranha. Um soluço forte a interrompeu, mas ela continuou, ignorando as lágrimas que desciam por seus olhos. – Desaparatou.
O estalo alto e seco se uniu às vozes irritadas que gritavam em sua mente, e ela sentiu seu corpo perder o equilíbrio. Deixou-se cair em uma poltrona e permitiu que suas mãos tremidas cobrissem seu rosto, sem conter as lágrimas. Agora que a chuva não mais caía sobre seu rosto, elas pareciam ainda mais fortes.
Falar o que havia acontecido transformava a situação numa realidade concreta e irremediável. Cada lágrima descia dolorida por seu rosto, ratificando uma certeza dura e cruel.
Ela sentiu um cobertor caindo sobre suas costas, mas não ergueu os olhos. Deixou que as lágrimas continuassem a cair; apenas se encolheu ainda mais, cobrindo as pernas e apertando as mãos perto do rosto. Um conhecido cheiro cítrico invadiu suas narinas, e ela reconheceu o cobertor marrom que Ron costumava usar.
“Só lembre que pode vir falar comigo.”
A voz dele ressurgiu de lembranças antigas, ecoando em seus ouvidos da mesma maneira que no dia em que os braços dele a tinham envolvido e aquele mesmo cheiro agradável havia dominado seus pensamentos. Ela apertou os olhos, forçando sua mente a ignorar as imagens daquele momento.
Não passava de uma lembrança. Tão distante quanto os cabelos ruivos que haviam desaparecido na escuridão da noite.
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“Sempre.”
Assim que seu corpo parou de se comprimir e viajar na escuridão atordoante que era aparatar, Ron soltou a respiração num murmúrio raivoso. Abriu os olhos para encarar mais escuridão e chuva, e tentou identificar onde estava. As árvores não pareciam tão diferentes das que cercavam a clareira onde estava até pouco tempo. Só o que sua mente pudera imaginar, ao fechar os olhos e se preparar para aparatar, fora o lugar que ele sabia que não devia deixar. Era apenas razoável que ele não havia sido bem sucedido em se afastar o máximo possível da barraca.
Ron soltou uma exclamação nervosa, abafada pela chuva. Toda a raiva em seu peito começava a se transformar em uma irritação dolorida. Os acontecimentos dos últimos minutos voltaram a sua mente como um trem em alta velocidade, e cada segundo retrocedido fazia seus dedos aumentarem a força com que se fechavam. Logo suas mãos doíam e suas palmas ficaram arranhadas por suas próprias unhas, mas ele não parou. A força não impediu que lágrimas escorressem pelo canto de seus olhos.
“Ron!”
Sua frustração se materializou em um berro que ecoou através do barulho alto da chuva, na esperança de abafar a voz que invadia seus ouvidos com mais força do que a água que caía em seu corpo e encharcava suas roupas. O grito agudo de Hermione doía fisicamente, apertava seu peito de uma maneira que o peso do medalhão jamais fora capaz. Era como se toda a raiva e angústia que ele sentira dentro daquela barraca tivessem se perdido durante a aparatação, sendo substituídas pela dor em seu peito e uma irritação interna muito piores.
O arrependimento, a perspectiva solitária e a certeza de que havia estragado tudo dominaram Ron com tamanha força que ele nem ao menos percebeu que sua garganta liberava outro grito raivoso.
Ele apertou a varinha para aparatar novamente, mas algo atingiu sua nuca.
- Achei um! – disse uma voz desconhecida, sobressaindo-se ao barulho da chuva.
O golpe o fez cair de joelhos na lama, e Ron sentiu a varinha sendo arrancada de sua mão.
- Não! – ele gritou, mas um chute forte atingiu seu estômago e ele pôde sentir o gosto da lama em sua boca quando caiu no chão. Com a visão obscurecida pela chuva e a dor, ele ainda tentou esticar o braço para alcançar sua varinha, mas um par de braços fortes foi mais rápido em erguê-lo pela barriga. Outras vozes se uniram à primeira e ele pôde distinguir poucas palavras entre a conversa. “Sangue-ruim”, “fugitivo” e “Ministério” repetiram-se em algumas frases.
Pela primeira vez em muito tempo, ele se sentiu feliz por Hermione não estar junto dele.
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Cenas do próximo capítulo: Um Natal sem alegria, uma aparição relâmpago-radiofônica dos gêmeos Weasley e luzes que o guiarão até casa...
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