O anjo



A morte não é o fim, como muitos acreditam. Depois que Voldemort me atingiu com a Maldição e minha alma se partiu em duas, demorei um bom tempo para me recuperar. O feitiço de proteção que havia deixado em Harry exauriu grande parte das minhas forças. Fui enviada para um hospital de cura em um plano superior à Terra e permaneci em tratamento, semi-inconsciente. Quando acordei, James estava ao meu lado. Ele tinha um aspecto saudável e usava roupas normais, embora brancas, e não a túnica hospitalar que eu vestia. Porém, James estava ali como detentor de uma notícia ruim, algo que eu precisava saber antes de prosseguir com meu tratamento.

- Minha querida... isso não vai ser fácil, mas é algo que você precisa compreender e aceitar para que recupere a sua saúde.

- Você está me assustando, James. O que está acontecendo? É algo a respeito de Harry? Como está o nosso filho? – eu falei, atropelando as perguntas.

- Harry está bem – James me tranqüilizou, acariciando meus cabelos ruivos que se espalhavam pelo travesseiro. – Dumbledore providenciou para que ele ficasse sob a guarda de sua irmã. Não é algo exatamente feliz para ele, mas está alimentado e vai crescer saudável, longe do mundo bruxo no qual seria constante alvo de olhares e comentários. Dumbledore acha que é mais saudável que ele permaneça por um tempo sem saber quem é. Quando fizer 11 anos, porém, terá uma vaga garantida em Hogwarts, fique tranqüila. O que você precisa saber é mais sério do que o estado do nosso filho.

- James, por favor, conte logo! – eu disse, e percebi o tom ansioso em minha própria voz. O discurso dele estava me assustando. Se tudo estava bem com Harry, o que é que poderia ser tão difícil de me contar?

- Lily... lembra-se que Dumbledore achava que um dos Comensais da Morte entreouviu a Profecia de Trewlaney aquela noite no Caldeirão Furado?

- Sim, eu me lembro e... – parei de falar por um instante e meu coração congelou. Não, não podia ser... Não era verdade... Não tinha sido você...

-Foi Severo Snape quem comunicou Voldemort sobre a Profecia, Lily.

No exato momento em que James pronunciou o seu nome, perdi a consciência de novo. Acordei semanas depois para recomeçar o tratamento, mas a dor daquela descoberta me acompanhava o tempo todo. James tinha se recuperado rápido e havia subido de posto nos trabalhos da comunidade, passando para me ver raramente. Ao longo do tratamento, percebi que o resgate precisaria ser realizado entre você e eu. Eu continuava no hospital da colônia, porque a mágoa que carregava em relação a você não me deixava evoluir.

Devido ao meu estado de saúde espiritual, não tinha permissão para visitar meu filho. Porém, acho que aprendi com James a ser meio “avessa às regras” e acabei, por muitas vezes, fugindo do hospital e buscando estar ao lado de Harry. Quando o encontrava, só conseguia ver aquilo que ele via, sentir o que ele sentia. Quando Harry foi para Hogwarts, o mínimo que eu podia fazer era me refletir na luz dos olhos dele, o que ele tinha herdado de mais meu, todas as vezes que ele estava diante de você. Porém, sempre que o fazia, sem perceber eu me envenenava ainda mais, pois suas atitudes para com meu filho nunca foram exatamente simpáticas ou agradáveis. Ao mesmo tempo em que eu notava que você o protegia, era contaminada pelas desconfianças de Harry em relação às suas atitudes. Voltava para a colônia ainda pior e não conseguia me recuperar do rancor que acumulava em relação a você.

Esse círculo vicioso durou até a chegada de Dumbledore. Ah, se você soubesse... Se imaginasse o quanto a chegada de Dumbledore à nossa colônia tinha feito diferença para o que eu sentia em relação a você. Acredito mesmo que tenha sido o ponto crucial da minha mudança e do início da minha recuperação espiritual.

Lembro-me de abrir os olhos e vê-lo parado ao lado de minha cama, os olhos azuis brilhando por detrás dos óculos de meia-lua. Parecia bem mais velho do que da última vez em que nos vimos, ainda em vida, mas não perdera o semblante bondoso e paciente que tão bem o caracterizava. Diferente de mim, que estava um trapo, jogada naquela cama porque tinha mais uma vez escapado para ver Harry. Dessa vez, a recuperação estava ainda mais difícil: eu tinha presenciado, pelos olhos de meu filho, você assassinar Dumbledore. Meu coração estava corroído por decepção e mágoa.

- Você está meio acabada, Lily – disse ele com bondade, e eu não pude deixar de sorrir diante da constatação tão verdadeira. – Acho que está na hora de levantar dessa cama e dar um passeio com esse velhote recém-chegado.

- Eu... Não sei se devo... – respondi meio sem jeito.

- Garanto que estamos autorizados - Dumbledore piscou e estendeu a mão para mim, provavelmente brincando em relação às minhas escapadas não-autorizadas do hospital da colônia. Senti minhas maçãs do rosto enrubescerem. – A enfermeira responsável pelos seus cuidados me contou que reforçou o seu tônico esta manhã e que não se cansará se andar um pouco nos jardins comigo.

Assenti e me levantei, tentando em vão ajeitar a túnica completamente amarrotada. O sol brilhava forte do lado de fora das paredes do hospital, ferindo-me os olhos e fazendo com que eu os piscasse várias vezes até me acostumar à claridade. Dumbledore parecia familiarizado com o local, embora fosse evidente que tinha acabado de chegar. Também trajava uma túnica branca, o que me fez inferir que provavelmente ainda era paciente do hospital. Reparei que sua mão direita estava escura, parecendo morta.

-Alvo... isso foi efeito do feitiço de... – não pude conter minha curiosidade, mas engoli em seco na hora de pronunciar o seu nome. Senti meus olhos se encherem de lágrimas, mas Dumbledore pareceu não notar. Ou fingiu.

- Vamos nos sentar um pouco à sombra daquela árvore, Lily? – disse ele, apontando para uma frondosa jabuticabeira logo adiante. – Se tivermos sorte, poderemos comer algumas jabuticabas enquanto conversamos.

Dumbledore e seus doces. Lembrei-me de como ele gostava de formular senhas açucaradas durante as missões da Ordem. Nas poucas ocasiões em que visitei seu escritório, ainda como estudante, observei que as senhas da gárgula eram sempre relacionadas a guloseimas, em especial às trouxas: sorvete de limão, baba-de-moça, bolinhos sortidos, pão-de-mel, bala de goma. O diretor de Hogwarts era um homem de hábitos peculiares.

- Sabia que uma das primeiras coisas que você perguntaria ao me ver seria sobre meu pequeno machucado – disse ele entre uma jabuticaba e outra, depois que nos instalamos na grama fresca logo abaixo da árvore. – É por essas e outras que Harry é seu filho, Lily. Foi exatamente o que ele me perguntou no início deste ano letivo, na primeira oportunidade que teve.

- Harry está bem? – não fui capaz de me conter e o interrompi para questionar.

- Depende do que você entende como bem – falou Dumbledore, mas deixou de sorrir ao continuar. – Harry é um menino valoroso, Lily. Está sofrendo pelas perdas que foi obrigado a enfrentar pelo caminho, os pais, o garoto Diggory, Sirius, e agora eu. Mas procurei deixar a ele o máximo de informações possíveis para que possa fazer o que deve ser feito. Resta saber se ele será forte o suficiente para cumprir seu destino, mas eu acredito em seu filho. Talvez o tenha subestimado algumas vezes, e até mesmo escondi certos fatos por julgá-lo jovem demais. Mas acredito que Harry dará conta do recado.

- O que aconteceu naquela noite, Dumbledore? – perguntei, encarando os olhos muito azuis do bruxo diante de mim, com o coração apertado pela lembrança. – Como eu consegui salvar meu filho mesmo sem ter uma varinha?

- Há certas magias que independem de varinhas, e partem única e exclusivamente de nossas vontades mais intensas e urgentes. A magia é um dom que não pode ser controlado apenas pelo uso de um instrumento, mas é algo que habita o profundo da alma de um bruxo. A forma como ela é utilizada depende do caráter de cada um. Você se provou capaz de morrer por Harry, e desejou de coração que ele sobrevivesse. O sangue que corria nas suas veias ainda corre nele, e é exatamente aí que reside o principal poder de Harry: o amor e a capacidade que ele tem de amar. Por isso, Lily, você precisa estar ao lado dele quando a hora chegar.

Não entendi direito o que Dumbledore quis dizer naquele momento. Quis perguntar, mas ele me impediu de prosseguir com um gesto delicado, porém determinante.

- Antes de ajudar Harry, você precisa ajudar outra pessoa, Lily. E, para isso, você precisa estar forte o bastante. Foi por isso que recebemos essa autorização especial para um passeio. Para que eu lhe conte a verdade sobre Severo Snape.

Meu coração deu um salto dentro do peito, indo imediatamente pulsar em minha garganta, onde consumiu qualquer palavra que eu pudesse proferir. Como assim a verdade sobre você? Eu sabia qual era a verdade: você havia me traído da pior forma possível, havia condenado minha família à morte por sua maldita lealdade às trevas. Eu conhecia bem os seus motivos sujos. Porém, foi nesse momento que me dei conta do quanto não fazia sentido que, mesmo sendo um Comensal da Morte, você continuasse sob a proteção dos muros de Hogwarts, com o consentimento do diretor da escola. Seria possível que você pudesse enganar Alvo Dumbledore? Levei as mãos à têmpora num gesto involuntário, enquanto minha mente girava em turbilhão, cada vez mais confusa. Dominada pelo rancor que sentia, desabafei:

- Severo é um traidor! Ele nos condenou à morte, James e eu, e apenas por sorte Harry escapou com vida! Severo matou você, Dumbledore, eu vi! Não importa o que você diga sobre ele, eu tenho acompanhado a forma como ele trata o meu filho com desprezo, ódio até. Ele quer que Harry morra para que enfim o seu Mestre possa reinar sozinho, infinitamente poderoso e...

- Eu pedi a Severo que me matasse – Dumbledore interrompeu-me, e minha boca permaneceu pronta para acusar você com palavras que nunca vieram. Eu era incapaz de acreditar na informação que acabava de receber.

- Como assim?

- Por hora, basta que você saiba que eu estava doente e morreria de qualquer jeito – Dumbledore deu de ombros, como se pedir para que alguém o matasse fosse o mesmo que escolher o doce que comeria depois do jantar. Eu continuava boquiaberta, sorvendo cada palavra proferida por ele. - Apenas pedi para que Severo continuasse a representar o seu papel. Ele foi um espião muito valoroso desde que abandonou as fileiras de Tom Riddle. E só o fez por amor a você, Lily. Severo se arrependeu das atitudes que tomou quando era jovem, da forma como desprezou seus sentimentos para permanecer ao lado daqueles que julgava serem seus verdadeiros amigos. Naquela época, essa foi a única forma que ele conseguiu enxergar para que um bruxo mestiço fosse aceito entre a nobreza dos puro-sangue. Porém, Lily, ele se arrependeu. E a amava tão profundamente que, ao perceber a besteira que havia feito em contar a Tom sobre a Profecia, veio imediatamente me procurar. Eu sabia que Voldemort escolheria Harry desde o começo, apesar de também ter orientado que os Longbottom se protegessem na ocasião. Eu sabia porque Severo havia pedido a ele por sua vida. Voldemort não se importa com o amor, Lily, ele o despreza. Mas teria poupado você se não estivesse entre ele e seu objetivo final: exterminar Harry.

- É muito fácil se arrepender depois de nos condenar – falei, a mágoa tentando encontrar uma pequena brecha na avalanche de novas informações que eu recebia.

- Você tem razão – Dumbledore falou, para a minha surpresa. – Arrependimento não trouxe a sua vida de volta. Mesmo assim, ao saber que Harry havia sobrevivido ao verdadeiro desastre provocado por ele, eu fiz uma oferta a Severo: que, em nome de sua memória e para fazer com que sua morte não fosse em vão, ele me ajudasse a proteger Harry, o fruto do relacionamento entre a mulher que ele amava e um de seus principais inimigos da infância. Se me permite a falta de modéstia, confesso que foi um grande trunfo de minha parte, mas também corria o risco de que ele caísse novamente em tentação e retornasse ao Lado das Trevas, cheio de informações valiosas. Sim, minha querida, eu já imaginava, mesmo poucos instantes após a queda de Voldemort, que ele tinha meios de retornar à vida. Ainda assim você deve me conhecer o suficiente para saber que sempre tive o incômodo hábito de crer no melhor das pessoas e, principalmente, acreditar no amor. Severo amava você, e isso já era suficiente para que seu coração estivesse limpo, embora ele tenha se corroído em culpa durante toda uma vida. Foi difícil para ele aceitar a semelhança de Harry com o pai quando o pequeno chegou a Hogwarts. Embora os outros professores afirmassem que ele tinha o comportamento normal para um menino de sua idade, e muitos até o elogiassem com sinceridade, Severo via nele uma mistura da arrogância e rebeldia de James. Mas essa mistura veio com um defeito: possuía exatamente os seus olhos, e era isso que fazia com que Severo persistisse em cuidar do único pedaço de você que ainda vivia.

Não pude me conter mais. As lágrimas escorriam aos borbotões enquanto Dumbledore falava, e eu era incapaz de contê-las. A morte dele havia sido necessária para que eu, enfim, compreendesse o que você sentia por mim, assim como a minha morte havia sido necessária para que você entendesse os seus erros? O que havíamos feito com nossas vidas, Sev? Por que nos deixamos enganar tanto assim, por que nos desviamos do caminho que nos foi traçado? As lágrimas que eu derramava naquele momento não eram mais de mágoa ou rancor. Elas lavavam a minha alma e me deixavam pronta para encarar o que precisava ser feito. Foi o que Dumbledore relatou a seguir:

- Agora você compreende que Severo realmente a ama, Lily? – eu assenti, incentivando-o a continuar, as lágrimas ainda escorrendo fartas pelas minhas bochechas. – Isso é bom, porque você precisará buscá-lo. Em breve ele perecerá, e você é a única que pode ajudá-lo nessa difícil passagem. Você é o anjo dele, o lírio negro do jardim que ele jamais esqueceu. Ele precisa olhar em seus olhos para saber que deve deixar a vida, que o seu tempo se foi e sua missão está concluída.

Foi assim que, nos meses subseqüentes, contei com a ajuda de Dumbledore para me preparar. Durante este tempo, percebi o quanto minha alma estava fraca e consumida pelos sentimentos inferiores em relação a você, e o quanto aquilo havia me machucado. Porém, bastou saber a verdade para que o amor que eu sentia retornasse como num turbilhão, e se tornasse o principal elemento de nutrição que aceleraria a recuperação que me tornaria apta para te ajudar.

Quando James veio me ver pela primeira vez após a conversa com Dumbledore, senti-me constrangida. Ele estava radiante, forte, bonito como sempre. Passou a mão pelos cabelos espetados, ajustou os óculos no rosto e me beijou a testa, abraçando-me calorosamente enquanto dizia:

- Fico feliz que esteja se recuperando, querida. Não se preocupe, eu compreendo tudo e não culpo você por tê-lo escolhido. Já sou grato apenas em ter compartilhado uma vida com você, e ter sido o responsável por gerar contigo aquele que tem o potencial de mudar o mundo no qual nós, um dia, vivemos. Livre seu coração de culpa, Lily, e busque seu verdadeiro amor. Só assim você poderá ser feliz de verdade.

Estranhei a atitude de James. Mais tarde eu viria a saber que não tinha sido fácil para ele aceitar aquilo. Porém, Sirius o havia ajudado muito, bem como Dumbledore, que contara a ele a mesma história que havia contado para mim. James seria sempre o homem certo. De uma forma ou de outra, aquele que eu havia julgado imaturo demais era a alma mais antiga, aquela que me ajudaria a compreender com plenitude que o meu destino estava ao seu lado.

Quando o momento chegou, sentia-me forte o bastante, porém nervosa. Não sabia exatamente como iria acontecer. Recebi a autorização para ir ao encontro de Harry, mas não entendia como chegaria até você. Só pude compreender quando, pelos olhos de meu filho, presenciei o processo de libertação brutal da sua alma. Harry estava quase que inteiramente dominado por Voldemort, e pude ver a cena como ele a via: como se fosse ele o responsável por açular a cobra que tiraria sua vida.

Lutei para tentar libertá-lo da possessão e, quando consegui, instiguei-o a correr para o seu lado e o acompanhei. Sentia náuseas diante da crueldade da cena, mas não podia deixar o desespero tomar conta, precisava permanecer calma. Observei seu corpo estirado no chão, esmigalhado pela força da poderosa cobra. Você ainda respirava, relutante em abandonar a vida. Aproximei-me de seu ouvido e murmurei delicadamente:

- Conte a ele, Sev... Harry precisa saber.

Você tossiu, e o sangue que ainda corria por suas veias saltou para fora de seus lábios. Senti-me oprimida e com medo, mas sabia que precisava ajudá-lo, dar-lhe força. Foi para isso que eu me preparei, essa era a minha missão e não poderia falhar mais uma vez contigo. Não daquela vez. Toquei seu rosto suavemente e insisti:

- Dê-lhe as suas memórias! Conte a ele o que você sentia por mim!

Um sorriso triunfante tomou conta de meus lábios quando vi que uma massa cinza, nem líquida nem gasosa, escorria do seu corpo junto ao sangue. Harry não percebeu de imediato, mas Hermione Granger o acompanhava e conjurou um frasco do nada, no qual recolheu as memórias que você fornecia. Era por meio delas que Harry saberia de tudo, e não precisaria mais ter ódio de você. Apenas dessa forma você estaria totalmente livre de seus erros do passado.

Estávamos prontos para partir. Sua alma continuava lutando, relutante em abandonar o corpo, e eu lhe dei a mão para encorajá-lo e facilitar o processo. Para a minha surpresa, você ainda teve forças para agarrar Harry pelo colarinho da capa e puxá-lo de encontro a você. Como se soubesse o seu intento, ele fixou os olhos nos seus, verdes no negro, o seu último mergulho.

- Olhe... para... mim...

Foi assim que você abandonou a vida, desacordado nos braços do seu anjo e com a memória dos meus olhos para sempre gravada em seus pensamentos.

Compartilhe!

anúncio

Comentários (0)

Não há comentários. Seja o primeiro!
Você precisa estar logado para comentar. Faça Login.