A marca



Demorei para entender que aquela luz verde era o fim. Não foi de maneira rápida que consegui compreender que não veria mais meu filho. Por que aquilo tinha acontecido? Dumbledore nos garantiu que estaríamos protegidos em Godric Hollow. No fim, a única proteção possível partiu do meu próprio sacrifício.

Éramos uma família feliz, James, Harry e eu. Precisávamos viver escondidos e sob a guarda da Ordem da Fênix, mas nada que interferisse na harmonia do nosso lar. James passava as noites brincando com Harry, e eu me divertia em observá-los. O pequeno já tinha até uma mini-vassoura de quadribol, presente de aniversário de Sirius, com a qual ele voava pela casa logo depois de dar os primeiros passinhos. Era absurdamente parecido com o pai, não apenas fisicamente, mas na maneira como sorria ou passava as mãozinhas pequeninas pelo cabelo preto e naturalmente bagunçado. Sempre que o fazia, eu era incapaz de conter um sorriso.

Mas os olhos... estes eram exatamente como os meus. E carregavam neles um ar de mistério que me fazia lembrar de você. Não eram límpidos, claros, sinceros como os de James. Harry era uma criança muito auto-suficiente, que costumava passar longos períodos se divertindo consigo mesmo. Gostava muito da nossa companhia, mas também apreciava os momentos em que podia ficar sozinho, aprendendo sobre o mundo com suas próprias experiências.

James havia insistido para que eu batesse uma foto de Harry e a enviasse a Sirius, já que as visitas do padrinho estavam cada vez mais escassas pelo fator de segurança. Além disso, com o afastamento de James dos serviços da Ordem, para nossa proteção, Peter, Sirius e Remus, os dois últimos principalmente, tinham muito mais serviço a fazer. Bati a foto com o programador da máquina e fiquei feliz com o resultado: meu rosto aparecia em primeiro plano, enquanto Harry voava com a vassoura diante de meus olhos de mãe deslumbrada. De James apareceram os pés, calçados com os tênis velhos que ele tanto gostava.

Naquela mesma noite, sentei-me à escrivaninha com a foto nas mãos. Sorri ao observá-la e meu coração se aqueceu diante da visão do pequeno Harry, que entrava e saía da foto montado na vassoura. Peguei a pena e molhei-a no tinteiro, deixando que as palavras caminhassem livres pelo pergaminho, como se pudessem me libertar daquele esconderijo onde estávamos confinados por causa de uma maldita Profecia.

“Querido Padfoot...

Obrigada, obrigada mesmo pelo presente de aniversário de Harry! É o favorito dele até agora. Apenas um ano de idade e ele já está voando numa vassoura de brinquedo, parecendo tão satisfeito, até tiramos uma foto para que você possa vê-lo. Você sabe que ela só voa dois palmos acima do chão, mas ele quase matou o gato e quebrou um vaso horrível que Petúnia me mandou no Natal (sem reclamações quanto a isso). É claro que James acha isso tudo muito engraçado, e diz que ele vai ser um ótimo jogador de quadribol, mas nós tivemos que empacotar todos os enfeites da casa e ter certeza de não tirar nossos olhos dele enquanto está na vassoura.

Nós fizemos uma festa de aniversário bastante calma, apenas nós e a velha Bathilda, que é sempre tão doce conosco e praticamente adotou Harry. Sentimos muito que você não pôde estar aqui, mas a Ordem vem primeiro, e Harry não é grande o suficiente para saber que é seu aniversário de qualquer maneira!”


James tinha acabado de voltar do quarto de Harry e se aproximou da escrivaninha, enlaçando-me num abraço quente e afetuoso. Repousei a cabeça em seu peito e me deixei ficar ali, sentindo o perfume suave e conhecido do meu marido. Fechei os olhos enquanto passava meus dedos delicados por seus braços, imaginando até quando poderíamos fugir dos Comensais da Morte, ou mesmo de Você-Sabe-Quem em pessoa. Já o tínhamos desafiado três vezes, exatamente como dizia a Profecia. Eu sabia que Alice e Frank também o tinham feito, e eles eram Aurores! O pequeno Neville também nasceu próximo aos últimos dias do sétimo mês. Por que não poderia ser a família deles, e não a minha?

Censurei-me intimamente pelo pensamento egoísta. Afinal, Dumbledore havia nos explicado tudo: Aquele-que-não-deve-ser-nomeado escolheria o seu alvo.

- Faz toda a diferença, Lily! – disse James na ocasião. – Dumbledore explicou que Voldemort marcaria o bebê como seu igual.

- Mas o que isso significa, afinal? – eu perguntei transtornada. – Harry não tem nenhuma marca!

- Eu não sei... – James passou a mão pelos cabelos nervosamente e suspirou antes de prosseguir -, mas precisamos nos proteger. Dumbledore também aconselhou os Longbottom a fazerem o mesmo. Godric Hollow é afastado, é o lugar ideal, e lá teremos Sirius como o nosso Fiel do Segredo. Será impossível, Você-Sabe-Quem jamais nos encontrará.

Eu não sabia o por quê, mas não conseguia acreditar naquilo. Mesmo depois que a Ordem aconselhou que tomássemos Peter como o Fiel do Segredo, para despertar menos suspeitas, ainda assim eu não me sentia segura. Por que Dumbledore tinha que ser tão misterioso e cheio de segredos?

- Ah, Lily, cale a boca! – disse James num tom de voz brincalhão, despertando-me de meus pensamentos. – Diga ao Padfoot que se Dumbledore não tivesse roubado a minha Capa da Invisibilidade, teríamos passado o aniversário de Harry no apartamento dele em Londres, e não na companhia da Bathilda e seu bafo de basilisco. Droga, estou com saudades do latido rouco daquele cachorro velho!

Eu ri, enquanto James beijava suavemente os meus lábios e se dirigia para nossa cama. Voltei novamente a escrever sob a luz da varinha, molhando mais uma vez a pena no tinteiro:

“James acabou de me mandar calar a boca aqui! Ele tentou não demonstrar, mas eu sei que posso te contar: Dumbledore ainda está com a Capa da Invisibilidade dele, então não temos chance para pequenas excursões fora de casa. Se você pudesse nos visitar, isso o deixaria muito satisfeito. Wormy esteve aqui no último fim de semana e achei que ele parecia tristonho, mas provavelmente era por causa dos McKinnons; eu chorei a noite toda quando soube.

Bathilda nos visita muitas vezes. Ela é uma coisa antiga e fascinante, e tem histórias maravilhosas sobre Dumbledore, que eu não sei se ele gostaria delas se as ouvisse! Eu não sei o quanto devo acreditar nelas, já que parece incrível que Dumbledore”


- AHÁ!

- AHHHHH! JAMES!

Meu coração saltou quando ele atirou um travesseiro em mim e não pude conter o grito. James começou a gargalhar, apoiando-se nos meus ombros enquanto dizia:

- Vem, meu amor, vem pra nossa cama, vai. Depois você termina essa carta pro Padfoot. Agora, vem brincar com seu Prongs, vem...

Eu ri enquanto ele despenteava meus cabelos.

- Querido, só faltam algumas linhas... Duas ou três... Vá deitar e eu vou logo atrás de você, não se preocupe!

Com o susto provocado por James, o pergaminho havia ficado borrado de tinta na extremidade. Cortei-o e peguei uma segunda folha, a fim de terminar a carta.

“tenha sido amigo de Gellert Grindewald um dia. Eu pessoalmente acho que ela está perdendo o juízo!

Com muito amor,

Lily.”


O pedaço de pergaminho que você levaria consigo apenas por causa de meu amor.

Embora tenha utilizado um tom despreocupado na carta que enviava a Sirius, as histórias de Bathilda a respeito de Dumbledore me faziam sentir um desconforto na boca do estômago. Não conseguia compreender que tipo de relação ele poderia ter com um dos mais famosos bruxos das trevas de todos os tempos, aquele que acreditávamos ser o mentor Daquele-que-não-deve-ser-nomeado. Mas James confiava nele, e eu também deveria fazê-lo, embora questionasse intimamente suas atitudes.

Porém, eu não teria tempo para mais desconfianças a respeito de Dumbledore, nem para esperar a visita de Sirius ou ver meu filho crescer. Enquanto nos escondíamos, eventualmente eu me pegava pensando em você. Ao ler sobre o assassinato dos McKinnons, meu coração bateu descompassado: será que você tinha alguma coisa a ver com aquilo? E as crueldades com os trouxas, teriam alguma ligação com você? Eu não queria que tivessem, mas não era capaz de negar a mim mesma que sim, você estava envolvido naquilo. Afinal, era um Comensal da Morte, fazia parte do grupo de bruxos das trevas que a Ordem da Fênix combatia. Lutávamos em lados opostos e eu continuava tendo o mesmo pesadelo, no qual você e James se enfrentavam até a morte. Nunca havia um vencedor.

Naquela noite de Halloween o jantar havia sido particularmente silencioso. Bathilda e Dumbledore vieram para a ceia, mas foram embora cedo. James tinha ficado novamente emburrado porque Sirius, Remus e Peter não puderam comparecer. Era visível o quanto ele sentia falta dos companheiros de marotagens dos tempos de Hogwarts, especialmente de Padfoot. Tantas coisas haviam mudado para nós depois que os tempos de escola se foram...

Quando todos haviam se retirado, terminei de dar a última mamadeira de Harry e subi as escadas para colocá-lo na cama. James permaneceu no andar de baixo da casa, cuidando de enfeitiçar a louça para que ela se lavasse. Foi então que ouvi um estrondo que parecia vir da porta de entrada. Assustada e com o coração aos pulos, corri para a ponta da escada com Harry nos braços. O barulho alto tinha feito com que ele começasse a chorar, as mãozinhas pequenas agarradas em minhas costas com força, como se pressentissem o perigo.

Um segundo estrondo se fez ouvir, ecoando pelo pé-direito alto do sobrado. Não pude evitar e comecei a gritar em direção ao andar de baixo:

- JAMES! JAMES! O QUE ESTÁ HAVENDO? – notei que minha voz estava absolutamente aterrorizada, e foi como se ouvi-la piorasse o meu estado.

- LILY! É ELE! NÃO SAIA DAÍ, NÃO DESÇA! EU VOU ATRASÁ-LO! PROTEJA O HARRY, PROTEJA O HARRY!

Um terceiro estrondo ainda mais forte que os outros fez a estrutura da casa tremer. Segurei-me no corrimão da escada e fechei os olhos diante da poeira que subia pelos degraus. Harry chorou alto, arranhando minhas costas expostas pela camiseta de alças largas. Meus pés me fizeram correr de volta para o quarto de Harry, quase como se não necessitassem de ordens do cérebro. Antes de trancar a porta com um baque, escutei a voz gelada, seca, quase inumana, que fez meu coração parar entre uma batida e outra, provocando uma pontada dolorosa em meu peito:

- Avada Kedavra!

Simples assim. Acabou. As lágrimas começaram a escorrer por minhas bochechas sem que eu pudesse contê-las. Nunca havia estado tão aterrorizada em toda a minha vida. Não costumava andar com a varinha no bolso enquanto estávamos protegidos pelas paredes de nosso lar, ela deveria estar repousando sobre a escrivaninha de meu quarto naquele momento. Desesperada, a adrenalina em meu corpo não tinha para onde escapar. Eu andava de um lado para o outro do pequeno aposento, apenas agarrando o corpinho frágil de Harry com força. Ele me olhava com aqueles dois pedaços de verde que eram tão meus, e não estavam mais manchados de lágrimas. Então, entre os resmungos e reclamações normais para toda criança daquela idade, consegui distinguir perfeitamente a vozinha infantil dizer:

- Mama....

Um novo estrondo e a porta do quarto veio abaixo, espalhando poeira pelo aposento e fazendo Harry chorar novamente. Entre os escombros, surgiu a figura alta e encapuzada, as mãos pálidas de dedos longos apontando a varinha exatamente na minha direção, na direção do meu bebê.

Fiz a única coisa que poderia fazer, a única e inútil coisa que me restava: implorei.

- Não, o Harry não, o Harry não, por favor o Harry não!

- Afaste-se, sua tola... afaste-se agora...

A voz dele era como gelo, penetrando minhas veias e dilacerando meus sentidos. Eu me abraçava ao pequeno Harry, protegendo-o da maneira como podia, incapaz de pensar em algo que nos pudesse livrar do destino fatal que se aproximava. Protegeria Harry com meu corpo e minha alma, se preciso fosse. Eu morreria por ele. Precisava salvá-lo, ele tinha uma vida inteira pela frente, ele tinha me chamado de mamãe. Ele era a única coisa que poderia perpetuar a minha memória e a de James na Terra. O nosso amado filho.

- O Harry não, por favor não, me leve, me mate no lugar dele...

Meu pequeno bebê, sangue do meu sangue, fruto do relacionamento certo que eu escolhi para mim. Não era justo! Ele precisava crescer, passar uma infância feliz ao lado da família, aproveitar a companhia de Sirius, brincar com James no jardim. Eu queria ver seu rostinho feliz ao receber a carta de Hogwarts, levá-lo ao Beco Diagonal para comprar seus livros e o primeiro caldeirão. James o presentearia com uma vassoura de corrida, e tão logo fosse possível ele estaria no time de quadribol de Hogwarts. Como os pais, seria selecionado para a Grifinória, e eu o ajudaria com os deveres de Poções por correio-coruja. E nos encontraríamos no Natal, ele viria feliz e cheio de novidades e encheria nossa casa de som e de luz. Então, talvez nos lhe déssemos um irmão, ou uma irmã, quem sabe, para dividir com ele as alegrias da vida. Eu queria ver meu filho crescer, queria estar por perto quando ele arrumasse a primeira namoradinha, e talvez enxugar suas lágrimas quando tivesse a primeira decepção amorosa. Eu queria vê-lo casado, e queria ter a alegria de conhecer meus netos. Não era justo. Não podia acabar ali.

- Harry não, por favor, tenha piedade...tenha piedade...

Não ouvi o som das palavras, apenas pude ler em seus lábios viperinos. Ele não era humano. Você-Sabe-Quem jamais teria piedade, pois desconhecia o sentido dessa palavra e de todos os outros sentimentos bons. Tudo o que me restava era fazer com que Harry tivesse a proteção da minha alma com ele. Eu morreria pelo meu filho, e pelo futuro que eu desejava de todo o meu coração para ele. Deixaria nele a minha marca de amor eterno e imutável.

Senti minha alma abandonar meu corpo num flash de luz verde, mas ainda continuava ali, naquele quarto. Harry estava sentado no chão, segurando um brinquedinho de morder. Aquele-que-não-deve-ser-nomeado olhava meu filho com olhos cobiçosos, como se ele fosse uma presa a ser abatida. Harry parecia indiferente quando pousou seus olhinhos no rosto maldoso do homem que lhe apontava a varinha. Ele proferiu o feitiço e foi então que a magia antiga se fez: em uma fração de segundo, minha alma foi sugada para dentro do pequeno e indefeso corpo de Harry, partindo-se em duas. A outra metade foi parar no corpo sujo e impuro do bruxo das trevas.

De repente eu podia sentir e ver as coisas por duas visões diferentes. Sentia a dor de ter algo impuro, sujo, entrando no corpo inocente de Harry ao mesmo tempo em que a força do amor e do sacrifício penetrava o corpo Daquele-que-não-deve-ser-nomeado. Ambos os sentimentos eram intensos e insuportáveis demais para que minha alma continuasse habitando aqueles corpos. Porém, antes de abandonar meu filho, fiz com que o feitiço se voltasse contra o próprio feiticeiro, e ao mesmo tempo em que me sentia sair do corpo de Harry, a dor de Você-Sabe-Quem se multiplicava em minha alma, até que esta se forçou para fora do corpo, abandonando-o junto com a alma partida do bruxo das trevas.

Em Harry, permaneceu a força do meu sangue correndo em suas veias. Naquele-que-não-deve-ser-nomeado, a marca eterna do meu amor de mãe, algo que ele nunca havia provado na vida.

Quando me tornei una novamente, tudo o que sobrou foi um borrão branco e luminoso, que me envolveu até me levar a inconsciência. Estava morta.

Mas Harry vivia. O meu pequeno Harry vivia. E estava marcado para sempre.




N/A: Pela primeira vez desde que eu me tornei ficwriter, um capítulo escrito por mim mesma me fez chorar. Tá, isso não é lá algo que seja tãooo difícil, porque eu sou absurdamente chorona. Mesmo assim, foi a primeira vez, e dizem que a primeira vez a gente nunca esquece. Eu gostei muito de escrever esse capítulo, espero que vocês igualmente gostem de ler.

Outra coisa que preciso comunicar é que o próximo capítulo é o último, galerinha! Tem um epílogo que será postado junto com ele, mas acho que vocês já imaginavam que o fim está chegando, não é mesmo?

E vem surpresa por aí, aguardem!

E se você está lendo, comente e faça uma autora feliz!

Bjos da Mia!




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