O último adeus
Se me perguntarem como as coisas puderam passar tão rápido, eu realmente não saberei dizer. Os tempos de Hogwarts se foram num piscar de olhos, e eu imaginava que nunca mais fosse ver você depois da formatura. Sua casa na Rua da Fiação estava abandonada desde a morte de seus pais, e eu sequer sabia para onde você tinha ido. Julgava ter te perdido para o mundo, para a causa que você julgava tão nobre, e eu tão suja.
Nesse meio tempo, Dumbledore nos convidou para fazer parte da Ordem da Fênix, organização que reunia bruxos interessados em lutar contra a ascensão Daquele-que-não-deve-ser-nomeado. James aceitou sem pestanejar e parecia bastante empolgado com a perspectiva de fazer algo concreto, e não apenas reclamar da situação. Ele sempre foi um homem de agir muito e pensar pouco nas conseqüências. Tinha acabado de começar o curso na Academia de Aurores do Ministério da Magia, e eu tinha um estágio no St. Mungus, na área de preparação de Poções, que ironia! Slughorn o tinha conseguido para mim, e faria o mesmo por você. Éramos os melhores alunos da série, ele não se cansava de nos dizer. Mas você preferiu continuar pela estrada errada.
Decidimos nos casar. Aliás, James decidiu por mim durante uma reunião da Ordem. Trouxe o anel de noivado e conjurou na hora um buquê de lírios brancos, para ele quase um símbolo do nosso relacionamento. Eu não podia me conter ao ver lírios, exatamente porque eles não representavam James, mas você e as nossas lembranças. Uma lágrima rolou pelo meu rosto sem que eu pudesse evitá-la. Nenhum membro da Ordem notou, pois James tinha convocado um brinde ao nosso amor eterno, no qual foi prontamente acompanhado pelos convidados. Ninguém notou, exceto Remus, que me sorriu com uma expressão entristecida e cansada enquanto eu rapidamente enxugava o rosto.
Não posso dizer que não amei James, pois estaria mentindo. Não era arrebatador, furioso, capaz de arrastar montanhas e mover moinhos, como diziam os trouxas. Era um sentimento límpido, puro, calmo e, acima de tudo, correto. Sabia que deveria viver com ele uma vida certa, já que não poderia viver com você a que tinha desejado para mim.
Tínhamos nos mudado para uma casa no centro de Londres, embora Sirius tivesse insistido que estávamos perto demais do Largo Grimmauld e que poderíamos ser contaminados pelos ares de nobreza que vinham de lá. Eu ri. Gostava de morar ali, era fácil para James e para mim, para as reuniões da Ordem e para ir ao trabalho. Morar num apartamento trouxa se tornou um fator de segurança a mais quando engravidei, pois James passou a sair sozinho para as missões da Ordem. Quando ele o fazia, geralmente chamava Alice para me fazer companhia. Frank Longbottom também fazia parte do grupo e acompanhava James nas missões. Alice era divertida, bem-humorada, um pouco estabanada talvez, e também estava grávida. Éramos duas malucas que, em meio à guerra que explodia no mundo bruxo, tentavam vier suas vidas de uma forma que pudesse ser chamada de normal.
Não aceitei pacificamente o fato de James querer me manter em casa quando descobrimos que eu esperava um filho dele. Eu estava grávida, não doente! Mas era fato que as missões se tornavam cada vez mais perigosas, embora tenha sido necessária a intervenção da sabedoria de Dumbledore para que eu aceitasse.
- Cuide do futuro, Lily. A esperança sempre vive no seio daqueles que ainda não foram moldados pelas bondades e maldades do mundo.
O problema era que eu odiava ficar sem James, saber que ele poderia partir sem mim, que algo poderia tirá-lo da minha vida. E não suportava a idéia de perder novamente alguém que amava. Duas vezes seria demais para mim, apesar de saber que você ainda vivia em algum lugar daquele vasto mundo.
Tinha pesadelos quando James estava fora, e muitas vezes Alice precisava me acordar. Eu chorava em seu ombro, tentando apagar da mente as horríveis imagens de um duelo entre você e James, no qual nenhum dos dois sobrevivia. Entre as luzes coloridas de feitiços eu só via o profundo negro e o suave castanho dos olhos de expressões mortas, e era o bastante para que o desespero se instalasse em meu coração. Passei noites em claro por isso, andando de um lado para o outro do apartamento enquanto acariciava a barriga. Por mais que eu tentasse fugir, a cena sempre se repetia, como numa roleta russa sem fim na qual eu sempre esperava pelo tiro de misericórdia.
Aquele fim de tarde de verão estava particularmente quente, mas eu me sentia gelada. Alice estava no St. Mungus desde o dia 29 de julho. O pequeno Neville fora preguiçoso e nascera apenas na madrugada do dia 30. Alice estava muito feliz, tinha me mandado uma coruja dizendo que o parto havia sido normal e que, apesar da dor, nada a satisfazia mais do que ver Neville gordinho e saudável se movendo entre seus braços. Sorri e acariciei meu ventre absolutamente pontudo. Perguntei-me quando se daria o maravilhoso milagre da vida, quando é que o pequeno ser que eu tinha ajudado a criar e proteger tomaria forma e me olharia nos olhos, absolutamente necessitado dos meus cuidados. A partir dali, podia ser a qualquer hora. E James não estava por perto.
- Compromissos inadiáveis da Ordem, meu amor, mas volto antes do pequeno Harry nascer!
Remus, que não tinha sido escalado para essa missão por estar se recuperando de uma noite de lua cheia particularmente difícil, prometeu ficar por perto para qualquer necessidade, já que eu não podia mais contar com Alice. Estava tão desesperada por uma companhia feminina que resolvi ir até o quarteirão seguinte e telefonar para Tuney. Há muito não nos falávamos, mas eu sabia que ela tinha acabado de ter um filho. Talvez se compadecesse da minha situação, até mesmo se identificasse, e viesse me fazer companhia.
- Tuney, por favor!
- É impossível, Lily! Válter me mataria. E Duda é muito pequeno para sair de casa. Mas onde é que está o seu marido, aquela aberração?
- Não o chame assim! Eu não gosto! Ele... ele precisou viajar.
- Se ele não está por perto, chame aquele esquisito do seu amigo, o Snape da Rua da Fiação – engoli em seco e não respondi. Um barulho de fechadura fez com que Tuney retornasse a falar: - Preciso desligar. Válter está chegando do trabalho e não pode me ver falando com você. Adeus!
Ouvi o baque seco do telefone batendo do outro lado da linha. Suspirei. Sentia-me incrivelmente estúpida ao ter pensado em ligar para Tuney. Não sei porque imaginei que ela se importaria, afinal. Depois que nossos pais morreram, ficou cada vez mais difícil ultrapassar o abismo que dividia os mundos tão diferentes que habitávamos. Talvez ela não me odiasse, mas nossos princípios seriam sempre incompatíveis.
Comecei a caminhar de volta para o apartamento. Apesar de ser fim de tarde, ainda estava muito quente e eu andava com dificuldade sob o peso da barriga. Quando olhei para a esquina seguinte, vi uma capa negra farfalhar. Franzi a testa. Foi uma visão tão fugaz que logo julguei se tratar de uma ilusão de ótica produzida pelo calor. Precisava chegar logo em casa, e então poderia tomar um copo de água gelada, e talvez ler algum livro na poltrona próxima à janela. Um pequeno sorriso nasceu no canto dos meus lábios diante da perspectiva, mas rapidamente morreu quando um braço forte me agarrou com firmeza. Involuntariamente, pulei para trás e tive que conter um grito, que morreu em minha garganta no exato momento em que elevei o rosto para encarar meu agressor, e pousei o verde no negro dos seus olhos, que ficaram visíveis quando você baixou o capuz da capa. Meu coração deu um pulo, o estômago embrulhou e senti uma pontada dolorida no ventre, para onde rapidamente levei a mão livre.
- Severo! O... o que você está fazendo aqui?
- Eu precisava falar com você. Saber se... – você parou, meio sem jeito e parecendo ligeiramente encabulado, como se julgasse que aquilo tudo era uma verdadeira loucura. Seu olhar traduzia confusão, mas eu não me compadeci.
- Vá embora! Eu não quero falar com você!
Sua expressão congelou no indecifrável. Seus olhos estavam pousados sobre a minha barriga enquanto eu a segurava por conta de uma nova onda de dor. A única coisa que denunciava o seu estado interno era o franzido da testa, logo acima dos olhos, algo que eu tinha aprendido a decifrar e que reconheceria mesmo que passássemos séculos sem nos ver. Analisei sua aparência. Você estava pálido, ainda mais magro do que tinha sido em Hogwarts. Seus ombros estavam ligeiramente curvados, como se você estivesse carregando sobre eles o peso de seus últimos atos, os fantasmas das mortes que você causava direta ou indiretamente. Porém, tudo isso não te tornava fraco, e eu podia comprovar isso pela maneira como seus dedos gelados envolviam meu pulso com firmeza, e, mesmo assim, de uma maneira cuidadosa.
- Lily... eu só preciso saber... por que ele?
Foi a minha vez de congelar. Não esperava por aquilo, pois achava que minhas escolhas tinham ficado claras para você. Achei que tivesse percebido o quanto a sua escolha tinha influenciado em nossos destinos. Mas você estava ali, e perguntava o por quê. E minha voz simplesmente morreu, porque eu não conseguia responder. Eu não sabia... jamais saberia...
- O que é que você está fazendo aqui? – ouvi uma voz às nossas costas e me virei bruscamente, dando de cara com um Remus enfurecido. Você soltou meu pulso e pude ver que Remus trazia a mão no bolso, provavelmente segurando a varinha, pronto para qualquer movimento em falso vindo de você. Ele continuou – Como você tem coragem de procurá-la depois de tudo, Snape? Você não sabe o que faz! Deixe-a em paz!
- Remus, por favor, não! – eu disse, correndo até ele e segurando-o para que ele não o alcançasse. A ruga na sua testa sumiu, e rapidamente você assumiu uma expressão de indiferença, quase de desdém, que congelava meus ossos e machucava meu coração. Odiava a forma como você queria controlar as emoções, e odiava mais ainda o fato de você fazê-lo tão bem, enquanto eu sempre parecia à beira de um colapso nervoso. Nesse momento, senti outra pontada e arfei, minha visão ficando instantaneamente turva.
- O que foi que houve? – ouvi sua voz perguntar.
- Você está bem, Lily? – completou Remus.
Então ele me envolveu num abraço seguro e foi como se eu perdesse o chão. Meus pés não tinham mais firmeza para manter o corpo, e eu sentia uma náusea profunda me invadir e tomar os sentidos. Não conseguia pensar com clareza quando a segunda pontada chegou, logo em seguida, e Remus precisou reforçar a maneira como me segurava. A dor foi muito mais intensa, fazendo-me gritar e trazendo lágrimas que cegaram ainda mais a minha visão. Levei a mão à barriga num gesto involuntário e então senti um líquido escorrer e molhar o vestido leve que eu usava. A bolsa rompeu. Tinha chegado a hora.
Percebi que Remus e você estavam assustados e não sabiam exatamente o que fazer. Quando consegui focar novamente as imagens que me rodeavam, li em seus olhos a preocupação que sentia, misturada à dor de ver o filho de outro que eu carregava prestes a nascer. Era quase como se eu pudesse ver o quanto você queria que aquele bebê fosse seu, o quanto desejava que tudo aquilo fosse diferente. E eu em meio ao turbilhão da dor, quase cheguei a sorrir, porque eu sabia que certas coisas nunca mudariam. Porém, a sensação de conforto não durou mais que alguns segundos. Com mais uma pontada, veio também a dor da incerteza: por que você tinha me abandonado?
- Snape, você vai ter que me ajudar! – disse Remus, enérgico e já sem conseguir conter meu peso sobre o corpo machucado enquanto eu me contorcia num novo espasmo.
Tudo o que aconteceu em seguida são apenas borrões de memórias, imagens perdidas em minhas recordações. Quando finalmente readquiri a consciência, havia uma pequena vida pulsando em meus braços, sugando meu seio com os olhinhos fechados, como se o alimento com o qual eu o provinha fosse a sua única necessidade vital. Ele tinha os cabelos já fartos, negros e meio espetados atrás, exatamente como os de James. Meu marido sorria ao meu lado e segurava minhas mãos.
- Meu amor! Minha Lily! Olhe o nosso pequeno Harry! Me perdoe, por favor, por não estar aqui quando você mais precisou, me perdoe!
O toque de James também era firme como o seu. Ele levou minha mão aos lábios e beijou-a em meio aos pedidos de desculpas. Eu estava tão cansada... mas muito feliz! Minha voz estava fraca quando falei:
- Ele se parece com... você...
- Mas ele tem os seus olhos, Lily! Exatamente os seus olhos!
Olhei para a vida que trazia em meus braços e vi que os pequenos olhinhos, naquele momento abertos, traziam exatamente o mesmo verde que eu carregava nos meus. Voltei-me novamente para James e vi que uma lágrima rolou pelo seu rosto, molhando um pequeno corte que ele trazia na bochecha. Quis perguntar o por quê, mas ainda estava me sentindo tão fraca. Ele nos abraçou, a mim e ao pequeno Harry. E eu sabia que aquilo era certo, e um dos momentos mais felizes da minha vida. Mesmo assim, eu me perguntava sem parar onde você estaria, para onde teria ido.
A última lembrança que guardei de você foi o negro dos seus olhos numa expressão triste e preocupada. Era 31 de julho de 1981. Foi essa mesma expressão que carreguei comigo por pouco mais de um ano, até o momento em que fatalmente eu tive que partir. E por escolha própria.
(Enquanto morremos, você e eu)
With my head in my hands
(Com a minha cabeça entre meus dedos)
I sit and cry
(Eu sento e choro)
You and me
(Você e eu)
I can see us dying ... are we?
(Eu posso nos ver morrendo... nós estamos?)
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